quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

O Comprimento e a Altura da Cruz é Igual ao Céu (S.N. Trubetskoy)

"Ó milagre glorioso! O comprimento e a altura da cruz é igual ao céu!" (3ª estiquério para o final das matinas). Ao louvar a Cruz Vivificante do Senhor com essas palavras em um de seus hinos para a festa da Elevação da Cruz, a Santa Igreja nos apresenta um de seus aspectos de seu ensinamento sobre a Cruz, a saber: que o comprimento e a altura da cruz é igual ao céu; em outras palavras, que a cruz protege todo o universo, toda a criação, o mundo físico e o metafísico por completo.

Encontramos uma exposição única deste ensinamento em um livro maravilhoso do proeminente filósofo russo religioso Príncipe Yevgeniy Trubetskoy, que trata da questão que se reflete em seu título - "O Sentido da Vida." O livro foi escrito em 1918, precisamente em uma época em que o velho mundo cristão estava sendo demolido, e uma era pós-cristã, apóstata, apocalíptica - a chamada Nova Era - estava sendo estabelecida na Terra.

Ao analisar a profunda e complexa questão do sentido da vida, particularmente no contexto de caos circundante e a falta de sentido evidente daquela época, o Príncipie Trubetskoy analisa de forma maravilhosamente espiritual a estrutura fundamental da vida, explicando sua linha horizontal (comprimento) e sua linha vertical (altura), e mostra que somente na interseção dessas duas linhas (uma cruz) está o verdadeiro significado da vida revelada para nós. Eis o que este grande escritor espiritual diz (extraído do livro "O Sentido da Vida", p. 53-65):


"Um argumento eterno de dois conceitos opostos da vida se trava em torno da questão do propósito e sentido da vida - um conceito naturalista, que se volta para a vida real e seu significado no plano deste mundo, e um conceito sobrenatural, que afirma que a verdadeira vida e seu significado está concentrada em um plano de existência superior, diferente e fora deste mundo. Um exame dessas duas resoluções nos leva a concluir que ambas são igualmente unilaterais e, portanto, igualmente inválidas.

Para o naturalismo - tanto religioso quanto filosófico - a vida real é precisamente esta vida, que se desdobra neste plano particular de existência; O mundo real é o que ocorre diante de nós neste plano, morrendo e renascendo periodicamente. Um exemplo vívido de tal conceito de vida são os gregos antigos com seu culto da natureza e seus deuses solares - Olímpicos. Todos esses deuses do trovão e do relâmpago, as ondas do mar, o luar e a luz ofuscante do céu do meio-dia são personificações humanas da alegria da vida na terra. A religião grega também conhece o além, mas não é tanto o outro mundo mas o submundo, onde tudo é sombrio e estéril; a sombra de Aquiles fala disso a Ulisses, dizendo que é melhor ser escravo na terra do que reinar sobre os mortos no reino das sombras.

Falando do outro mundo, olhemos para aquelas religiões que representam uma antítese direta à visão de mundo alegre dos gregos antigos. Estou falando daquelas religiões da Índia que não só não acreditam na autenticidade deste mundo, mas até mesmo parcialmente rejeitam sua realidade. A profundidade da busca religiosa da Índia é expressa no fato de que ela transforma todos os julgamentos do senso comum em seu oposto. O que chamamos de realidade é na verdade um sonho, enquanto o que chamamos de sonho é uma realidade genuína e verdadeiramente valiosa - assim somos ensinados pela sabedoria ascética do bramanismo e do budismo. A palavra "Buda" até mesmo literalmente significa "o despertado". Assim, todo o ensinamento de ambas religiões não é mais do que uma tentativa de alcançar esse despertar, de se elevar acima da agitação que é chamada realidade; para o budismo, assim como para o bramanismo, a verdadeira expressão da vida real não é esta realidade, mas as asas que podem nos elevar e nos afastar dela...

O pathos do bramanismo também está ligado com a exigência prática onde a pessoa deve rejeitar toda individualidade, todos desejos egoístas, todo esforço por uma recompensa aqui ou no além. Este mundo inteiro é uma mentira - portanto, o sentido da vida é alcançado apenas em uma total desassociação do mundo. Para o bramanismo, o ideal da vida é a completa dissolução de tudo o que é individual e concreto dentro da unidade impessoal de um espírito universal.

Esta dissociação ascética de tudo é cristalizada no budismo, cujo ideal consiste em elevar-se não só acima de uma vida individual finita, mas acima de toda a vida em geral, acima de todo esforço em relação à vida, acima de todo desejo de imortalidade. O budismo deixa sem resposta a própria questão da vida eterna do indivíduo, a fim de não despertar no homem esse desejo vago pela vida que está na raiz de todo sofrimento na terra. Uma imersão pacífica no "nirvana" pregado pelo budismo é alcançado através da completa desassociação da vida.

Em última análise, no entanto, a busca religiosa aqui também permanece sem solução. A auto-abnegação ascética da índia acaba por ser uma meia verdade, assim como a cosmovisão religiosa dos gregos antigos. Vemos aqui duas aspirações opostas em relação a vida, duas linhas de vida que se cruzam. Uma se estabelece aqui na terra, tem ambas extremidades firmemente enraizadas neste mundo. A outra, pelo contrário, anseia para longe da terra, aspira para o além. Mas, de uma maneira fatal, essas duas linhas conduzem a uma e a mesma coisa. Tanto a alegria transitória da vida dos olímpicos como o elevado vôo do ascetismo hindu terminam na morte. Pois o que é considerado felicidade no bramanismo e no budismo não é, em verdade, a vitória da vida, mas o contrário - a vitória sobre a vida e, consequentemente, a vitória da morte.

