quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Atitude Ortodoxa em relação aos Cristãos Não-ortodoxos (Pe. Seraphim Rose)

Alguns anos antes de falecer, Pe. Seraphim recebeu uma carta de uma mulher afro-americana que, como catecúmena aprendendo sobre a Ortodoxia, estava lutando para entender a atitude pouco caridosa que alguns Cristãos Ortodoxos mostravam àqueles que estavam fora da Igreja, uma atitude que lhe lembrava de como seu próprio povo tinha sido tratado. "Estou bastante preocupada", esta mulher escreveu, "sobre a forma de como a Ortodoxia vê os Cristãos Ocidentais, isto é, Protestantes e Católicos Romanos. Eu li muitos artigos de muitos escritores Ortodoxos, e alguns usam palavras como "papistas", etc. que eu acho profundamente preocupante e bastante ofensivas. Eu acho ofensiva porque, como uma pessoa de uma raça que já foi submetida a muitos insultos, eu desprezo e não desejo adotar o hábito de xingar. Até mesmo o termo "herético" me perturba...

"Como fico com meus amigos e parentes? Eles não sabem sobre a Ortodoxia e eles não entendem isso. No entanto, eles acreditam e louvam Cristo... Devo tratar meus amigos e parentes como se eles não tivessem Deus, sem Cristo? Ou devo chamá-los de Cristãos, mas que não conhecem a verdadeira Igreja?

"Quando fiz essa pergunta, não posso deixar de pensar em São Inocêncio do Alasca quando visitou os mosteiros franciscanos na Califórnia. Ele permaneceu completamente ortodoxo, mesmo tratando os padres que encontrou lá com bondade, caridade e não com xingamentos. Isso, espero, é o que a Ortodoxia diz sobre como se deve tratar os outros Cristãos."

O dilema dessa mulher era bastante comum às pessoas que entram na Fé Ortodoxa. Aproximando-se do fim de sua curta vida e tendo abandonado sua amargura juvenil, Pe. Serafim respondeu o seguinte:
Fiquei feliz em receber sua carta - feliz, não porque você está confusa sobre a questão que lhe incomoda, mas porque sua atitude revela que na verdade da Ortodoxia pela qual você é atraída, você deseja encontrar uma espaço para uma atitude amorosa e compassiva para aqueles que estão fora da Fé Ortodoxa.

Eu acredito firmemente que realmente é isto o que a ortodoxia ensina ...

Explicarei brevemente o que acredito ser a atitude ortodoxa em relação aos cristãos não-ortodoxos.

1. A Ortodoxia é a Igreja fundada por Cristo para a salvação da humanidade e, portanto, devemos guardar com a nossa vida a pureza de sua doutrina e a nossa fidelidade a ela. Na Igreja Ortodoxa, apenas, a graça é dada através dos sacramentos (a maioria das outras igrejas nem sequer afirmam ter sacramentos em qualquer sentido sério). Só a Igreja Ortodoxa é o Corpo de Cristo, e se a salvação é suficientemente difícil dentro da Igreja Ortodoxa, quanto mais difícil deve ser fora da Igreja!

 2. No entanto, não cabe a nós definir o estado daqueles que estão fora da Igreja Ortodoxa. Se Deus deseja conceder a salvação a alguns que são cristãos na melhor maneira que eles conhecem, mas sem nunca conhecer a Igreja Ortodoxa - isso depende dEle, não de nós. Mas quando Ele faz isso, é algo que está fora do caminho normal que Ele estabeleceu para a salvação - que está na Igreja, como parte do Corpo de Cristo. Eu mesmo posso aceitar a experiência dos protestantes como "nascidos de novo" em Cristo; conheci pessoas que mudaram suas vidas inteiramente por meio do encontro com Cristo, e eu não posso negar sua experiência apenas porque elas não são ortodoxas. Eu chamo essas pessoas de cristãos "subjetivos" ou "iniciantes". Mas, enquanto não estiverem unidos à Igreja Ortodoxa, não podem ter a plenitude do cristianismo, não podem ser objetivamente cristãos como pertencentes ao Corpo de Cristo e receber a graça dos sacramentos. Penso que é por isso que existem tantas seitas entre eles - eles começam a vida cristã com uma genuína conversão a Cristo, mas não podem continuar a vida cristã de maneira correta até que estejam unidos à Igreja Ortodoxa e, portanto, eles substituem suas próprias opiniões e experiências subjetivas pelos ensinamentos e sacramentos da Igreja.

