domingo, 30 de abril de 2017

Ortodoxia e o Ocidente (Christos Yannaras)

O termo "Ocidente" traz consigo diversas conotações. Significa certamente algo mais do que uma região geográfica, e mesmo algo mais do que um fenômeno cultural particular. Significa um desenvolvimento e uma diferenciação únicos na teologia e na espiritualidade comparados à teologia e à espiritualidade do oriente cristão. Geralmente encontramos a parte mais importante dessa diferenciação na área da eclesiologia.

No entanto, para além das conotações específicas do termo "Ocidente", e mesmo para além do desenvolvimento teológico e confessional que significa, penso que hoje somos obrigados a procurar um significado original nesta palavra. É mais evidente em nossos dias do que em tempos anteriores que os termos "Ocidente" e "homem Ocidental" representam uma "postura" ou atitude humana básica em relação ao mundo e à história, uma postura que se desenvolveu nos últimos séculos, crescendo do espírito liberal da Renascença e do surgimento das ciências positivas e da tecnologia. Suas pressuposições, no entanto, remontam aos séculos anteriores e às estruturas mentais e sociais do Ocidente medieval. Antes de prosseguir com qualquer outra coisa, assim,  é necessário definir, ainda que brevemente, a estrutura dessa postura, suas conseqüências históricas e os fatores que a levaram até ela.

Os pressupostos da tecnologia moderna e, consequentemente, das mudanças radicais nas instituições sociais e políticas - a transição completa de uma sociedade industrial agrária para a moderna são muitas vezes atribuídas a Descartes e à preeminência atribuída à capacidade silogística do homem enquanto sujeito. Isso define o contexto histórico e objetivo da postura que procuramos definir. No entanto, a preeminência atribuída ao poder silogístico e à metodologia racionalista e analítica tem suas raízes em épocas muito mais antigas. Heidegger assegurou-nos que Descartes representa o resultado final natural da escolástica ocidental [1]. Mais uma vez, Erwin Panofsky, em seu estudo muito interessante, Arquitetura Gótica e Escolástica [2], mostrou como a arquitetura gótica é a contrapartida tecnológica do pensamento escolástico, um protótipo da aplicação da estrutura analítica do escolasticismo na área do empenho tecnológico. Esta aplicação torna-se o ponto de partida para o desenvolvimento posterior da tecnologia. Paradoxical que isso possa parecer, não é de forma arbitrária ligar a ascensão da tecnologia com a teologia.


Os pressupostos teológicos por trás da tecnologia moderna não se limitam à metodologia analítica da escolástica ocidental. A metodologia escolástica revela uma causa muito mais profunda de reivindicação do homem pelo esforço intelectual para assegurar domínio sobre todo o reino da verdade acessível e por sua tendência para definir e distinguir as fronteiras entre as capacidades do homem e a realidade transcendente de Deus. A definição de teologia de Tomás de Aquino é bem conhecida:

“No entanto, o ensinamento sagrado também faz uso do raciocínio humano, não para provar a fé (porque isso acabaria com o mérito de crer), mas para tornar manifesto algumas das coisas que são dadas neste ensinamento.” [3]


Esse "tornar manifesto" ou a explicação da verdade revelada através do poder do intelecto e o uso rigoroso da razão no âmbito da verdade revelada, enfaticamente estabelecem uma fronteira entre o homem e Deus, entre a capacidade silogística do sujeito e a realidade incompreensível de Deus. No final, o limite é estabelecido entre a natureza divina e a natureza humana, uma consequência que negligencia a unidade das duas naturezas em uma só pessoa, isto é, a possibilidade de participação pessoal e não meramente "clarificação" lógica da verdade divina concernente a Deus. A metodologia analítica escolástica representa, então, uma postura mais profunda que é essencialmente antropocêntrica: a disposição do homem para dominar a verdade que lhe é acessível e dominá-la como indivíduo, como sujeito e como possuidor da capacidade silogística. A esfera imediata da verdade empírica que lhe está aberta, a primeira revelação que ele deve "tornar manifesto", é a realidade do mundo físico, o cosmo criado. O homem na tradição escolástica ocidental não participa pessoalmente da verdade do cosmos. Ele não procura externalizar o significado, o logos das coisas, a revelação da atividade pessoal de Deus, o cosmos. Ele não procura externalizar o significado, o logos das coisas, a revelação da atividade pessoal de Deus no cosmo, mas procura, com seu intelecto individualista, dominar a realidade do mundo físico. Essa postura constitui verdadeiramente a base de todo o fenômeno da tecnologia moderna.