A religiosidade hindu essencialmente não acredita no sentido, mas na falta de sentido da vida. Os hindus engajam-se em uma ascensão espiritual, mas terminam no fracasso fatal, pois em sua religião o espírito não anima o mundo, não transforma-o desde dentro, não vence a força do mal nele, mas apenas entrega a si mesmo a essa força.  A atitude do espírito hindu em relação à terra é exclusivamente negativa: desassocia-se da terra para sempre e assim entrega a terra e todos os seres vivos nela ao poder do sofrimento, do mal e da futilidade. O sofrimento de toda a criação viva é fútil e suas esperanças são em vão, pois não tem lugar na salvação proclamada pelos ascetas da Índia: sua "salvação" não é a salvação da vida, mas a salvação para longe da vida; a "salvação" dos ascetas reside precisamente na destruição de todas as formas concretas, de toda a variedade da criação... Assim, a ascensão ao além, que constitui a essência da aspiração religiosa da Índia, se transforma em nada, pois esta ascensão não conduz ao seu objetivo, e o próprio céu permanece para sempre fechado para eles, para sempre além de seu alcance.

Tanto as soluções hindu como as gregas para a questão do sentido da vida se tornam igualmente inválidas. Ao afirmar o mundo, a religiosidade grega encontra o caos em vez do cosmos, encontra uma multidão de forças lutando entre si, não unidas pela unidade de um sentido comum, ao passo que a religiosidade hindu rejeita completamente o mundo como inexistente e absurdo, isto é, encontra sentido somente em sua destruição. Assim, se o homem busca o sentido da vida no plano horizontal terrestre ou na ascensão vertical a um plano diferente de existência, o resultado desses dois movimentos é o mesmo: o sofrimento em relação ao sentido não alcançado e o retorno do círculo da vida de volta a Terra, à futilidade.

Ambas as linhas, que expressam as duas direções básicas da aspiração da vida - a linha plana ou horizontal e a linha ascendente ou vertical - se cruzam. E tendo em vista o fato de que essas duas linhas representam uma descrição abrangente de todas as possíveis direções da vida, sua interseção - a formação de uma cruz - é a representação esquemática mais universal e exata do caminho da vida. Em todas as formas de vida há uma interseção inevitável desses dois caminhos e direções - o movimento ascendente e o movimento para a frente.

Nesse sentido, a cruz está na base de toda a vida. O esboço da própria vida é cruciforme por natureza, e há uma cruz cósmica, que expressa o fundamento arquitetônico de todo o universo.

Toda a questão do sentido da vida resume-se à questão da cruz, uma vez que fora dessas duas linhas da vida que se cruzam não pode haver outras linhas ou caminhos. No entanto, para cada pessoa o significado da cruz pode ser diferente, dependendo se esses caminhos da vida levam para o objetivo preciso ou não. Se alguém acredita que o resultado final de toda vida é a morte, então o cruzamento das linhas da vida representa apenas uma expressão extrema de tristeza, sofrimento, humilhação - e, nesse caso, a cruz é simplesmente um símbolo de tormento universal: de tal modo era conhecida pela humanidade pré-cristã. É uma questão totalmente diferente se na interseção das duas linhas a vida alcança sua plenitude, seu sentido eterno, belo e imortal. Então a cruz torna-se o símbolo desta elevada vitória, a cruz torna-se vivificante, o que constitui a única formulação correta da questão sobre o sentido da vida ...

Nem a auto-afirmação da mundanidade, personificada pelos olímpicos gregos, nem o ascetismo direto da Índia antiga e a fuga do mundo levaram ao sucesso. Esta dupla falha mostra que ambos os caminhos da vida que se cruzam no mundo são inválidos por si mesmos; Assim, o homem é levado a uma nova revelação do mistério do mundo. Se nem a terra, nem o céu, nem o alto, nem o baixo por si só compreendem a revelação do sentido da vida, isto significa que o sentido está em algum lugar mais profundo. Não é só maior do que a terra, mas também maior do que o céu e, portanto, todas as tentativas de encontrá-lo somente na terra ou apenas no céu estão igualmente condenadas ao fracasso. Não pode ser contido em qualquer plano finito da existência, pois engloba todos os planos, o mundo inteiro em geral, enquanto em si mesmo está acima do mundo...

Em outras palavras, devemos buscar o sentido da vida não em uma direção horizontal ou vertical tomada separadamente, mas na unificação dessas duas linhas da vida, no lugar onde elas se cruzam. No verdadeiro sentido da vida, todo sofrimento deve ser derrotado e transformado em alegria - tanto o sofrimento físico da criação terrena como o sofrimento espiritual de uma subida mal sucedida ao céu. O sentido da vida é testado pela cruz, porque, em última análise, a questão do sentido da vida é a questão se a cruz - um símbolo da morte - pode se tornar a fonte e o símbolo da vida?

De todas as religiões só o cristianismo fornece e afirma uma resolução positiva deste problema, pois prega a abolição da morte, prega a transformação da própria cruz de um caminho que leva à morte para um caminho que leva à vida. Além disso, esta é a única solução positiva possível, pois o cristianismo mostrou ao mundo a vitória total na cruz e na crença em Cristo como Deus perfeito e ao mesmo tempo homem perfeito, ao mundo revelado a unidade indivisível e integral do divino e do humano... A paixão voluntária do Filho de Deus e a ressurreição como consequência - tal é a única revelação do sentido no mundo por meio de qual é possível ser realizado e confirmado".

Príncipe Yevgeniy Trubetskoy

original: http://www.holy-transfiguration.org/library_en/lord_cross_equal.html