Sobre aqueles cristãos que estão fora da Igreja Ortodoxa, portanto, eu diria: eles ainda não têm toda a verdade - talvez ainda não tenha sido revelada a eles, ou talvez seja nossa culpa por não viver e ensinar a Fé Ortodoxa em uma maneira que eles possam entender. Com tais pessoas não podemos ser um na Fé, mas não há razão para que os consideremos totalmente estranhos ou iguais aos pagãos (embora também não devemos ser hostis aos pagãos - eles também não viram a verdade!). É verdade que muitos dos hinos não-ortodoxos contêm um ensinamento ou pelo menos alguma ênfase que é errado - especialmente a ideia de que quando alguém é "salvo", não é necessário fazer nada mais porque Cristo fez tudo. Essa ideia impede que as pessoas vejam a verdade da Ortodoxia, que enfatiza a idéia de lutar pela salvação mesmo depois de Cristo nos ter dado, como diz São Paulo: "Trabalhai vossa salvação com temor e tremor". [Filip. 2:12]. Mas quase todos os cânticos religiosos de Natal estão corretos, e eles são cantados por cristãos ortodoxos na América (alguns deles mesmo nos monastérios mais rigorosos!).
A palavra "herege" (como dizemos em nosso artigo sobre Pe. Dimitry Dudko) é, de fato, utilizada com muita frequência hoje em dia. Ela tem um significado e uma função definida para distinguir os novos ensinamentos do ensinamento Ortodoxo; mas poucos dos cristãos não-ortodoxos hoje são conscientemente "hereges", e realmente não faz bem chamá-los assim.

No final, acho que a atitude do Pe. Dimitry Dudko é a correta: devemos ver as pessoas não-ortodoxas como pessoas a quem a Ortodoxia ainda não foi revelada, como pessoas que são potencialmente ortodoxas (se pelo menos nós mesmos lhes déssemos um melhor exemplo!). Não há razão para que não possamos chamá-los cristãos e estar em bons termos com eles, reconhecer que temos pelo menos nossa fé em Cristo em comum, e vivermos em paz especialmente com nossas famílias. A atitude de São Inocêncio aos católicos romanos na Califórnia é um bom exemplo para nós. Uma atitude severa e polêmica é exigida apenas quando os não-ortodoxos estão tentando afastar nosso rebanho ou mudar nosso ensino...

Quanto aos preconceitos - estes pertencem às pessoas, não à Igreja. A ortodoxia não exige que você aceite quaisquer preconceitos ou opiniões sobre outras raças, nações, etc.

Do livro Father Seraphim Rose: His Life and pelo Hieromonge Damasceno

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

V. Lossky e a Teologia Mística do Oriente (N. O. Lossky)

Vladimir Nicolaevich Lossky, filho do filósofo N. O. Lossky, nasceu em 1903. Estudou na Faculdade de Artes da Universidade de Petrogrado, prosseguiu os seus estudos em Praga e finalmente se formou em Sorbonne, Paris, onde se especializou na filosofia medieval. Seus trabalhos principais são Essai sur la theologie mystique de l'Eglised'Orient, Aubier, Paris 1944; e Meister Eckehardt.




A obra sobre a teologia mística da Igreja Oriental é do tipo "síntese neo-patrística", utilizando o termo do Padre George Florovsky. Lossky confirma todas as suas principais afirmações de seu livro fazendo referências a escritos patrísticos. A teologia e o misticismo, diz ele, estão intimamente interligados na tradição da Igreja Oriental. O objetivo dessa teologia não é algo teórico, mas é prático: conduz àquilo que está acima do conhecimento, "à união com Deus, isto é, à deificação dos Padres gregos". A parte central do livro consiste em mostrar que a teologia apofática interpenetra todas as doutrinas fundamentais dos Padres Orientais. Ele fala longamente sobre o misticismo de Dionísio o Areopagita e a doutrina de São Gregório Palamas sobre as "energias" divinas. A teologia apofática de Dionísio, o Areopagita, difere profundamente daquela de Plotino. De acordo com Plotino, Deus é incognoscível porque Ele é simples; portanto, ele considera o êxtase como apolosis (simplificação) no qual a unidade ontológica original da alma humana e de Deus é manifestada; segundo Dionísio, Deus é incognoscível porque Ele é ontologicamente superior ao mundo, e a união com Deus é a deificação; isto é, um novo estado nunca antes atingido pelo homem natural (36).