O conceito de homem como mônada individual pensante, como "uma criatura dotada de razão" (animal rationale), coincide com o caráter ontológico mais amplo do pensamento medieval e ocidental (exceto Heidegger). Trata-se de uma ontologia de categorias ónticas, ou seja, uma ontologia que examina tudo o que existe e apreende a sua verdade em termos de conceitos, estabelecendo uma estreita relação entre o objeto de pensamento e seu conceito (adaequatio rei et intellectus). Diretamente ou indiretamente, essa forma ontológica de pensamento identifica a existência e o pensamento (cogito ergo sum) e coloca a questão do princípio da existência, concernente ao Ser, como uma questão sobre a causa das coisas. Ser é o que faz com que as coisas existam. Essa formulação, por si só, é suficiente para indicar o contexto ôntico do Ser, a compreensão do Ser como uma coisa. O Ser, como resultado final específico da referência causal das coisas, é também uma categoria ôntica, um ser entre outros seres, embora qualitativamente maior [4], e a causa de si e de todos os outros seres. Toda a visão teocêntrica do mundo da tradição cultural ocidental baseia-se nesta compreensão ônica do Ser. Deus é o Supremo Ser Divino, a Primeira Causa (causa prima) no esquema da cosmologia, e o princípio avaliativo da Ética.

O resultado direto desse pensamento ontológico, que formou a base racional de toda apologética cristã, no "banimento" de Deus, como é corretamente chamado, do cosmos até sua transferência para o "céu", para um reino que está além das regiões acessíveis à experiência. Este Ser, que é Deus, está separado da esfera da experiência humana pelo tipo de fronteira que separa o conhecido e o desconhecido, a realidade empiricamente inexistente e a realidade empiricamente não-existente, a realidade sensível e a compreensão conceitual. O homem está livre para dominar a natureza e a história. O resultado, historicamente, é uma profunda cisão entre religião e vida, uma espécie de "esquizofrenia espiritual" que basicamente caracteriza a postura ocidental em relação ao mundo e à história. Por um lado, está a vida, suas necessidades e demandas, a obrigação do indivíduo de organizá-lo e atualizar seu potencial, o desejo do indivíduo de transformar dinamicamente seu lugar na história. Por outro lado, há a religião, a intervenção do transcendente na vida cotidiana, uma intervenção estranha à vida, que só pode encontrar ecos lógicos e psicológicos no homem. A expressão da necessidade lógica e psicológica da religião no Ocidente não ocorre através de outras formas além de símbolos. A vida religiosa é separada da experiência diária e da utilização empírica direta do mundo. A única possibilidade experiencial que resta é uma espécie de refúgio psicológico num misticismo de símbolos e na demonstração lógica de verdades metafísicas abstratas. O cristianismo no Ocidente não é uma nova utilização do mundo, mas sim uma utilização de símbolos, um esforço lógico e psicológico para se relacionar com o desconhecido transcendente por meio de alegorias e idéias. Além disso, esses símbolos, tanto quanto possível, são "espiritualizados" e tornados imateriais na Eucaristia, que é um ato concreto de utilização direta do cosmos, os elementos materiais são postos de lado como se devessem necessariamente ser espiritualizados. O vinho é totalmente excluído dos elementos da comunhão e o pão deixa de ser o pão da vida cotidiana do homem: é perdido, sem levedura, uma sombra de sua essência, um símbolo espiritualizado e não o pão que sustenta o homem. A vida religiosa do Ocidente constitui uma "aspersão" de elementos externos, aditivos, em vez de uma imersão nos elementos do mundo, uma espécie de morte que antecipa a ressurreição. É típico que, na disposição horizontal da cidade medieval europeia, a religião rompe desde cima, de forma vertical, expressa pela arquitetura gótica que assim encarna a autoridade do transcendente dentro da vida humana. Tal autoridade, dependente de categorias lógicas e psicológicas, não pode deixar de provocar a rebelião da parte do homem. De dentro de uma catedral gótica pode-se compreender e justificar toda forma de rebelião do homem europeu contra a autoridade religiosa desde a Reforma e do Renascimento ao freudismo e ao marxismo. O homem colocaria em risco a possibilidade de manter sua própria humanidade se tolerasse a autoridade de um Deus que o confronta com magnitudes tão destrutivas, apesar de que só símbolos a expressam.


