quarta-feira, 31 de maio de 2017

Epistemologia Ortodoxa e a cura da Alma (Metropolita Hierotheos [Vlachos] de Nafpaktos)

O tema da epistemologia pertence a este livro e constitui o capítulo final, pois está intimamente relacionado com a cura da alma do homem. Os capítulos anteriores mostraram que a queda, a doença e a morte do homem são precisamente a morte de sua alma, nous, coração e razão, sob a influência de maus pensamentos. A queda é primariamente a queda do nous. Quando a alma, a mente e o coração são curados, alcança-se o conhecimento de Deus. Na verdade, não é somente quando são curados que adquire-se o conhecimento de Deus, mas também na medida em que são curados. Quando são curados tão completamente quanto possível, alcança-se um conhecimento de Deus que não se trata de palavras sobre Deus, mas o conhecer Deus nEle mesmo. Em outras palavras, é no coração curado que Deus é revelado e concede conhecimento de Si mesmo. Assim, é claro que a epistemologia ortodoxa está intimamente relacionada com a terapia da alma. O conhecimento de Deus aumenta à medida que aumenta a cura, e um conhecimento puro de Deus é dado àquela pessoa que foi purificada e curada.

A fim de examinar isso com mais clareza, podemos nos concentrar nos ensinamentos de dois Padres da Igreja: São Isaac o Sírio e São Gregório Palamas. Examinaremos primeiro os três graus de conhecimento de acordo com São Isaac, o sírio, e depois o conhecimento de Deus, segundo São Gregório Palamas.



1. Os três graus de conhecimento segundo São Isaac, o Sírio

São Isaac, o Sírio, desenvolve o tema dos três graus de conhecimento nos capítulos 52 e 53 de suas Homilias Ascéticas.

Ele começa por contrastar conhecimento e fé. O conhecimento humano é marcado pelo fato de que não possui autoridade alguma para fazer algo "sem investigação e exame", mas deve investigar se o que ele deseja é possível (p.254). No conhecimento humano há uma boa parte de inteligência, e é principalmente a inteligência caída que está em ação, uma vez que ultrapassa seus limites naturais; isto é, uma inteligência que igualmente domina o nous. A fé, entretanto, tem limites diferentes, e aqui parece estar sua grande diferença do conhecimento humano, assim como seu grande valor. São Isaac diz que quando usamos a palavra "fé" não queremos dizer a transmissão das verdades dogmáticas sobre as Pessoas da Santíssima Trindade, sobre Cristo tornar-se homem e sobre a assunção da natureza humana pela Segunda Pessoa da Trindade, "embora esta fé seja também muito elevada", mas o significado principal do que chamamos de fé é "aquela luz que pela graça nasce na alma e fortalece o coração pelo testemunho da mente, tornando-a indubitável pela certeza da esperança". Esta fé espiritual não aprende os mistérios pela tradição oral, "mas com olhos espirituais contempla os mistérios escondidos na alma e as riquezas secretas e divinas que estão escondidas longe dos olhos dos filhos da carne, mas são reveladas pelo o espírito para aqueles que habitam na mesa de Cristo através do estudo das Suas leis" (p.262). Isto quer dizer que, enquanto o conhecimento humano é adquirido através da atividade da inteligência e através da investigação humana, o conhecimento divino é adquirido através da fé. Esta fé é principalmente aquela que nasce na alma através da luz da graça, e através deste poder se aprendem todos os mistérios que estão escondidos dos olhos dos homens carnais do nosso tempo. Portanto, "a fé é mais sutil do que o conhecimento, assim como o conhecimento é mais sutil do que as coisas palpáveis" (p.262). A fé, que é conhecimento divino, é mais sutil do que o conhecimento humano.

São Isaac explica a diferença entre conhecimento humano e fé. O conhecimento humano não pode aprender sem exame, enquanto que a fé "requer um modo de pensar único, limpidamente puro e simples, afastado de qualquer desvio ou invenção de métodos ... A casa da fé é um pensamento como de criança e um coração simples" (254). Enquanto o conhecimento humano tem a inteligência em seu centro, a fé tem o coração simples e sincero. O conhecimento humano "permanece dentro dos limites da natureza" enquanto a fé "faz a sua jornada além da natureza" (254). Ou seja, o conhecimento humano é uma condição puramente natural, trabalhando dentro de limites naturais, enquanto a fé é uma condição supranatural. Do mesmo modo, o conhecimento humano é incapaz de fazer qualquer coisa sem a matéria; move-se num mundo material, enquanto a fé tem autoridade, por possuir a semelhança de Deus, para fazer uma nova criação (p.254). O conhecimento humano não se atreve nem deseja ultrapassar os limites da natureza, enquanto a fé "os transgride com autoridade" (p.255). Isto é demonstrado pela vida de todos os santos que, pelo poder da fé, "adentraram em chamas e refrearam o poder ardente do fogo, caminhando ilesos pelo meio dele, pisando no fundo do mar como em terra firme" (p.255). E todas essas coisas que a fé faz estão acima da natureza e são contrárias aos caminhos do conhecimento humano. O conhecimento humano sempre busca meios para "salvaguardar aqueles que o adquiriram", isto é, sempre toma medidas protetoras e busca proteger o homem por meios humanos. Mas a fé entrega isso completamente a Deus. "O homem que ora com fé nunca faz uso, ou está empenhado em métodos e meios" (p.255). O conhecimento humano não dá início a um trabalho sem ter examinado como vai acabar, enquanto a fé diz: "Tudo é possível ao que crê, porque para Deus nada é impossível" (p.256).

É verdadeiro, de acordo com São Isaac, que o conhecimento humano não é deficiente, mas a fé é mais elevada (p.256). O conhecimento é aperfeiçoado pela fé, uma vez que "o conhecimento é um passo pelo qual o homem pode ascender até a elevada estatura da fé" (p.257). Quando a fé chega, o que está em parte é abolido. Então "é pela nossa fé que aprendemos aquelas coisas que não podem ser compreendidas pela investigação e poder do conhecimento" (p.257). Todas as obras de retidão que são virtudes, isto é, o jejum, a esmola, a vigília, a santidade e todo o "resto das obras realizadas com o corpo" e todas aquelas que são realizados na alma, isto é, o amor ao próximo , a humildade de coração, o perdão "aos que pecaram", a lembrança das coisas boas, a investigação dos mistérios escondidos nas Escrituras, a ocupação da mente com as boas obras, o controle das paixões da alma e o restante dessas virtudes, "todas essas requerem conhecimento". Conhecimento "as guardam e põe ordem". E todas estas coisas são passos pelos quais a alma ascende "para alturas mais elevadas da fé". No entanto, "o modo de vida da fé é mais exaltado do que o trabalho da virtude, e não é o trabalho, mas o descanso perfeito, a consolação, que é realizado no coração e dentro da alma" (p.256-7).

Todas estas coisas indicam que, segundo os ensinamentos de São Isaac e dos outros santos Padres, a fé é mais elevada do que o conhecimento humano, mais elevada até mesmo que o conhecimento adquirido pela prática da virtude. Pois a fé é uma condição carismática, uma comunhão com Deus; é "a compreensão e visão do coração"; é a vida que se desenvolve na alma com a vinda da luz da graça divina. Na seção seguinte, no ensinamento de São Gregório Palamas, veremos esse conhecimento de Deus, que é verdadeiramente uma "comunhão no ser", comunhão e união do homem com Deus. Assim, portanto, é um conhecimento mais elevado do que qualquer conhecimento humano, mesmo mais elevado que o conhecimento adquirido através da prática das virtudes, pois com ele encontramos o próprio Cristo, que está escondido nas profundezas dos mandamentos.

São Isaac, o Sírio, fala de três tipos de conhecimento. Examinemos como eles diferem, pois penso que isso nos mostrará como a tradição ortodoxa difere da tradição cultural humana, como o conhecimento divino difere do conhecimento humano.