A teologia catafática não difere essencialmente da apofática. "Pode até ser dito que é um só caminho trilhado em duas diferentes direções: Deus vem até nós em Suas energias que O manifesta para nós, e nós ascendemos a Ele através de uma série de uniões, enquanto Ele permanece incognoscível em Sua natureza. Até a mais elevada teofania, a manifestação perfeita de Deus no mundo através da encarnação do Verbo, retém para nós seu caráter apofático". A incognoscibilidade de Deus não conduz ao agnosticismo; exige "uma teologia contemplativa conduzindo o espírito para realidades acima razão. Por isso os dogmas da Igreja aparecem muitas vezes à razão humana sob a forma de antinomias". Isto é particularmente verdadeiro no dogma trinitário. Plotino tem uma doutrina da Trindade (o Uno, o Espírito e a Alma do Mundo), e até usa a expressão "ser consubstancial". Mas a Trindade de Plotino é uma hierarquia descendente de três princípios, enquanto a doutrina cristã da Santíssima Trindade é a contemplação da unidade e da diferença das Três Pessoas que são co-iguais.

Os teólogos ocidentais ao lidarem com o dogma trinitário geralmente começam com a concepção da natureza divina passando dela para a concepção das Três Pessoas, enquanto os gregos seguem a ordem inversa, das Três Pessoas para a natureza única; mas não há nenhuma questão da superioridade ou prioridade da natureza sobre a personalidade ou vice-versa. O caso é diferente com a doutrina ocidental da processão do Espírito Santo do Pai e do Filho (Filioque), que levou ao cisma entre as igrejas ocidental e oriental. Os gregos detectam nessa fórmula uma tendência em colocar em primeiro plano "a unidade da natureza à custa da diferença real entre as Pessoas: as relações de processão, não conectando diretamente tanto o Filho e o Espírito Santo com uma única fonte, o Pai, tornam-se um sistema de relações em uma natureza e prova ser logicamente posterior à natureza." O Espírito Santo é para os teólogos ocidentais "o vínculo entre o Pai e o Filho". A natureza "torna-se na Trindade um princípio de unidade diferenciado pelas relações. As relações, ao invés de serem as características das Pessoas, se identificam com elas." São Tomás de Aquino diz que "o nome de uma pessoa significa relação". Ensinamentos que colocam a natureza de Deus em primeiro plano "colocam o universal acima do indivíduo"; isto conduz ao misticismo apofático impessoal, por exemplo, a doutrina de Gottheit de Mestre Eckhart. "Ao insistir na monarquia do Pai como única fonte e princípio da unidade das Três Pessoas, os teólogos orientais defendiam, pensavam, uma concepção mais concreta e pessoal da Trindade".

Pode-se perguntar se, de acordo com tal triadologia, a concepção da Pessoa é mais elevada que a Natureza Divina. V. Lossky pensa que esta é a falácia do sofianismo de Sergius Bulgakov, pois segundo ele a Natureza Divina é a manifestação das Três Pessoas da Santíssima Trindade. Os Padres Orientais não caem em nenhum dos extremos: eles sustentam que na Santíssima Trindade, a natureza e personalidade são apofáticamente equivalentes. A concepção deles da monarquia do Pai não é subordinacionismo. A diferença é refletida até mesmo na doutrina da beatitude: para o Ocidente, a bem-aventurança é contemplação da Natureza Divina, e para o Oriente é participação na vida divina da Santíssima Trindade. 