A rebelião contra o transcendente é um aspecto essencial da postura que o Ocidente desenvolveu contra o mundo e a história. É um pressuposto integral dessa postura e um resultado mais consistente da fronteira divisória estabelecida entre a capacidade humana e a autoridade divina.


O gênio filosófico de Kant, dentro dos pressupostos do pietismo protestante, procurou preencher o fosso e a oposição entre o transcendente e o mundano, entre religião e vida. A ponte é construída sobre o terreno da finalidade ética. Deus não é definido em termos de lógica, mas da necessidade ética. Ele constitui uma verdade empírica, na medida em que está relacionado com a exigência ética inerente à consciência humana. Deus se torna o ponto de partida empírico da razão pura para a definição da Primeira Causa e o propósito final do ato ético. O divino é interpretado em termos de obrigação ética. A postura do individualismo e do éticismo desenvolvidos pela primeira vez na escolástica ocidental foi completada pelo ponto de partida ontológico de Kant que, simultaneamente, resumiu o desenvolvimento inevitável no Ocidente, tanto do cristianismo quanto de todos os movimentos anti-cristãos. Depois dele, até os mais radicais adversários da tradição metafísica ocidental de Marx a Sartre (com talvez a única exceção de Heidegger), permaneceram presos à compreensão ética do problema da ontologia. E, no que se refere à vida cristã, estamos vivendo hoje dentro do âmbito muito amplo que implica o termo "Ocidente" e a aplicação mais completa possível dos pontos de vista de Kant. O cristianismo, em sua maior parte, é uma ética individualista - a mais perfeita, naturalmente, em comparação com a ética anterior - que encontra seu ponto alto no comando de "amar uns aos outros", isto é, na obrigação do indivíduo de mostrar altruísmo, fraternidade e impecáveis ​​relações sociais. Penso que hoje o éticismo é o estágio final e definitivo no desenvolvimento da postura geral do homem ocidental. Seu significado é sentido sobretudo dentro das Igrejas cristãs em que o éticismo tem sido capaz de eliminar o primado da experiência pessoal da verdade, isto é, a primazia do dogma. Através de várias formas de pietismo eticista. Tem sido capaz de de estamar de forma semelhante a todas as Igrejas e confissões, independentemente de suas diferenças dogmáticas fundamentais. A Verdade da Igreja, os dogmas, permanecem princípios teóricos mortos sem a menor conseqüência no plano da piedade prática dos fiéis. Esta é a razão pela qual muitas vezes se diz que o que separa as diversas Igrejas cristãs hoje parece ser uma espécie de resíduo histórico de formas irrelevantes e escolásticas, ou seja, dogmas. Em contradição com os dogmas, os homens apresentam e proclamam o mandamento do amor, a exigência ética de unir as Igrejas divididas, uma atitude totalmente em linha com a base ética do pietismo e com o racionalismo do homem ocidental. A vida da Igreja é vista como nada além de uma ética social comum a todas as confissões. Com base no espírito pietista comum, a unidade das Igrejas já se tornou  a princípio - um fato, Kant é o precursor desta unidade e o precursor do movimento ecumênico.




Resumamos os elementos básicos da postura do homem ocidental diante do mundo e da história. São os seguintes: a prioridade da explicação conceitual da verdade revelada - a fronteira divisória entre o transcendente e o mundo - a vontade de dominar a natureza e a história; o banimento de Deus para um reino empiricamente inacessível; a separação da religião da vida e a redução da religião aos símbolos; a eliminação da ontologia, ou seja, o dogma, e sua substituição pela ética. Hoje, certamente, testemunhamos uma reestruturação radical da cultura ocidental, um processo no qual todas as formas de vida tradicionais das sociedades ocidentais são questionadas. Esta constitui uma grande questão em si e precisa de estudo separado. É muito cedo para tirar conclusões sobre se e em que medida o poderoso questionamento contemporâneo dos esquemas políticos, religiosos e sociais tradicionais está realmente alterando a postura original e mais fundamental do homem ocidental diante do mundo e da história.