Existem três caminhos concebíveis em que o conhecimento ascende e descende. Esses caminhos são corpo, alma e espírito (p.258). Na verdade, quando os Padres falam de corpo, alma e espírito, eles não querem dizer as três partes do homem, mas pela palavra "espírito" querem dizer o dom da graça, a graça divina com a qual o homem é abençoado. Sem a graça de Deus, é dito que o homem é um homem de alma ou da carne, enquanto que com a presença da graça ele é chamado espiritual. Embora a natureza do conhecimento seja uma só, ela é refinada e muda seus modos de acordo com esses reinos inteligíveis e sensíveis (p.258). Portanto, assim como existem três modos inteligíveis e sensíveis: corpo, alma e espírito, também existem três tipos de conhecimento relacionados a eles. De acordo com o tipo de conhecimento que o homem possui, ele mostra seu progresso espiritual e sua condição espiritual. Além disso, o tipo de conhecimento que alguém tem é uma indicação de sua purificação e cura. Aquele cuja alma é enferma tem conhecimento corporal, enquanto aquele que está sendo curado tem conhecimento da alma, e aquele que foi curado tem conhecimento espiritual. Este último conhece os mistérios do Espírito, que são desconhecidos e incompreensíveis para o homem da carne.

O primeiro conhecimento é adquirido pelo constante estudo e diligência na aprendizagem, o segundo conhecimento vem de um modo de vida puro e bom e da fé da mente, e o terceiro conhecimento "é atribuído à fé apenas. Porque pela fé o conhecimento é abolido, as obras chegam ao fim, e o emprego dos sentidos torna-se supérfluo "(p.264).

Examinemos mais analiticamente, com base nos ensinamentos de São Isaac, esses três tipos de conhecimento que indicam a doença ou a saúde da alma do homem.

Primeiro, o conhecimento corporal. Alguns elementos característicos do conhecimento humano conectados aos desejos da carne são a riqueza, a vanglória, o adorno, o descanso corporal e a assiduidade na sabedoria racional, tal como é apropriado para lidar com mundo e que imagina as novidades das invenções, as artes e as ciências (p.258). Este conhecimento é oposto à fé, como já explicamos antes, porque pensa que "todas as coisas são para sua própria providência" (p.258). Sabedoria e conhecimento das coisas deste mundo sem os outros dois tipos de conhecimento são inúteis e criam muitos problemas para o homem. Este conhecimento é superficial e grosseiro, pois está "desprovido de toda a preocupação com Deus" (p.258). Sua preocupação é apenas sobre este mundo, e por ser controlado pelo corpo, "introduz na mente uma impotência irracional" (p.258).

A maioria dos homens de nosso tempo, com almas enfermas, possui esse conhecimento e o cultiva continuamente. Toda a civilização contemporânea, que cria muitas anomalias de alma e corpo, está neste estado. Portanto, essa unilateralidade do conhecimento cria muitos problemas. Assim ão Isaac os descreve: O homem de conhecimento corporal é uma presa da fraqueza, tristeza, desespero, medo dos demônios, trepidação diante dos homens, rumores de ladrões e relatos de assassinatos, ansiedade por doenças, preocupação com o desejos e falta das necessidades, medo da morte, medo dos sofrimentos, dos animais selvagens e de outras coisas semelhantes que compõem o mar da vida presente (p. 258). O homem que possui este conhecimento humano e corporal não sabe abandonar-se à misericórdia de Deus, mas tenta, a seu modo, resolver os vários problemas. Mas quando ele não consegue encontrar soluções, por diferentes razões, então ele "rivaliza contra outros homens como se impedissem e se opusessem" a este conhecimento (p.258). Ele traz discórdia entre os homens porque os outros impedem a posse dos bens do conhecimento corporal.

Esse conhecimento corporal, cuidado mundano, erradica completamente o amor. Faz com que se investigue os pequenos pecados e erros dos outros, suas causas, suas fraquezas, faz dogmatizar e opor-se às palavras dos outros, a pessoa torna-se astucioso em todas as ações e inventa maneiras de desonrar as pessoas. Esse conhecimento contém presunção e orgulho (p.259).

Vemos claramente que o conhecimento corporal é característico da civilização contemporânea. Com intuição profética, São Isaac apresenta as causas e os objetivos deste homem carnal, descreve sua luta e angústia, e também apresenta os espantosos resultados desse conhecimento corporal. A confusão das relações pessoais, a falta de amor, obstinação e astúcia em todas as ações são as coisas que definem o homem contemporâneo que está doente na alma, longe de Deus.

O segundo, o conhecimento da alma. Quando um homem renuncia ao primeiro conhecimento corporal e carnal e se volta para os desejos e conversas da alma, então todas as boas ações do conhecimento da alma seguem. Estes são o jejum, a oração, a misericórdia, a leitura das Escrituras, os modos de virtude, a batalha contra as paixões, e assim por diante (p.258). Todas estas obras são aperfeiçoadas pelo Espírito Santo. Elas não acontecem pelo poder do homem, mas pelo trabalho conjunto do homem e do Espírito Santo. Há etapas na aquisição do conhecimento. O segundo grau de conhecimento é aperfeiçoado "quando é lançado o fundamento de sua ação ao afastar-se dos homens, na leitura das Escrituras e na oração" (p.260). Ou seja, o possuidor deste conhecimento da alma vive na quietude, com tudo o que implica, como descrevemos no capítulo anterior. Ele ora a Deus incessantemente e estuda as Escrituras nesta santa atmosfera de quietude para alimentar sua alma, não para aprender as palavras de Deus por curiosidade. Esta categoria inclui aquelas pessoas que estão sendo curadas de úlceras psíquicas e das feridas de sua alma. Esta cura oferece um conhecimento que pode ser chamado de fase preliminar e ante-sala do outro conhecimento espiritual, que a vinda da graça de Deus proporcionará no coração do homem.

O terceiro, o conhecimento espiritual. Quando o conhecimento do homem se eleva acima das preocupações mundanas e começa a ver interiormente "o que está escondido dos olhos" e quando despreza as coisas "de onde surge a perversidade das paixões" e se estende além em seu desejo pelas promessas da era por vir e em sua busca nos mistérios ocultos, "então a fé consome o conhecimento, o converte e o gera de novo, de modo que ele se torna completamente e plenamente espírito" (p.261).

Então pode-se voar aos locais dos anjos incorpóreos; conhece-se os mistérios espirituais, os governos do espiritual e do corpóreo. Ou seja, conhece os princípios interiores dos seres. Então os sentidos internos despertam e a alma recebe a ressurreição que dá a garantia da futura ressurreição dos homens. São Isaac, que possuía esse conhecimento espiritual, que é a vida da fé, escreveu: "Então pode-se elevar-se nos reinos dos incorpóreos e tocar as profundezas do mar insondável, refletindo sobre as maravilhosas e divinas obras do governo de Deus das criaturas inteligíveis e corpóreas. Busca-se os mistérios espirituais que são percebidos pelo simples e sutil nous. Então os sentidos internos despertam para o espiritual, de acordo com a ordem que será na vida imortal e incorruptível. Pois desde agora recebeu, como se fosse num mistério, a ressurreição inteligível como verdadeiro testemunho da renovação universal de todas as coisas" (p. 261).

Este conhecimento foi alcançado por todos os santos de Deus, como Moisés, Davi, Isaías, o apóstolo Pedro, o apóstolo Paulo e todos os santos que foram considerados dignos deste conhecimento perfeito, "na medida possível para a natureza humana" (p. 259). Na realidade, esse conhecimento vem da visão de Deus e da luz incriada, das revelações divinas ou, como coloca São Isaac, "por diversas contemplações e revelações divinas, pela visão sublime das coisas espirituais e pelos mistérios inefáveis..." (P.259). Então o conhecimento é consumido por essas visões de Deus e a pessoa sente que ela é pó e cinzas (p.259). Adquire-se o estado abençoado de humildade e simplicidade. Assim, o conhecimento espiritual, ou seja, o conhecimento de Deus, é o fruto da theoria. Ele é recebido pela pessoa que progrediu do conhecimento carnal até o da alma e daí para o conhecimento espiritual.

Resumidamente, pode-se dizer que o primeiro conhecimento "torna a alma fria às obras que vão em busca de Deus". O segundo conhecimento aquece a alma ao curso veloz "no nível da fé". O terceiro conhecimento é o descanso do trabalho, "que é o tipo da era vindoura, pois a alma se deleita apenas na meditação sobre os mistérios dos bens vindouros" (p.262).