V. Lossky dedica especial atenção à doutrina das "energias" Divinas, que foi elaborada em detalhe por São Gregório de Palamas, prefigurada por Atenágoras, São Basílio, São Gregório o Divino, Dionísio e São João Damasceno. Deus habita "na luz a qual nenhum homem pode se aproximar", mas em Suas "energias" Ele vem ao exterior, Se manifesta e Se entrega. "A graça Divina que concede a deificação", diz São Gregório Palamas, "não é a natureza de Deus, mas a Sua energia"; são "os raios da Divindade" que penetram o mundo, "a luz incriada" ou "graça": Deus não está limitado em Suas energias: Ele está inteiramente presente em cada raio de Sua Divindade; esta manifestação dEle é "a glória de Deus"... A união com Deus em Suas energias, ou seja, por meio da graça, nos permite participar da natureza de Deus, mas nossa natureza não se torna, assim, a natureza de Deus". Na deificação, a criatura "permanece criatura, tornando-se Deus pela graça".

Os teólogos ocidentais negam a distinção entre a natureza e as energias de Deus, mas admitem outras distinções, como a luz criada da graça, os dons sobrenaturais criados e assim por diante. "A teologia oriental reconhece nenhuma ordem sobrenatural entre Deus e o mundo criado, adicionada à criatura como uma nova criação." A diferença reside no fato de que a concepção ocidental da graça contém a idéia de causalidade - a graça é entendida como o efeito de uma causa divina, "mas para a teologia oriental a graça é a radiação da natureza Divina, isto é, das "energias". É "a presença da luz eterna e incriada" no mundo criado, "a real onipresença de Deus em todas as coisas, maior do que Sua presença causal". No mundo, a natureza e graça "estão mutuamente interpenetradas, uma existe dentro da outra".

O "nada" a que devemos descender ao pensar na criação do mundo por Deus é, segundo V. Lossky, tanto mistério quanto o Nada Divino ao qual devemos ascender na teologia apófatica. A criação do mundo por Deus é um ato de criação de um ser absolutamente novo, não contido na natureza de Deus. "A criação é obra da vontade de Deus e não de Sua natureza". As idéias de acordo com as quais o mundo é criado não  estão cósmos noetós dentro da natureza de Deus: nas palavras de Dionísio elas não estão na Natureza Divina (como o Padre Sergius Bulgakov ensina), mas "naquilo que vem depois da natureza", nas energias Divinas. Contendo dentro delas a vontade de Deus, as idéias são dinâmicas: são idéias-volições externas à criatura e predeterminam os diferentes estágios da participação da criatura nas energias Divinas. O mundo é "uma hierarquia de analogias reais" chamada à deificação através da "sinergia"; Ou seja, através da cooperação livre da vontade criada com as idéias-volições Divinas.

A teologia oriental é sempre soteriológica. Inclinada sobre o problema da união com Deus, não entra em aliança com a filosofia como faz o escolasticismo. O homem é, por natureza, ligado ao mundo inteiro. Se Adão tivesse sido guiado pelo amor de Deus e se tivesse entregado-se inteiramente a Deus, ele teria unido o mundo inteiro e o conduzido a Deus, enquanto que Deus, por Sua vez, teria Se entregado ao homem, que então teria recebido pela graça tudo o que Deus tem por natureza (São Máximo). Mas Adão falhou em sua tarefa cósmica e essa foi retomada pelo Filho de Deus, o Deus-homem, o Segundo Adão. O pensamento oriental está sempre preocupado com o mundo como um todo. "Isto encontra expressão na teologia, na poesia litúrgica, na iconografia e, talvez, sobretudo, nas obras dos mestres ascéticos da vida espiritual da Igreja Oriental". Toda a história do mundo é considerada como "a história da Igreja que é o fundamento místico do mundo".

As palavras do Gênesis nas quais ao criar o homem Deus "soprou" nele o sopro da vida não devem ser entendidas como significando que o espírito do homem é uma partícula da Deidade. Isso implicaria que o homem é "Deus preso em um corpo" ou "uma combinação de Deus e animal"; assim a origem do mal seria incompreensível e "o próprio Deus teria pecado em Adão." As palavras da Bíblia devem ser interpretadas como significando que "o espírito do homem está intimamente ligado à graça de Deus".