Sem dúvida, nos encontramos diante de uma nova moralidade que está ganhando terreno diariamente entre os homens mais inquiridores e alertas do nosso tempo. Esta é uma moralidade de ação histórica dinâmica contra todas as formas de opressão humana que, abertamente ou sob uma aparência enganosa, negam a personalidade do homem. Procura estabelecer uma nova compreensão ontológica da existência humana como a auto-realização dinâmica da liberdade resultante da ação histórica. Certamente aqui está uma moral objetiva e socialmente mais genuína do que a que o cristianismo ocidental desenvolveu. Ainda assim, permanece a questão de saber se a nova moralidade está basicamente afastando-se da base ontológica sobre a qual a postura do homem ocidental em relação ao mundo e à história foi construída. Em termos de sinais já existentes, pode-se discernir na nova moralidade a mesma confiança nas possibilidades de realização individual, a mesma persistência utópica na busca de dominar a natureza e a história, a mesma ignorância da base ontológica do mal e do irracional no processo histórico. Teologicamente, essas tendências marcam a ausência do realismo expresso pela verdade teológica da Ortodoxia sobre o homem e o mundo, uma ausência que parece deixar até mesmo o mais nobre dos esforços éticos aos ares ou parece vinculá-los tragicamente ao irracional na história.


No entanto, para além das mudanças culturais e das transformações éticas no Ocidente, a concretização final e mais convincente da postura do homem ocidental é o desenvolvimento da tecnologia. A tecnologia incorpora tanto tangencialmente como especificamente todas as etapas do desenvolvimento religioso do homem ocidental: a prioridade da mente, a fronteira divisória entre o transcendente e o mundano e a redução da relação pessoal com o mundo para uma atitude de dominação do homem sobre a natureza e história. A tecnologia, que hoje determina a relação do homem com o mundo e define seu lugar na história, é a conseqüência mais típica da postura ou ethos fundamental do homem ocidental. Isto é verdade tanto para a tecnologia como um fenômeno da separação orgânica do homem do ciclo total da vida e como um fenômeno do emaranhamento da história na rede de forças impessoais (como a economia e o militarismo) que nunca podem aceitar a premissa da singularidade da existência humana pessoal. Este problema certamente não é o crescimento e o desenvolvimento da tecnologia como tal. Não importa o quanto a tecnologia se desenvolva, ela nunca deixa de ser uma utilização do mundo que é necessária, legítima e louvável. O problema surge no momento em que essa utilização do mundo serve exclusivamente à autonomia fugitiva do homem, à separação insensível do homem do ciclo da vida, à negação da dimensão pessoal e ao desejo de dominar individualisticamente o mundo. A importância absoluta atribuída à tecnologia expressa uma atitude de um tipo particular de utilização do mundo; uma utilização que não vê a ordem criada como a obra de um Deus pessoal, nem procura revelar o significado das coisas (o logos) e a revelação das energias divinas incriadas no mundo; mas uma utilização que pressupõe a autonomia das necessidades e desejos do homem e o domínio arbitrário do homem sobre o mundo físico.

De outra perspectiva, pode-se dizer que a postura implícita nos termos "Ocidente" e "homem Ocidental", e encarnada pela tecnologia, está exatamente na extremidade oposta a esse tipo de posição em relação ao mundo e à história que é pressuposta pela experiência e o pensamento da Igreja Ortodoxa. Se aceitarmos que, como ensina a Igreja Ortodoxa, a relação do homem com Deus não é simplesmente uma relação intelectual e ética, mas uma relação inteiramente e realisticamente baseada na aceitação e uso das coisas criadas, isto é, numa utilização litúrgica eucarística do mundo, então é a tecnologia, com sua posição particular e caráter, que constitui o problema teológico básico no encontro entre a Ortodoxia e o Ocidente. Este encontro ocorre antes de tudo no nível da realidade da vida contemporânea de um cristão ortodoxo, antes de ocorrer no nível do diálogo teológico abstrato ou das relações inter-eclesiais. A tecnologia impõe ao cristão ortodoxo uma certa postura na vida. Na medida em que o cristão ortodoxo é um homem contemporâneo e compartilha as circunstâncias da vida criadas pela tecnologia, ele é obrigado a adotar também a postura diante do mundo e da história que a vida religiosa no Ocidente desenvolveu.