Este ensinamento de São Isaac é muito relevante para o assunto que estamos tratando, pela seguinte razão. No começo do livro mencionamos que os membros da Igreja não são divididos em bons e maus ou morais e imorais, fazendo da ética humana o critério, mas nos doentes na alma, os em processo de cura e os curados. Precisamente estas três categorias correspondem aos três graus de conhecimento. Aqueles cuja alma está doente são pessoas de conhecimento corporal e mundano, aqueles que estão sendo curados são aqueles que em diferentes graus estão adquirindo a sabedoria e conhecimento da alma, e aqueles curados são os santos de Deus, que possuem conhecimento espiritual, o verdadeiro conhecimento de Deus. A maioria das pessoas de nosso tempo, que estão doentes de alma porque não sabem nada do nous e do coração, estão no primeiro conhecimento corporal e carnal. Outros pertencem ao segundo conhecimento, porque estão lutando para serem curados por meio de todo o método ascético disponível na Igreja Ortodoxa. E os santos, que ainda hoje existem, pertencem ao terceiro conhecimento, pois foram curados de suas enfermidades e assim adquiriram conhecimento de Deus.


2. Conhecimento de Deus segundo São Gregório Palamas

Agora que explicamos o ensinamento de São Isaac, o Sírio sobre os três graus de conhecimento, podemos seguir para o conhecimento de Deus de acordo com o Santo atonita Gregório Palamas. Quando uma pessoa ascende do conhecimento corporal para o conhecimento da alma e daí para o conhecimento espiritual, então ela vê Deus e possui o conhecimento de Deus, que é a sua salvação. O conhecimento de Deus, como será explicado mais adiante, não é intelectual, mas existencial. Ou seja, todo o ser torna-se pleno desse conhecimento de Deus. Mas, para alcançá-lo, o coração deve ter sido purificado, ou seja, a alma, o nous e o coração devem ter sido curados. "Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus" (Mt 5,8).

Vejamos as coisas mais analiticamente.

Como indiquei, Barlaam insistia que o conhecimento de Deus não depende da visão de Deus, mas do entendimento da própria pessoa. Ele afirmava que podemos adquirir o conhecimento de Deus através da filosofia e, portanto, considerava que os profetas e apóstolos que viram a luz incriada, estavam abaixo dos filósofos. Ele chamou a luz incriada de sensorial, criada e "inferior à nossa compreensão". No entanto, São Gregório Palamas, portador da Tradição e homem de revelação, defendia a visão oposta. Em sua teologia ele apresentou o ensinamento da Igreja de que a luz incriada, isto é, a visão de Deus, não é simplesmente uma visão simbólica, nem sensorial e criada, nem inferior à compreensão, mas é a divinização. Através da deificação, o homem é considerado digno de ver Deus. E essa deificação não é um estado abstrato, mas uma união do homem com Deus. Ou seja, o homem que contempla a luz incriada a vê porque está unido a Deus. Ele a vê com seus olhos interiores, e também com seus olhos corporais, que, no entanto, foram modificados pela ação de Deus. Consequentemente a theoria é união com Deus. E esta união é conhecimento de Deus. Neste momento é concedido conhecimento de Deus, que está além do conhecimento humano e além dos sentidos.

São Gregório explica toda esta teologia em vários lugares ao longo de seus escritos. Mas uma vez que não é nossa intenção neste capítulo fazer uma exposição sistemática de todo o seu ensinamento sobre o conhecimento de Deus, limitar-nos-emos a analisar o ponto central, como é apresentado em sua obra básica "Sobre o Santos Hesicastas", conhecida como as Tríadas. Novamente, devemos acrescentar que não apresentaremos todo o ensinamento tal como está exposto em tal livro, mas apenas os pontos centrais. Após cada citação, daremos a referência.

Eis aqui uma passagem característica na qual ele apresenta brevemente este ensinamento: "Aquele que purificou sua alma de toda conexão com as coisas deste mundo, que se desprendeu de tudo por guardar os mandamentos e pela impassibilidade que isso traz e que avançou além de toda a atividade cognitiva através da oração contínua, sincera e imaterial, e que foi abundantemente iluminado pela luz inacessível em uma união inconcebível, só ele, tornando-se luz, contemplando pela luz e contemplando a luz, na visão e desfrute desta luz, reconhece verdadeiramente que Deus é transcendentalmente radiante e além da compreensão; ele glorifica a Deus não somente além do poder humano de entendimento de seu nous, pois muitas coisas criadas estão além disso, mas além até mesmo dessa união admirável que é o único meio pelo qual o nous é unido com o que está além das coisas inteligíveis, "imitando divinamente os nouses supracelestiais" (2,3,57).

Encontramos o ensinamento central de São Gregório nesta passagem. Para alcançar a visão da luz incriada, é necessário cortar toda conexão entre a alma e o que está abaixo, desapegar-se de tudo, mantendo os mandamentos de Cristo e através da impassibilidade que disso deriva, deve-se transcender toda atividade cognitiva "através da oração contínua, sincera e imaterial". Portanto, deve-se ter sido já curado, por manter os mandamentos de Cristo e ter liberto sua alma de toda conexão pecaminosa com as coisas criadas. Tal pessoa é iluminada pela luz inacessível "abundantemente através de uma união inconcebível". Ele vê Deus através da união. Assim ele se torna luz e vê pela luz. Vendo a luz incriada, reconhece Deus e adquire conhecimento Dele, porque agora "reconhece verdadeiramente que Deus está além da natureza e além da compreensão".

São Gregório também desenvolve este ensinamento em outras partes nas Tríadas.

A visão de Deus, theoria da luz incriada, não é uma visão sensível, mas a deificação do homem. Falando da visão de Deus de Moisés "face-a-face e não em enigmas", ele recorda a passagem em São Máximo, o Confessor, que diz: "A deificação é uma iluminação direta e enhypostatica que não tem começo, mas que aparece naqueles dignos como algo que ultrapassa a sua compreensão. É, de fato, uma união mística com Deus, além do nous e da razão, na era em que as criaturas não conhecerão mais a corrupção" (3,1,28; CWS p.84). Assim, a visão da luz incriada é a deificação do homem. Ele vê Deus através da deificação e não através do cultivo da inteligência. A visão da luz incriada é chamada de dom deificante. Não é um dom da natureza humana criada, mas do Espírito Santo." Assim, o dom deificante do Espírito é uma luz misteriosa que transforma em luz aqueles que recebem a sua riqueza. Ele não só os enche com a luz eterna, mas também lhes concede o conhecimento e a vida apropriada a Deus" (3,1,35; CWS p .90). Assim, a visão de Deus não é exterior, mas provém da deificação (2,3,25).

Esta deificação é união e comunhão com Deus. De acordo com São Gregório, "a visão da luz incriada não é simplesmente abstração e negação, é uma união e uma divinização que ocorre misticamente e inefavelmente pela graça de Deus, após o despojamento de tudo daqui embaixo que se imprime no nous, ou melhor, após a cessação de toda atividade noética; é algo que vai além da abstração "(1,3,17; CWS p.34f). A contemplação da luz incriada ocorre "pela comunhão divinizante do Espírito" (1,3,5; CWS p.33). "Portanto, a contemplação desta luz é uma união, mesmo que ela não seja resistida pelo imperfeito: mas, por acaso, é a união com esta luz outra coisa senão uma visão?" (2,3,36, CWS p.65).

São Gregório fala de êxtase. Mas este êxtase, no ensinamento patrístico, não tem nada a ver com o êxtase da Pítia e das outras religiões. O êxtase vem quando, em oração, o nous abandona toda conexão com as coisas criadas: primeiro "com tudo perverso e mau, então com as coisas neutras" (2,3,35, CWS p.65). O êxtase é principalmente a retirada das opiniões do mundo e da carne. Com oração sincera o nous "abandona todas as coisas criadas" (2,3,35, CWS p.65). Este êxtase é mais elevado que a teologia abstrata, isto é, que a teologia racional, e pertence somente àqueles que alcançaram a impassibilidade. Mas ainda não é a união. Ou seja, o êxtase, que é a oração incessante do nous, em que a pessoa tem lembrança contínua de Deus e não tem relação com o "mundo do pecado" ainda não é a união com Deus. Esta união ocorre quando o Paráclito "ilumina desde o alto o homem que alcança em oração o estágio que é superior às mais elevadas possibilidades naturais e que espera a promessa do Pai e que por Sua revelação o arrebata à contemplação da luz "(2,3,35, CWS p.65). A iluminação por Deus é o que mostra Sua união com o homem.