No homem, como em Deus, a distinção deve ser feita entre natureza e personalidade. A natureza é a mesma em todos os homens. Adão antes da queda era um homem universal, mas devido à queda a natureza humana foi quebrada e dividida em muitos indivíduos. Cada personalidade é única, e é indefinível e incognoscível em sua perfeição como a imagem de Deus, de acordo com São Gregório de Nissa. "A personalidade não é uma parte do todo, ela contém o todo"; é capaz de ser livre de sua própria natureza e de subordiná-la a si mesma. Por causa da Queda, o homem perde sua verdadeira liberdade - e age de acordo com suas qualidades naturais ou seu "caráter"; ele se torna menos pessoal, uma "mistura de personalidade e natureza". Essa mistura é chamada na literatura ascética oriental de "individualidade" (NT: selfhood). O restabelecimento da personalidade é alcançado através da renúncia à individualidade, através do livre sacrifício da vontade individual. Ao deixar de existir por si, a personalidade "expande-se infinitamente e é enriquecida por tudo o que pertence a todos". Torna-se a imagem perfeita de Deus e adquire a semelhança Divina; isto é, torna-se "um deus criado" ou "deus pela graça". Esta deificação é alcançada através da cooperação de duas vontades - a vontade do Espírito Santo concedendo graça, e a vontade do homem recebendo a graça.

O pecado, a natureza e a morte devem ser conquistados para que a deificação possa ser alcançada. Esses três obstáculos foram superados pelo Deus-homem Jesus Cristo, o Novo Adão que uniu o ser criado e o não-criado. Seu corpo é a Igreja na qual devem ser distinguidos dois aspectos: o cristológico e o pneumatológico, o orgânico e o pessoal. No seu aspecto cristológico, a Igreja é um organismo teo-andrico "com duas naturezas, duas vontades, duas atividades, inseparáveis, mas distintas uma da outra".  Portanto, na história do dogma, todas as heresias cristológicas são repetidas na eclesiologia. A obra de Cristo é direcionada à natureza humana, a qual está unificada em Sua Pessoa. O aspecto pneumatológico da Igreja consiste no fato de que o Espírito Santo dá a cada personalidade a plenitude da divindade de acordo com seu caráter individual único. A unicidade da natureza humana está conectada com a Pessoa de Cristo, a multiplicidade das pessoas humanas - com a graça do Espírito Santo. A obra de Cristo e a obra do Espírito Santo são inseparáveis uma da outra. A "catolicidade" da Igreja consiste na harmonia ou, em certa medida, na identidade da unidade e da multiplicidade: a plenitude do todo não é a soma das partes, pois cada parte possui a mesma plenitude que o todo. A Santíssima Trindade é o ideal desta catolicidade, "o cânone de todos os cânones da Igreja". A Igreja com seus sacramentos é a condição objetiva de nossa união com Deus e as condições subjetivas dependem de nós mesmos.

Cristo é a cabeça da Igreja no mesmo sentido em que o marido é a cabeça do corpo único dos dois parceiros no casamento: a Igreja é Sua Esposa, e o coração da Igreja é a Mãe de Deus. São Gregório Palamas diz que na Virgem Maria "Deus uniu todos os aspectos parciais da beleza distribuídos entre outras criaturas e fez dela o adorno comum do reino de todos os seres, visíveis e invisíveis. Através dela homens e anjos adquirem a graça". 

A deificação deve começar na Terra com nosso preparo para a vida eterna, e por mais que possamos ter sucesso nisso, não podemos fazer disso um mérito. "A concepção de mérito é estranha à tradição da Igreja Oriental". Para começar a vida espiritual devemos dirigir nossa vontade para Deus, renunciar o mundo e alcançar uma harmonia entre a razão e o coração. "Sem a razão, o coração é cego, sem o coração - que é o centro de toda atividade - a razão é impotente". A consciência razoável, a "vocação", é a condição necessária da vida ascética. 