A teologia e a espiritualidade ortodoxa, baseadas numa relação pessoal com o mundo e uma utilização eucarística-litúrgica do mundo, parecem realizar-se completamente dentro da esfera de uma sociedade agrária. Numa sociedade agrária, a relação do homem com o mundo, assim como sua relação com Deus, era uma questão de experiência direta e não o resultado de um discurso intelectual abstrato. Isso era verdade não só do trabalhador, mas também do artesão e do comerciante. Todos viveram pelo uso imediato do mundo material e suas vidas eram apenas um estudo da natureza e do processo cósmico total. Era uma vida vivida em harmonia com o cosmos, ligada organicamente ao ciclo de vida universal do nascimento, do crescimento, da fruição, da decadência e da morte, da mudança das estações, das forças da terra e em contato com a dimensão pessoal do cosmos.


O homem contemporâneo participa de forma bastante indireta no ciclo de vida do cosmos. Numa megalópole hoje, a vida está isolada da natureza, estreitamente isolada em seu próprio ciclo, restrita às circunstâncias impostas pela tecnologia. O homem conhece o uso de máquinas, mas não do mundo. Ele não sabe que o pão e o vinho resumem a vida e que representam o trabalho e a preocupação de um ano inteiro com quatro estações, com a semeadura, o crescimento, a fruição e a ansiedade sobre o vento e a tempestade. Para ele, as orações da Igreja são ecos de outra experiência: "E assim como este pão foi espalhado sobre os montes e tornou-se um, assim que a vossa Igreja seja reunida dos confins da terra ao vosso Reino."[5] Essa imagem é, sem dúvida, poética e bela, mas de nenhuma maneira relevante para a vida do homem contemporâneo. Seu pão é antisepticamente embalado em celofane, colocado para venda em vitrines de lojas ao lado de conservas e artigos de barbear. O pão para ele já não tem o mesmo significado central, já que outros alimentos reivindicam prioridade. Consequentemente, o único caminho que lhe é aberto para a compreensão da Eucaristia da Igreja e a utilização eucarística do mundo é através da mente. Ainda assim, ele pode entender o que ocorre na Eucaristia e aceitar a postura na vida que a Igreja representa, mas ele realmente não experimenta nenhuma delas.


Permitam-me repetir que a tecnologia como tal não impede a utilização eucarística do mundo. A fabricação de um refrigerador ou a montagem de um motor de combustão interna poderia ser tanto um ato eucarístico quanto o ato de semear ou colher. A experiência ortodoxa da relação do homem com o mundo poderia hoje trazer à tona o caráter humanizador da economia, a dimensão profética da ciência, o caráter sacerdotal da política, o caráter revelacional da arte, o caráter sacramental do amor. Mas tudo isso pressupõe uma postura humana particular em relação ao mundo físico e uma utilização do mundo radicalmente diferente daquela que a tecnologia implica.


Este, penso eu, é o problema teológico central nas relações entre a Ortodoxia e o Ocidente.


O encontro da Ortodoxia com o Ocidente nos últimos dois séculos ocorreu quase que exclusivamente no âmbito da teologia e tradição ortodoxa russa. A teologia ortodoxa grega, desde os séculos XVIII e XVII, mas especialmente desde o estabelecimento da Grécia moderna como nação livre, certamente encontrou o Ocidente, mas não tanto para dialogar com ele e fortalecê-lo com uma forte consciência ortodoxa, mas para aceitar sua influência passiva e acrítica. Muitas vezes absorveu, até mesmo inalterado, os critérios, a metodologia e muitos pontos de vista específicos da teologia ocidental.