Visão, deificação e união com Deus são as coisas que oferecem ao homem o conhecimento existencial de Deus. Assim o homem possui verdadeiro conhecimento de Deus. O dom deificante do Espírito Santo, que é uma luz misteriosa, transforma em luz divina aqueles que a alcançaram e não apenas os preenche de luz eterna, "mas também lhes concede um conhecimento e uma vida apropriada a Deus" (3,1 , 35, CWS p.89). Neste estado uma pessoa possui o conhecimento de Deus. Em resposta ao ensinamento de Barlaam de que Deus é conhecido pelos maiores contempladores, os filósofos, e que o conhecimento de Deus transmitido "por iluminação noética ... não é de modo algum algo verdadeiro" (2, 3, 78), São Gregório Palamas declara: "Deus se faz conhecido não só por tudo o que é, mas também pelo que não é, pela transcendência, isto é, por coisas não criadas, e também por uma luz eterna que transcende todos os seres". Esse conhecimento, diz ele, é oferecido hoje como uma espécie de sinal para aqueles que são dignos dele e que "ilumina-os infinitamente na era interminável". É justamente por isso que a visão dos santos de Deus é verdadeira, "e aquele que a chama de falsa desviou-se do divino conhecimento de Deus" (2,3,78). Assim, quem ignora e despreza a visão de Deus, que oferece o verdadeiro conhecimento é, na realidade, ignorante de Deus.


Essas coisas mostram que a visão de Deus, a deificação, a união e o conhecimento de Deus estão intimamente interligados. Esses não podem ser entendidos separados uns dos outros. Romper esta unidade leva o homem para mais longe do conhecimento de Deus. A base da epistemologia ortodoxa é a iluminação e a revelação de Deus no interior do coração purificado do homem.

Como vimos, o conhecimento de Deus está além do conhecimento humano. A visão da luz incriada ultrapassa toda a atividade epistemológica e está "além da visão e do conhecimento" (2,3,50). Uma vez que a visão da luz incriada é oferecida aos corações dos fiéis e perfeitos, é por isso que "é superior à luz do conhecimento" (2,3,18; CWS p.63). E não só é superior à luz do conhecimento humano "dos estudos helênicos", mas também a luz desta theoria difere da "luz que vem das Sagradas Escrituras", pois a luz das Escrituras pode ser comparada a "uma lâmpada que brilha num lugar obscuro, enquanto a visão da luz incriada se assemelha à estrela da manhã que brilha no dia, isto é, o sol "(2,3,18; CWS p.63). A graça da deificação transcende assim a natureza, a virtude e o conhecimento humano (3, 1, 27).

A visão da luz incriada e o conhecimento que dela advém não são um desdobramento do poder racional, não são a perfeição da natureza racional, como afirmou Barlaam, mas são superiores à razão. Trata-se do conhecimento concedido por Deus aos puros de coração. Qualquer um que afirma que o dom deificação é um desenvolvimento da natureza racional se coloca em oposição ao Evangelho de Cristo. Se a contemplação fosse um dom natural, então todas as pessoas deveriam ser deuses, umas mais e outras menos. Mas "os santos deificados transcendem a natureza", eles são engendrados por Deus, Deus lhes deu poder para se tornarem "filhos de Deus" (3, 30, CWS p.85).

A visão da luz incriada, que oferece o conhecimento de Deus ao homem, é sensorial e suprasensorial. Os olhos do corpo são remodelados, assim vêem a luz incriada, "esta luz misteriosa, inacessível, imaterial, incriada, deificante, eterna", este "esplendor da Natureza Divina, glória da divindade,  beleza do reino celestial" (3, 1, 22, CWS p.80). Palamas pergunta: "Você vê que a luz é inacessível aos sentidos que não estão transformados pelo Espírito?" (2, 3, 22). São Máximo, cujo ensino é citado por São Gregório, diz que os Apóstolos viram a Luz incriada "por uma transformação da atividade de seus sentidos, produzida neles pelo Espírito" (2.3.22).

A visão da Luz incriada e o conhecimento que dela advém transcendem não só a natureza e o conhecimento humano, mas também a virtude. A virtude e a imitação de Deus nos prepara para a união divina, mas a própria união misteriosa é efetuada pela graça (3,1,27, CWS p.83).

Assim, a deificação, que é o objetivo da vida espiritual, é uma manifestação de Deus no coração puro do homem. Esta visão da Luz incriada é o que cria deleite espiritual na alma. Pois, de acordo com São Gregório, a evidência dessa luz é que a alma deixa de entregar-se a prazeres e paixões falsas, e que adquire paz e quietude de pensamentos, descanso e alegria espiritual, desprezo pela glória humana, humildade unida com júbilo secreto, ódio ao mundo, amor às coisas celestiais, ou melhor, amor ao Deus do Céu apenas, e visão de luz incriada, mesmo que os olhos sejam cobertos ou arrancados (3,1,36;CWS p. 90).

Pelo que foi dito é claro que o fim da cura do homem é a visão da luz incriada. Mas, uma vez que neste capítulo estamos falando sobre theoria, podemos também olhar para Palamas ensinando que há muitos graus de theoria. Ele diz que a theoria tem um início, e as coisas que seguem a partir deste início diferem em graus de escuridão ou clareza, mas nunca há um fim, pois seu progresso, como o do arrebatamento na revelação, é infinito. A iluminação é uma coisa e a visão contínua da luz é outra, e ainda outra é a visão das coisas nessa luz pela qual até as coisas distantes são acessíveis aos olhos, e o futuro é mostrado como já ocorrido (2,3,35; CWS P.65). Portanto, há graus de theoria e, com ele, graus de conhecimento.

Neste ponto, podemos também observar o ensino de São Pedro de Damasco sobre os oito estágios da theoria (Philokalia 3,108). Os sete primeiros pertencem a esta era, enquanto o oitavo pertence à era por vir. A primeira theoria é o conhecimento das provações e tribulações desta vida. A segunda é "conhecimento de nossas próprias falhas e da generosidade de Deus". A terceira é o conhecimento das coisas terríveis antes e depois da morte. A quarta é a profunda compreensão da vida liderada por nosso Senhor Jesus neste mundo e de Seus discípulos e os outros santos, ou seja, as palavras e ações dos mártires e dos santos Padres. A quinta é conhecimento da natureza e fluxo das coisas. A sexta é a theoria de seres criados, ou conhecimento e compreensão da criação visível de Deus. A sétima é a compreensão da criação espiritual de Deus, isto é, dos anjos. A oitava é conhecimento acerca de Deus, ou o que chamamos de "teologia".

Consequentemente, a theoria tem muitos estágios e graus, e muitos devem vir antes da visão da luz incriada, que é "a beleza da era por vir", "o alimento dos céus". Entre os graus da theoria estão a lembrança da morte, que é um presente de Deus, a oração incessante, a inspiração para manter plenamente os mandamentos de Cristo, o conhecimento da nossa pobreza espiritual, isto é, a compreensão de nossos pecados e paixões e o arrependimento que segue. Tudo isso ocorre através da operação da graça divina. Certamente, a theoria perfeita é a visão da luz incriada, que em si mesma é diferenciada em visão e visão contínua, como diz Palamas (3,1,30).

Assim, a purificação que acontece pela graça de Deus cria as pré-condições necessárias para alcançar a theoria que é a comunhão com Deus, a deificação do homem e o conhecimento de Deus. O método ascético da Igreja conduz a este ponto. Não se baseia em critérios humanos e não visa tornar a pessoa "legal e boa", mas curá-la perfeitamente e para que alcance a comunhão com Deus. Enquanto um homem está longe da comunhão e união com Deus, ele ainda não alcançou sua salvação. A pessoa espiritualmente treinada que vê a luz incriada, na linguagem dos Padres, diz-se que foi "deificada". Esta expressão é usada por São Dionísios, a Areopagita, São João de Damasco e, repetidamente, como vimos, por São Gregório Palamas (3,1,30; CWS p.85f).

A cura da alma, do nous e do nosso coração conduz à visão de Deus e faz com que conheçamos a vida divina. Este conhecimento é a salvação do homem.


Devemos orar fervorosamente para que Deus nos conceda alcançar esse conhecimento de Deus. A exortação é clara:

"Vem, vamos subir o monte do Senhor,
até a casa de nosso Deus,
e vejamos a glória da Sua transfiguração,
glória do unigênito do Pai.
Deixe-nos receber luz de Sua luz,
e com espíritos elevados
Deixe-nos para sempre cantar louvores a Trindade consubstancial ".