A alma não pode ser curada a menos que o homem direcione sua vontade a Deus com fé perfeita na oração, que é "um encontro pessoal com Deus" e que nos treina no amor de Deus. Primeiramente a oração encontra expressão nas palavras, mas nos estágios mais elevados, quando a vontade é plenamente entregue a Deus, a oração espiritual acontece sem palavras: é a contemplação, "descanso absoluto e paz, participação nas energias do Espírito Santo" diz São Isaque o Sírio. A oração deve tornar-se contínua. Os ascetas da Igreja Oriental fazem uso da prática da oração espiritual ou interna, conhecida como ἡσυχασμός. A curta oração a Jesus, "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador" é repetida o tempo todo e se torna a segunda natureza do monge. O propósito dessa oração é alcançar um contínuo estado "diante de Deus". A oração não deve ser acompanhada do desejo de experimentar o êxtase ou de ter imagens sensíveis dos anjos, de Cristo ou da Nossa Senhora. Nilus, o Sinaíta, advertiu contra esse erro já no século IV.

A livre renúncia à própria natureza e a união com Deus leva a uma perfeita realização da personalidade humana com a ajuda da graça, à plena consciência ou "gnosis", e faz do homem um "filho da luz" (Efés. -14). A Santa Escritura está cheia de expressões relacionadas com a luz, e o próprio Deus é chamado Luz. São Simeão, o Novo Teólogo, diz que "a luz da glória de Deus precede a Sua face". No século XIV houve discussões sobre essa luz entre os tomistas orientais e os adeptos da tradição da Igreja Oriental. Eles discutiram "a realidade da experiência mística, a possibilidade de conscientemente contemplar Deus, a natureza criada ou incriada da graça". São Gregório Palamas diz que "Deus é chamado Luz não em Sua natureza, mas em Suas energias". Essa luz é "o caráter visível da Divindade, das energias ou da graça pela qual Deus Se faz conhecido. Essa luz preenche simultaneamente os sentidos e o intelecto, revelando-se a todo o homem e não apenas a alguma de suas faculdades". Portanto, São Simeão, o Novo Teólogo, chama essa luz de invisível e, ao mesmo tempo, afirma que ela pode ser vista. É a luz imaterial incriada da glória de Deus. Essa luz sempre esteve no corpo de Cristo, invisível aos homens, mas no Monte Tabor a natureza dos Apóstolos sofreu uma mudança graciosa necessária para a experiência mística e para a visão daquela luz". No final escatológico da história esta transfiguração da personalidade e sua união com Deus "se manifestará de maneira diferente em cada ser humano que tenha adquirido a graça do Espírito Santo na Igreja. Mas os limites da Igreja no outro lado da morte e a possibilidade de salvação para aqueles que não viram a luz nesta vida permanecem para nós um mistério da misericórdia de Deus, sobre o qual não ousamos concluir, mas que não podemos limitar em conformidade com as normas humanas".


Na conclusão de seu livro V. Lossky afirma que a teologia apofática da Igreja Oriental ao buscar a perfeita plenitude do ser eleva-se dos conceitos à contemplação e transforma dogmas na experiência dos mistérios divinos inexprimíveis. Cristo aparece sempre na Igreja "na plenitude de Sua divindade, triunfante e glorificado mesmo em Sua paixão, mesmo no sepulcro". A adoração da humanidade de Cristo é estranha à tradição oriental, ou melhor, Sua humanidade deificada aparece nela na mesma forma glorificada a qual os Apóstolos viram no Monte Tabor. Os santos da Igreja Oriental nunca tiveram estigmas mas eles "foram muitas vezes transfigurados pela luz interior da graça incriada e apareceram radiante como Cristo na Transfiguração". "A consciência da plenitude do Espírito Santo, dada a cada membro da Igreja, em proporção ao seu crescimento espiritual, expulsa as trevas da morte, o medo do Juízo, o abismo do inferno, e direciona nosso olhar unicamente para o Senhor aproximando-se em Sua glória. Esta alegria da ressurreição e da vida eterna faz da noite de Páscoa a festa da fé, quando todos participam em pequena medida, mesmo que por alguns momentos, na plenitude do oitavo dia em que não haverá fim". Por isso, todos os anos, nas Matinas de Páscoa, é lido em voz alta o sermão de São João Crisóstomo, no qual ele diz que o Senhor Deus recebe com igual amor aqueles que vêm na décima primeira hora e aqueles que vêm no início.


N. O. Lossky em History of Russian Philosophy