O encontro da teologia ortodoxa grega nos recentemente com o Ocidente é um assunto digno de estudo em si. Aqui pode ser tocado apenas brevemente, embora represente um aspecto essencial do nosso tópico. Pode-se dizer que, desde os últimos séculos da ocupação turca até hoje, os intelectuais gregos mostraram uma admiração ilimitada e quase infantil de todos os desenvolvimentos do racionalismo ocidental. Emergindo da escuridão intelectual da opressão otomana, os gregos olhavam para o Ocidente como um farol de civilização e ciência. Quaisquer idéias de progresso que pudessem conceber foram automaticamente moldadas em modelos ocidentais. Durante os últimos séculos do domínio otomoano, os intelectuais da Igreja como, por exemplo, Vikentios Damodos, Nikiphoros Theotokis, Evgenios Voulgaris, Neophytos Vamvas e outros tentaram trazer um renascimento religioso entre o povo grego escravizado, trazendo para a esfera da vida grega e pensamento a problemática do cristianismo ocidental. Em suas obras e sermões se pode encontrar inalteradas muitas idéias típicas do pietismo, a teologia natural, a religião de sentimento, ‘o cristianismo como cultura’ (Kulturchristentum), e, em geral, da teologia ocidental como estava sob a influência do Iluminismo.


Com o estabelecimento de uma universidade na nação livre grega e o surgimento da teologia acadêmica, a influência da teologia ocidental aumentou e dominou. Na teologia universitária tomou a forma de uma ciência autônoma organizada de acordo com protótipos ocidentais apenas. Desde o início, a teologia acadêmica greco-ortodoxa era uma mistura de pietismo e racionalismo. A teologia, organizada em modelos conceituais, demonstrativos e apologéticos, foi fortemente separada da vida e da piedade da Igreja. Formalmente não deixou de ser ortodoxa, obediente à letra de formulações dogmáticas. No entanto, a separação das formulações dogmáticas da experiência e da espiritualidade da Igreja, acompanhada de uma aceitação acrítica do espírito e da metodologia da teologia ocidental, foi precisamente a traição mais séria do caráter da teologia ortodoxa. As obras dogmáticas de Z. Rosis e K. Dyovouniotis, a patrologia de D. Balanos, a introdução do Antigo Testamento por P. Bratsiotis e a História da Igreja de V. Stephanidis são exemplos típicos deste encontro peculiar da teologia ortodoxa grega com o Oeste.


Certamente também houve reações. Os nomes de Papoulakos e Papadiamantis são dignos de menção aqui, mas esses homens não vieram do mesmo ambiente acadêmico e não foram capazes de influenciá-lo. Além disso, o clero e as pessoas, por mais firmes que permanecessem nas tradições, estavam em um nível muito baixo de educação e incapazes de desafiar os intelectuais treinados no Ocidente. A teologia ortodoxa grega e a vida da igreja hoje ainda são dominadas pela perspectiva teológica das obras dogmáticas de C. Androutsos e P. Trembelas. As obras de ambos representam exemplos típicos de critérios ocidentais impostos à teologia dogmática ortodoxa. Os pontos de vistas de Androutsos e Trembelas em relação à eclesiologia e à doutrina do Espírito Santo, bem como à cristologia e à soteriologia, são diferentes das do Ocidente apenas na letra da formulação dogmática. Mas, como pressupostos, critérios e mentalidade teológica, são um só. Ambos os estudiosos gregos começam com uma gnoseologia teológica que se baseia exclusivamente na compreensão racional do indivíduo e no sentimento religioso; nenhuma sugestão de apofaticismo, nenhuma sugestão de participação pessoal na verdade revelada pode ser encontrada em suas obras. Eles não conhecem a distinção entre a Essência e as Energias de Deus, a diferença qualitativa que distingue a teologia ortodoxa de qualquer outra teologia e espiritualidade, e ambos são totalmente silenciosos em relação à tradição ascética e mística dos Padres do Oriente. Por outro lado, é dado um completo aval à concepção escolástica ôntica de Deus, à compreensão jurídica ocidental das relações entre Deus e o homem, à teoria da satisfação da justiça divina através da morte de Cristo na Cruz, à compreensão jurídica da transmissão do pecado original, da autonomia dos leigos e de outras idéias ocidentais semelhantes.