Aqui nos levantamos e cantamos:

"Te transfigurastes no monte, ó Cristo, nosso Deus, mostrando a tua glória aos teus discípulos, na medida em que puderam suportá-la. Pelas intercessões da Mãe de Deus, faz a tua luz eterna também brilhar sobre nós, pecadores, ó Doador da luz, glória a Ti. "

(Festa da Transfiguração, Festal Menaion p.475-477)



do livro Orthodox Psychotherapy pelo Metropolita Hierotheos de Nafpaktos. 

domingo, 14 de maio de 2017

As Aparições de Fátima e o Cristianismo Ortodoxo

Interesse ortodoxo 

De acordo com as afirmações católicas romanas, entre maio e outubro de 1917, a Mãe de Deus apareceu seis vezes a três crianças - Lucia, Jacinta e Francisco - na aldeia portuguesa de Fátima. As aparições iniciais atraíram pouca ou nenhuma atenção, mas nas últimas aparições estavam presente por volta de 50.000 pessoas; muitas pessoas afirmaram ver o sol dançar no céu, mas em nenhum momento ninguém, a não ser as três crianças, viu a pessoa que estava aparecendo. Ao longo dos anos, muitos cristãos ortodoxos têm manifestado interesse nesses eventos, principalmente por causa das previsões sobre a conversão da Rússia que foram feitas em uma das aparições. Parece muito significativo que uma aparente manifestação da Theotokos tenha ocorrido ao mesmo tempo que a Revolução Bolchevique na Rússia; os ortodoxos esperariam que a Theotokos indicaria alguma maneira pela qual a Rússia poderia ser libertada da dominação comunista. Assim, Tatiana Goricheva, uma conhecida dissidente ortodoxa russa e exilada da União Soviética, conta como teve conhecimento sobre Fátima e como deveria ser cumpridas as instruções da Theotokos em Fátima para a conversão da Rússia [1]. Consulte a nota referenciada para seu relato. No entanto, quando se analisa em detalhe os acontecimentos de Fátima, verifica-se que não se referem sobretudo à Rússia; em vez disso, apresentaram ou reafirmaram uma série de doutrinas claramente católicas. É preciso considerar esses ensinamentos como um todo a fim de determinar como um cristão ortodoxo deve enxergar todo o evento. Note-se que há um número surpreendente de discrepâncias nos relatos das conversas entre as crianças e a aparição, levantando a possibilidade de alguma corrupção posterior ou alterações nos textos. A maior parte do texto utilizado neste artigo é aquele apresentado pela Irmã Lúcia, uma das três crianças, em suas memórias.

Quem realmente apareceu? 

Primeiramente, ninguém sabe quem apareceu em Fátima. Na primeira vez, a aparição não fez qualquer pretensão de ser a Theotokos. Jacinta a identificou primeiramente como a Virgem Maria, mas Lucia, no primeiro momento, teve dúvidas sobre quem era a aparição [2]. Nas aparições posteriores, a aparição nem sempre afirmou especificamente ser a Mãe de Deus, mas antes falou de si mesma, de modo um tanto estranho, como sendo "Nossa Senhora do Rosário" e o "Coração Imaculado de Maria".[3] Na quinta vez, a aparição disse às crianças: "Em outubro virá Nosso Senhor, assim como Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora do Carmelo. São José aparecerá com o Menino Jesus para abençoar o mundo." [4] Isso soa estranho aos nossos ouvidos, já que quase parece implicar que essas "Senhoras" são pessoas diferentes. 

As três crianças e a aparição


O que foi ensinado 

As doutrinas apresentadas pela aparição são impressionantes, pois reforçam muitas das inovações mais incomuns e extremas do catolicismo romano recente. Incluem as seguintes:

 Devoção ao Imaculado Coração de Maria

O propósito principal da aparição era encorajar a devoção ao chamado Coração Imaculado de Maria. Na segunda aparição, foi dito: "Jesus deseja fazer uso de vocês para que me conheçam e me amem. Ele quer estabelecer no mundo a devoção ao meu Coração Imaculado ".[5] Essa prática devocional está relacionada ao culto do Sagrado Coração de Jesus. No século XII uma revolução ocorreu nas práticas devocionais da Igreja Católica Romana; esta revolução foi inspirada pela pregação de Bernard de Clairveaux e amplamente difundida por Francisco de Assis. Quando a atenção foi transferida da nossa redenção pela Ressurreição do Senhor para um foco na Paixão do Senhor, um elemento erótico foi introduzido no culto e na devoção privada. O Senhor passou a ser visto como um companheiro, amigo, ou mesmo marido / amante, como é refletido no imaginário do casamento que foi introduzido no monaquismo ocidental (ao fazer seus votos, as freiras passam por uma espécie de cerimônia de casamento, com vestidos de noiva, anéis de casamento, etc. e tem o Senhor como o noivo). Esta nova devoção enfatizou a união individual do adorador com o Amante Místico, concentrando-se na dor do sofrimento do Senhor e na tentativa de despertar emoções, focalizando Sua vida terrena. 

Entre as manifestações desta nova forma de adoração estão a Festa do Santo Nome, as devoções especiais às Cinco Chagas de Cristo, as Estações da Cruz, as meditações atribuídas às contas do Rosário, o "berço" de Natal  e a devoção ao "Menino Jesus" em geral, e o culto ao Sagrado Coração de Jesus [6]. Este último culto enfoca uma parte do corpo físico de nosso Senhor e efetivamente separa o culto da natureza humana de Cristo de Sua Divina Natureza; por isso nunca encontrou nenhuma aceitação na Igreja Ortodoxa, que ensina seus filhos a adorar o Senhor em Sua unidade Divino-Humana, não em cada uma das naturezas separadamente. A ortodoxia também manteve uma abordagem devocional muito mais restrita e objetiva ao Senhor, evitando sensualidade, sentimentalismo e emocionalismo. Infelizmente, o modo como à doutrina católica romana de Maria se desenvolveu nos últimos séculos, tentou paralelizar cada atributo de Cristo com um em Maria, indo até ao extremo de chamá-la de "Co-Redentora" do mundo e sugerindo que ela participa do Sacerdócio de Cristo de alguma forma. A devoção ao Imaculado Coração de Maria é mais um exemplo desta tendência, paralela ao culto do Sagrado Coração de Jesus. Mas se o culto do Sagrado Coração está perigosamente sobrecarregado de emoção, sentimentalismo e sensualidade para que seja aceitável para a Ortodoxia, o que podemos dizer sobre uma extensão desse culto a Theotokos? O problema aqui é que o catolicismo romano perdeu o conceito ortodoxo da deificação de todos aqueles que participam da graça vivificante, santificadora e incriada de Deus. A Igreja Militante e a Igreja Triunfante - todos, de fato, que lutam na vida que está em Cristo - participam da obra redentora de Cristo. Eles são "uma geração escolhida, um reino sacerdotal, uma nação santa". 

Quando a doutrina ortodoxa da Igreja da graça, da salvação e da deificação for abandonada por uma que é carnal, errônea e distorcida, então, inevitavelmente, deslocações e aberrações teológicas aparecerão também em relação às doutrinas do sacerdócio e da redenção. Isto é especialmente evidente em relação à posição da Theotokos no catolicismo romano, onde seu culto começa claramente a beirar a Mariolatria. É ainda mais censurável quando partes específicas de Maria são selecionadas para uma devoção particular[7].

Na antiguidade, havia duas seitas heréticas, os Antidicomarianitas e os Collyridianos. A primeira se recusava a honrar a Theotokos em qualquer forma e negava sua virgindade perpétua, a segunda a fez igual a Deus. Sobre esta última, S. Epifânio de Chipre escreve que "certas mulheres fizeram pequenos pães e os ofereceram em nome (de Maria) em ritos religiosos realizados por mulheres... E em Sikima, os aldeões locais oferecem sacrifícios em nome da Donzela (Theotokos)". [8] A Igreja Ortodoxa se esforça sempre para preservar a verdade, não se desviando nem para a direita nem para a esquerda, mas andando pelo caminho reto e estreito que conduz ao Reino dos Céus. São Epifânio escreve que ambos os extremos refletidos nas doutrinas e práticas dessas duas seitas acima são "os ensinamentos dos demônios". "O dano", ele escreve, "que provém de ambas as heresias é o mesmo."

Podemos ver que, em relação a Theotokos, os protestantes tendem a refletir as opiniões dos antidicomarianistas, ao passo que os católicos romanos modernos, que em extremos pietistas promulgaram idéias como a de "Co-Redentora", se assemelham claramente aos collyridianos. A ortodoxia adere ao caminho do meio, venerando a Theotokos como a mais santa das criaturas de Deus e derramando amor por ela, mas não a desonrando ao exaltá-la falsamente a uma imaginada igualdade com seu Divino Filho. Ao honrar a sua pureza e santidade e ao imitá-la em nossas próprias vidas a sua total obediência a Deus, mostramos nossa verdadeira devoção a ela.

A tendência católica romana de tornar Maria igual ao Senhor manifesta-se na segunda aparição em Fátima, quando a aparição prometeu a salvação a todos os que praticarem a devoção ao Coração Imaculado. Dizia: "A todos os que abraçam (devoção ao meu Imaculado Coração), prometo a salvação e suas almas serão amadas por Deus como flores colocadas pelo caminho que vos conduzirá a Deus".[9]

Na terceira aparição, a aparição mostrou às crianças uma visão do inferno, e então disse: "Vistes o inferno para onde vão as almas dos pobres pecadores. Para salvá-los, Deus deseja estabelecer no mundo a devoção ao meu Imaculado Coração".[10] Nessa mesma aparição, as crianças foram informadas de que haveria paz se as pessoas fizessem o que a aparição comandava.

Uma das mais notáveis ​​declarações atribuídas à aparição é encontrada na primeira aparição. Há um desacordo nas fontes sobre a formulação da declaração, mas algumas versões dizem que as pessoas devem sofrer como um meio de repagar o Coração Imaculado de Maria por seus pecados e ofensas. Conforme apresentado nestas fontes, na primeira aparição, a aparição disse: "Vocês sofrerão para obter a conversão dos pecadores, para reparar as blasfêmias, assim como todas as ofensas cometidas contra o Imaculado Coração de Maria?"[11] Na terceira Aparição, aquela em que é mencionada a conversão da Rússia, a aparição diz às crianças: "Sacrificai-vos pelos pecadores e dizeis muitas vezes, especialmente quando fazes algum sacrifício: ó Jesus, é por amor de vós, pela conversão dos pecadores e em reparação pelos pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria".[12]

Mas nossos pecados não são cometidos contra a Theotokos, ou seu coração; eles estão cometidos contra Deus, e é a Ele que devemos pedir perdão. É diante Dele que devemos nos arrepender. Certamente, a Theotokos sofre quando ela contempla nosso pecado e desobediência. Na realidade, não só a Theotokos, mas todos os santos - de fato, toda a criação - "gemem e trabalham" por causa dos pecados da humanidade. Como disse o filho pródigo: "Pai, pequei contra o céu e diante de ti". Mas, em última instância, Deus é quem tem autoridade para perdoar nossos pecados. Pois "quem pode perdoar pecados, exceto Deus?" (Mc 2,7).

Dizer, portanto, que devemos "reparar os pecados cometidos contra o Imaculado Coração de Maria" coloca-a literalmente no lugar de Deus, que é repetir a blasfêmia de Satanás que quer que adoremos a criação, ao invés do Criador. Além disso, nesses casos, a aparição está falando na linguagem dos escolásticos medievais tardios, não com a voz das Escrituras e dos Padres da Igreja. O perdão dos pecados e a restauração da filiação que a humanidade recebeu através da Paixão voluntária, Crucificação e Ressurreição de Cristo não são fruto de um ato legalista exigido por alguma justiça Divina; ao contrário, são um dom dado livremente como resultado do ato supremo de amor livremente escolhido por Deus para nos redimir.

Não há reparação, nenhuma satisfação - não há nada que possamos fazer nós mesmos para merecê-lo. É por isso que Nosso Senhor Jesus Cristo se tornou homem, sofreu, morreu e ressuscitou - para derrubar o muro entre nós e Deus. Nada que fazemos, nenhum sofrimento nosso pode substituir o que Ele fez por nós. É precisamente por isso que, na Divina Liturgia, o sacerdote exclama: "Aquilo que é Teu, recebendo-o de Ti, nós te oferecemos por todos e por tudo."

O Rosário

Na sexta aparição a aparição chama-se "Senhora do Rosário". Um dos métodos recomendados repetidamente pela aparição para obter a paz mundial é o uso diário do Rosário. Agora, o Rosário é uma devoção distintamente católica romana, que é estranha à piedade ortodoxa. O Rosário consiste de quinze "mistérios", ou  tópicos para meditação, p. a Anunciação, a Crucificação, a Coroação de Maria como Rainha do Céu, etc.; enquanto recita-se a Ave Maria dez vezes para cada mistério, deve-se tentar visualizar o evento comemorado nesse mistério.

Como acontece com muitos métodos cristãos ocidentais de meditação, essa abordagem encoraja o uso ativo da imaginação, algo que os Santos Padres nos ensinam que é uma fonte perigosa de erros e enganos: quando começamos a imaginar os eventos na vida de nosso Senhor, inevitavelmente os revestimos em nossos próprios termos e os apresentamos de uma maneira que seja agradável a nós mesmos; assim nos tornamos a medida dos acontecimentos em Sua vida e deixamos de lado facilmente aqueles aspectos com os quais não nos sentimos confortáveis.

Os Santos Padres nos ensinam, ao contrário, a sempre sermos cautelosos com a imaginação, a aprender a controlá-la, não a desenvolvê-la. Além disso, o uso da imaginação ao recitar as palavras da Ave Maria significa que não se está atendendo às palavras da oração. Em vez de auxiliar a concentrar-se nas palavras dirigidas a Deus e aos santos na oração, esse método de fato estimula a distração e os pensamentos errantes, ocultando-os sob a aparência de "meditações" sobre os acontecimentos da história sagrada, aqueles imaginados pela pessoa que ora. Assim, o Rosário Católico Romano é muito diferente no que diz respeito ao uso e a intenção comparado a cordão-de-oração Ortodoxo de onde se desenvolveu, cujo propósito é ajudar a pessoa orando a se concentrar mais intensamente sobre as palavras de sua oração e impedir seus pensamentos de vagar. O Rosário é, obviamente, uma prática devocional inaceitável, e os cristãos ortodoxos devem estar atentos a uma aparição que o ensina e incentiva.

Purgatório

Em suas aparições, também se ensinou doutrinas relacionadas com a vida após a morte que não são aceitáveis ​​para o Cristianismo Ortodoxo. Várias vezes se referia ao Purgatório, o estado intermediário de sofrimento limitado entre o Céu e o Inferno, e disse que uma pessoa sobre quem as crianças perguntaram estaria no Purgatório até o fim do mundo. A ortodoxia rejeita completamente qualquer estado intermediário, já que a doutrina do Purgatório não aparece em parte alguma na tradição apostólica e, de fato, nega a plena eficácia do dom gratuito da graça e da adoção que Cristo nos ofereceu através de Sua Encarnação, morte e ressurreição.

De acordo com o ensino católico romano, os homens devem sofrer para pagar suas dívidas a Deus por pecados que foram perdoados por Ele, como se qualquer sofrimento que sofremos pudesse realmente tornar-se um pagamento, se fosse necessário, e como se o perdão de Deus fosse de alguma forma deficiente. A misericórdia e o perdão de Deus são ilimitados. Se o sofrimento é bom para nós, é exatamente no mesmo sentido que o treinamento é bom para os atletas, já que o jejum é bom para os obesos e gulosos, pois a auto-censura é boa para aqueles que são propensos à raiva. Deus não precisa dessas coisas, nós sim. Nem Ele exige este "pagamento", visto que Seu perdão e graça são livres - afinal, a própria palavra "graça" significa "dom gratuito".

Valor das Obras Humanas

A aparição também ensinou que o sofrimento de alguém nesta vida poderia obter a salvação para os outros. Na primeira aparição, perguntou às crianças se elas "suportariam todos os sofrimentos que (Deus) quer de vocês, como um ato de reparação pelos pecados pelos quais Ele é ofendido, e pela súplica pela conversão dos pecadores". Na quarta aparição, a aparição disse às crianças: "Orai, orai muito,  fazei sacrifícios pelos pecadores. Pois muitas almas vão para o inferno porque não há ninguém para fazer sacrifícios por elas".[14]

Desta forma, também, a oferta de nosso Senhor para nós é denegrida pela idéia de que nosso sofrimento de alguma forma fornece aos outros o que está faltando em Sua oferta de Si mesmo. Este é um engano blasfemo, mostrando orgulho satânico em pensar que podemos salvar outros por nossas orações e sofrimento, colocando-nos assim no lugar de Cristo. São Pedro de Damasco expressa a compreensão ortodoxa quando diz: "Não ousamos suplicar em nome de todos, mas somente por nossos próprios pecados".[15] Na melhor das hipóteses, podemos suplicar a graça de Deus para que respondam com arrependimento.