No nível da teologia acadêmica, Androutsos e Trembelas expressam as maiores incursões do racionalismo e do pietismo ocidental na esfera da teologia ortodoxa grega. No nível da piedade leiga tais incursões deram início a um amplo movimento pietista, no início deste século, conhecido como "Zoe" (Vida), embora mais tarde o movimento tenha experimentado várias mudanças tanto na forma e como no nome. O movimento pietista de "Zoe" eliminou até mesmo a última possibilidade de diálogo substancial na Grécia entre a Ortodoxia e o Ocidente, a possibilidade, isto é, inerente à espiritualidade e piedade leiga. 'Zoe' ganhou terreno rapidamente entre aqules da burguesia que admirava tudo de origem européia. Ele impôs formas religiosas puramente ocidentais, um éticismo construído sobre o racionalismo, uma compreensão da fé inteiramente conceitual e baseada em premissas apologéticas e utilitárias. Como movimento, tornou-se independente da vida da paróquia e do bispo local, separando a piedade da vida da igreja e limitando-a ao comportamento ético individual. Estabeleceu uma espécie de culto leigo independente, uma espécie de "serviço da Palavra" (Wortgottesdienst) protestante, com leituras bíblicas, hinos protestantes e orações improvisadas. Outras expressões do movimento inclui a tradução de muitos manuais ocidentais sobre a vida espiritual, a substituição da iconografia ortodoxa pela arte religiosa ocidental, a polêmica contra o monaquismo e a Montanha Sagrada e a introdução de “ordens” baseadas em modelos ocidentais.


O racionalismo científico da teologia acadêmica, por um lado, e o pietismo de "Zoe", por outro, criaram um cenário dentro da Igreja Ortodoxa na Grécia que dificilmente favoreceu o diálogo substancial com o Ocidente. Hoje, certamente, existem sinais de esperança entre a nova geração de teólogos - sinais que, no entanto, não alteram o clima global. Há também sinais de esperança dentro da esfera mais ampla do mundo intelectual e artístico da Grécia, ou seja, entre os representantes do pensamento e da arte grega, que mostram interesse especial no estudo e revitalização da tradição espiritual ortodoxa.


É sabido que semelhantes círculos intelectuais deste tipo foram responsáveis ​​pelo desenvolvimento de um diálogo substancial entre a teologia ortodoxa russa e o Ocidente. A teologia ortodoxa russa, também, passou por um período de escolasticismo. Mas deve-se reconhecer que logo a superou. As influências ocidentais não estão totalmente ausentes nos teólogos russos e, mais geralmente, da filosofia russa. De qualquer forma, deve-se notar que na Rússia, durante o século XIX, o diálogo substancial com o Ocidente foi inaugurado não por homens que admiravam e queriam imitar ocidentalmente, não por "ocidentais", mas por seus oponentes, os eslavófilos. Os eslavófilos tinham um profundo interesse no encontro com o Ocidente e eram "eslavófilos" precisamente em relação ao Ocidente: a revista publicada pelo grupo de Kireevski ca. 1832 era intitulado O Europeu. Tanto Kireevski como Khomiakov, assim como outros e eslavófilos menos conhecidos, como Aksakov e Samarin, alimentaram um profundo amor pelo Ocidente e trabalharam com o ideal de trazer uma síntese da civilização ocidental e os princípios fundamentais da espiritualidade ortodoxa russa. Os eslavófilos acreditavam que a ortodoxia continha respostas aos problemas e ao impasse do Ocidente, respostas estas incorporadas na teologia experiencial do povo e na tradição viva da Igreja.


Não há necessidade de examinar mais a fundo o desenvolvimento histórico do movimento eslavófilo, que é bem conhecido. O que nos interessa é o encontro contemporâneo da teologia ortodoxa russa com o Ocidente, isto é, a teologia da diáspora russa pós-Revolução. A presença de teólogos russos e, mais geralmente, de filósofos e intelectuais russos no Ocidente foi, de certa forma, uma continuação do movimento eslavófilo, uma continuação da disposição clara e ardente de dialogar com o Ocidente e de apresentar o ensinamento Ortodoxo como a solução para os problemas teológicos e culturais ocidentais que pareciam ter chegado a um impasse. Os pontos teológicos ortodoxos básicos defendidos por esses teólogos e intelectuais russos neste diálogo representam quatro grandes áreas do pensamento ortodoxo: (1) o caráter apofático e místico da teologia ortodoxa; (2) a piedade "ética" e prática enraizada na tradição ascética (Philokalia); (3) as dimensões eucarísticas da eclesiologia, e (4) a revitalização da teologia dos ícones. A ênfase dada ao estudo da teologia de São Gregório Palamas e a atenção dada à sua importância para os diferentes desenvolvimentos da tradição ocidental da oriental, marcou toda a "escola" da teologia russa na diáspora de "Neo-Palamita".