A conversão da Rússia

O tema da conversão da Rússia suscita o maior interesse em Fátima entre os cristãos ortodoxos, mas é também um tema muitas vezes incompreendido. Freqüentemente se supõe que esta mensagem foi à única dada em Fátima, ou pelo menos a mais importante; na verdade, é parte de uma das seis aparições, e é apresentada não por causa da Rússia, mas para reforçar uma série de dogmas católicos romanos. Além disso, os primeiros relatos de Fátima afirmam apenas que a aparição disse às pessoas que orassem pela conversão do mundo.

Lucia teve uma visão em 1927 em que foi dita que pedisse pela consagração da Rússia ao Coração Imaculado de Maria. Em outra visão, em 1929, foi-lhe dito que revelasse o primeiro segredo, supostamente dado a ela em 1917, que era que as pessoas orassem pela conversão especificamente da Rússia.[16] Normalmente, presume-se que a aparição estava falando da conversão da Rússia à fé católica romana.

Um comentarista sobre este assunto diz que, ao falar de um estado, não se pode pensar nisso como fosse uma determinada igreja; em vez disso, ele acha que "conversão" aqui significa que o Estado soviético vai parar de combater a religião. Ele pergunta se o termo poderia se referir ao "retorno da dissidente 'Igreja Russa' à União Católica" e responde que, em sua opinião, isso "não pode ser deduzido com necessidade lógica do texto da Mensagem".[17] De qualquer maneira, na compreensão da grande maioria dos católicos romanos, a mensagem de Fátima não significa nada além da conversão da Rússia ao catolicismo romano. Esta é precisamente a interpretação que foi ensinada nas escolas paroquiais. Mesmo admitindo que a mensagem de Fátima não implica necessariamente a conversão da Rússia ao Catolicismo Romano, ainda temos que perguntar quais os meios propostos pela aparição para a conversão da Rússia do ateísmo à crença em Deus.

Dois requisitos básicos são apresentados pela aparição no relatório da terceira aparição: "Eu virei pedir a consagração da Rússia ao meu Imaculado Coração, e a Comunhão de Reparação no Primeiro Sábado. Se os meus pedidos forem atendidos, a Rússia se converterá... O Santo Padre consagrará a Rússia a mim e ela se converterá ... "[18] Assim, as duas condições necessárias para a conversão da Rússia são que o Papa consagre a Rússia à Imaculado Coração de Maria e que os católicos de todo o mundo façam as comunhões do Primeiro Sábado. Obviamente, nenhuma dessas condições são de forma alguma aceitável para os cristãos ortodoxos, mas, para tornar isso mais claro, vamos examinar mais detalhadamente as implicações de ambas.

Reivindicações Papais - Novamente!

O Papa, o Bispo de Roma, afirma ser o chefe de todos os bispos da Igreja Cristã, mas suas reivindicações vão muito além disso. Considera-se também que ele também possui jurisdição sobre todos os outros bispos, de ser o representante especial de Cristo na terra tanto em assuntos religiosos e temporais, e de ter a garantia de não errar quando faz pronunciamentos formais sobre questões de fé ou moral. As declarações dos próprios papas tornam isso muito claro. Enquanto os ortodoxos estariam dispostos a reconhecer o Papa como "primeiro entre iguais" entre todos os bispos do mundo em um contexto ortodoxo, eles rejeitam o resto de suas reivindicações. A aparição exigia que fosse ele que consagrasse a Rússia ao Imaculado Coração de Maria, aceitando assim implicitamente suas pretensões de ser o chefe supremo da Igreja Cristã.
Primeiros Sábados

O significado completo da Comunhão de Reparação dos Primeiros Sábados não é claro nas manifestações de Fátima, mas a Irmã Lúcia, a única das crianças a sobreviver até a idade adulta, afirmou ter recebido uma revelação especial em 1925 que forneceu mais informações sobre os Primeiros Sábados. Na verdade, ela não só recebeu muitas revelações posteriores, mas também houve várias manifestações anteriores a ela e para um grupo de crianças em 1915 e 1916. Nessa época eles viram um anjo, às vezes chamado de Anjo da Paz ou o Anjo de Portugal, e receberam um comunhão dele certa vez.[19]

Por ocasião da revelação em 1925, foi dada a chamada "Grande Promessa"; esta promessa diz: "Prometo ajudar na hora da morte com as graças necessárias para a salvação todos aqueles que, no primeiro sábado de cinco meses consecutivos, vão à confissão, recebem a Sagrada Comunhão, digam o Rosário e me façam companhia Quinze minutos enquanto meditam nos quinze mistérios do Rosário, com o objetivo de fazer uma reparação para mim".[20] Esta promessa esclarece a Comunhão de Reparação dos Primeiros Sábados que foi mencionada na terceira aparição em julho de 1917.

Em primeiro lugar, esta recepção da comunhão nas igrejas católicas romanas é uma das duas condições para a conversão da Rússia; mas isso é obviamente inaceitável para os cristãos ortodoxos. Além disso, a idéia de que a Theotokos poderia conceder  na morte de alguém "todas as graças necessárias para a salvação" implica um ensino que é completamente estranho e contrário à Ortodoxia. A visão da graça apresentada aqui é aquela muito materialista associada às indulgências, como se a graça fosse uma mercadoria que pudesse ser armazenada e distribuída; mas a graça é a energia incriada de Deus em ação no mundo, não algo que possa ser entregue pelos santos em troca de nossas boas obras.

Nosso chamado como cristãos é seguir nosso Senhor Jesus Cristo em obediência a Deus em cada aspecto e momento de nossas vidas; que a obediência, possível somente com a graça que vem da nova vida em Cristo que recebemos no Batismo, nos leva a uma nova relação com Deus. Pensar que se é possível comprar a salvação realizando alguns atos piedosos em cinco sábados consecutivos banaliza toda a vida cristã e ridiculariza a vida, morte e ressurreição de nosso Senhor.

De fato, os Primeiros Sábados são outro exemplo do paralelismo entre o Imaculado Coração de Maria e o Sagrado Coração de Jesus. No século XVII, Margaret-Mary Alacoque recebeu esta promessa sobre o Sagrado Coração de Jesus por uma revelação especial: "Na grandeza da misericórdia de meu Coração, todo seu poderoso amor dará a todos aqueles que receberem a Comunhão na primeira sexta-feira de cada mês por nove meses consecutivos, a graça do pleno arrependimento de que eles não morrerão sob o meu desagrado nem sem receberem os sacramentos, e que meu Coração será seu refúgio seguro naquela última hora".[21]

Então, o que foi Fátima?

Tendo considerado os acontecimentos em Fátima e as doutrinas que apresentam a partir de um ponto de vista ortodoxo cristão, devemos agora pensar sobre o significado por trás deles. Desde o início, a Igreja Cristã tem sido combatida pelo espírito do Anticristo, que tem tentado distorcer a nossa compreensão de Deus e Seu Filho para que deixássemos a verdadeira adoração e caíssemos em ilusão satânica. Seus caminhos foram variados, mas todos tiveram o objetivo de distrair os homens de Deus. As doutrinas apresentadas em Fátima foram rejeitadas pela Igreja Ortodoxa como perversões da Fé levando à idolatria e para uma atitude carnal em relação à vida cristã e à salvação.

Fátima é, na verdade, uma parte de uma sequência de revelações e aparições especiais nos últimos 150 anos que tendem a reforçar um conjunto de doutrinas que a Igreja Ortodoxa sempre opôs como distorcida e, em alguns casos, que tendem a exaltar a Theotokos em uma igualdade quase-idólotra a Deus. Essas incluem:

Catherine Laboure. Em 1830 ela recebeu um padrão para a chamada Medalha Milagrosa por revelação especial. Esta medalha inclui o apoio à doutrina da Imaculada Conceição de Maria e de seu Coração Imaculado.
A visão em LaSalette, em 1846, quando Maria supostamente apareceu a dois filhos, um menino de 11 e uma menina de 15, e os advertiu que ela quase não era capaz de conter a ira de Cristo de punir a França severamente.
Bernadette Soubirous. Em 1858, as visões em Lourdes promoveram a Imaculada Conceição de Maria. Bernadette tinha 14 anos naquela época. 
Pontmain. Em 1871 Maria supostamente apareceu para quatro crianças de 10 a 12 anos de idade.
Beauraing. Em 1932-33 visões afirmaram a Imaculada Conceição de Maria a cinco crianças de 9, 11, 13, 14 e 15 anos de idade.
Banneaux. Em 1933 uma menina de 12 anos de idade tinha visões semelhantes de Maria.
Medjugorje. Desde 1981 até o presente momento, seis crianças, inicialmente entre 11 e 17 anos de idade, tiveram visões diárias de Maria. Essas visões ensinaram o uso do Rosário, a existência do Purgatório e encorajam o ecumenismo ("... todas as fés são agradáveis ​​a Deus"). Deve-se notar que a hierarquia católica romana local desautorizou essas visões e as considera uma ilusão.