Não há necessidade aqui de enfatizar o significado da teologia Neo-Palamita no encontro da Ortodoxia com o Ocidente em nossos tempos. É bem sabido que, dentro de poucas décadas, a visão da Europa sobre a Ortodoxia mudou radicalmente e pode-se observar um surpreendente interesse no estudo das fontes da teologia e tradição ortodoxa, tanto entre os teólogos católicos quanto protestantes. Isto constitui um diálogo substancial que não só tem um efeito de despertar na teologia ocidental, mas também cria estímulos significativos para a teologia ortodoxa, orientando a teologia ortodoxa para uma maior autoconsciência teológica. Além disso, permita que o escritor reconheça, por razões de endividamento pessoal, que um número não insignificante de teólogos ortodoxos gregos mantém nossa identidade teológica, apesar de nosso treinamento teológico desfavoravelmente escolástico e eticamente orientado, graças ao contato com a teologia russa da diáspora...


 [...]

A virada da teologia ortodoxa para a realidade escatológica da Igreja significa um retorno à auto-compreensão escatológica da própria Ortodoxia no contexto histórico concreto do espaço e do tempo. É a única possibilidade de se preparar para uma encarnação histórica da consciência ortodoxa e para uma verdadeira mudança na nossa posição contemporânea quanto ao mundo e à história. [...] Durante este trágico período da vida da Igreja, o único consolo ou antídoto para a ausência da experiência escatológica na Igreja seria a presença de dons individuais do Espírito Santo: o dom da profecia, o dom do ensinamento teológico, o dom das línguas, isto é, as manifestações reveladoras da arte, o dom do encorajamento e da consolação, o dom da bondade e da simpatia para com o homem. Em cada pessoa, cada dom serviria como um sinal do caminho da Igreja através do árido deserto de sua secularização, no caminho para a ressurreição da Nova Cidade para a qual desejamos. Fora e em torno de todos esses dons individuais existiria somente o deserto - o triunfo do irracional no mundo e na história, o domínio dos poderes desta era, a transformação da Igreja em uma instituição decadente da convencionalidade social; em outras palavras, a experiência da crucificação de Cristo, a vitória dos espíritos elementares do mundo, a escuridão do tempo entre a sexta e a nona hora. E abençoado é aquele que não será escandalizado à espera da nova revelação do Espírito, isto é, o Pentecostes final da Igreja.

Artigo lido na Conferência Inter-Ortodoxa em Brookline, Mass., em setembro de 1970: traduzido pelo Pe. Theodore Stylianopoulos (grego-inglês), reimpresso de Eastern Churches Review 111, No. 3 (1971) em A.J. Philippou (ed.), Orthodoxy, Life and Freedom: Essays in Honour of Archbishop Iakovos  (Studion Publications, Oxford: 1973), pp. 130-147

NOTAS

1. "Todo aquele que está familiarizado com a Idade Média percebe que Descartes é "dependente" da escolástica medieval e emprega sua terminologia" (Being and Time, Londres 1962, p.46, no original Sein und Zeit, 1931, página 25). Veja também o filósofo católico romano P. Hirschberger em Geschichte der Philosophie 11 (Freiburg, ed. 6, 1963), p. 104.
2. (1951), ed. 2, Cleveland 1964.
3. Summa Theol. 1, q. 1, art. 8, ad2; "Utitur tamen sacra doctrina etiam ratione humana, non quidem ad probandam fidem, quia per hoc tolleretur meritum fidei, sed ad  manifestandum. aliqua quae traduntur in hac doctrina".
4. Sobre akrotaton, thei on, genos timiotaton (Aristóteles)
5. Didache 9, 4.

2 comentários:

  1. Obrigada por este site! Quero ler tudo!

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  2. Tony, veja os trabalhos de D. Caputo sobre Heidegger e Tomás de Aquino e a crítica que ele faz de certa leitura existencialista da obra de Tomás de Aquino feita por Gilson. Com certeza a diferença ontológica de Heidegger foi uma grande intuição de Heidegger acerca do "esquecimento do Ser" com a metafísica ocidental.

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