Uma observação interessante sobre todas essas visões, exceto a primeira, é que todas elas ocorreram com crianças em torno da idade da puberdade. Curiosamente, observa-se que os fenômenos poltergeist ocorrem mais comumente com crianças da mesma idade. Parece que há algo na vida espiritual das crianças, especialmente as meninas, em torno desta idade que as torna fáceis vítimas de ataque demoníaco e ilusão. Em 1987 uma estátua de plástico da Virgem Maria começou a exsudar óleo, mas apenas na presença de uma garota árabe de 10 anos. É claro que o fato de uma estátua estar envolvida torna isso falso e inaceitável para os cristãos ortodoxos, uma vez que somos proibidos de usar estátuas de qualquer forma.

O verdadeiro significado de Fátima

Para os cristãos ortodoxos Fátima foi um ataque particularmente poderoso a Igreja Ortodoxa, uma vez que introduziu o tema da conversão da Rússia, apelando assim a muitos cristãos ortodoxos russos, angustiados pela escravização de sua pátria. Mas é absolutamente impossível separar as "profecias" sobre a Rússia do contexto total das visões. O objetivo de Fátima era apresentar e reforçar várias doutrinas distintamente católicas romanas que são absolutamente estranhas à Igreja Ortodoxa.

Nos acontecimentos de Fátima vemos mais uma vez a manifestação de um erro profundo que se repetiu em grande parte da história cristã: a confusão das experiências "religiosas" com a Revelação Divina. Muitas visões e profecias ocorreram ao longo da história em todas as religiões; em alguns casos as profecias se tornaram realidade, as visões têm feito milagres e curas. Mas essas profecias e milagres não dão testemunho da verdade das doutrinas ensinadas nessas experiências, pois muitas vezes vêm da ação demoníaca. As Escrituras nos ensinam claramente que qualquer profecia ou visão deve ser avaliada com base na doutrina que ela ensina:
 
Quando profeta ou sonhador de sonhos se levantar no meio de ti, e te der um sinal ou prodígio, e suceder o tal sinal ou prodígio, de que te houver falado, dizendo: Vamos após outros deuses, que não conheceste, e sirvamo-los; não ouvirás as palavras daquele profeta ou sonhador de sonhos; porquanto o SENHOR vosso Deus vos prova, para saber se amais o SENHOR vosso Deus com todo o vosso coração, e com toda a vossa alma. Após o SENHOR vosso Deus andareis, e a ele temereis, e os seus mandamentos guardareis, e a sua voz ouvireis, e a ele servireis, e a ele vos achegareis. E aquele profeta ou sonhador de sonhos morrerá, pois falou rebeldia contra o SENHOR vosso Deus, que vos tirou da terra do Egito, e vos resgatou da casa da servidão, para te apartar do caminho que te ordenou o SENHOR teu Deus, para andares nele: assim tirarás o mal do meio de ti. (Deut. 13:1-5)  

Devemos ser cautelosos com qualquer um que pretenda falar em nome de Deus, mesmo que seja um santo ou um anjo, como o apóstolo Paulo nos ensina:

"Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema. Assim, como já vo-lo dissemos, agora de novo também vo-lo digo. Se alguém vos anunciar outro evangelho além do que já recebestes, seja anátema." (Gálatas 1: 8-9)

Da mesma forma, os Santos Padres nos ensinam a desconfiar de todas as visões e milagres. Assim diz São Diocócio:

"Se a luz ou alguma forma ígnea for vista por alguém que está buscando o caminho espiritual, ele não deve, de maneira alguma, aceitar tal visão: é um óbvio engano do inimigo. Muitos de fato tiveram essa experiência e, em sua ignorância, se desviaram do caminho da verdade. Nós mesmos sabemos, no entanto, que, enquanto moramos neste corpo corruptível, "estamos ausentes do Senhor" (II Cor. 5: 6) - isto é, sabemos que não podemos ver visivelmente o próprio Deus ou qualquer de Suas maravilhas celestes."- Filocalia, Vol. 1, Londres, 1979, pp. 263-264.

São Pedro de Damasco amplifica ainda mais este ensinamento:

"Quando o diabo viu Cristo descendo em Sua extrema bondade aos santos mártires e os reverendo pais, aparecendo Ele mesmo ou através dos anjos ou em alguma outra forma inefável, ele passou a fabricar diversas ilusões para destruir as pessoas. É por isso que os pais, em discernimentos, escreveram que não devemos prestar atenção a tais manifestações diabólicas, quer venham através de imagens, luz, fogo, ou qualquer outra forma enganosa... Se aceitarmos tal desilusão, (o diabo) faz com que o intelecto, em sua total ignorância e presunção, represente várias formas ou cores para que nós pensemos que esta é uma manifestação de Deus ou de um anjo. Muitas vezes no sono, ou em nossos sentidos quando acordado, ele nos mostra demônios que aparentemente são derrotados. Em suma, ele faz tudo o que pode para nos destruir, fazendo-nos sucumbir a essas ilusões." - Filocalia, Vol. 3, p. 81.
Sempre que fazemos das "experiências religiosas" emocionais ou vários sinais e maravilhas o critério da nossa fé, abrimos assim as comportas a todo tipo de ilusão. Se este é o padrão de nossa fé, devemos reconhecer a validade de qualquer experiência da qual alguém ganha uma sensação "religiosa": a antiga prostituição ritual nos templos pagãos; o culto frenético de Baco; os dervixes e seguidores muçulmanos do Ayatollah Khomeini e seus sucessores. Não podemos mais distinguir entre a verdade de Deus e os erros do diabo. Mas, em verdade, todas as experiências religiosas devem ser testadas em concordância com a Fé Ortodoxa antes que elas possam ser aceitas como genuinamente de Deus. A Fé Ortodoxa é o critério objetivo que nos permite separar as verdadeiras experiências de Deus das ilusões do maligno. Todas as nossas experiências religiosas devem ser verificadas pela Fé; a Fé não é provada por elas.

NOTAS

1 “Os católicos haviam formado um pequeno seminário ecumênico em Leningrado ... De nossos amigos católicos aprendemos pela primeira vez sobre a aparição da Mãe de Deus em Fátima e o que ela havia dito sobre a Rússia". Talking About God Is Dangerous, New York, 1987, pp. 52-53. See also p. 103.
2 Carol, M.P., The Cult Of The Virgin Mary, Princeton, 1986, p. 177
3 Kondor, Louis, ed., Fatima in Lucia’s Own Words, Cambridge, Mass., 1963, p. 165
4 Ibid., p. 172. 
Na verdade, somente Lucia viu Nossa Senhora das Dores e Nossa Senhora do Carmo em outubro. As Crianças nem sempre viram as mesmas coisas ao mesmo tempo e Francisco muitas vezes não ouviu as palavras da aparição. Cf. Carroll, op. cit., p. 127.
5 Ibid., p. 163.
6 Ver Prestige, G.L., Fathers and Heretics, London, 1963, pp. 180-207 para uma discussão deste desenvolvimento.
7 Uma tendência semelhante à devoção direta a várias "partes" do Senhor Jesus Cristo, por exemplo, Sua alma, mãos, rosto, desenvolveu-se na primeira metade do século XX, mas foi verificada pela própria Roma como não saudável.
Cf. Prestige, op. Cit. P. 200.
8 Against the Antidicomarianites, Migne, PG 42, 736 B, CD.
Cf também São João de Damascus, On Heresies, New York, 1958, p. 131.
9 McGrath, Rt. Rev. William C., Fatima Or World Suicide, Scarboro, Ontario, Canada, 1950, p. 36.
10 Kondor, op. cit. p. 167.
11 Barthas, C.C., Our Lady of Light, p. 14.
12 Kondor, op. cit., p. 165.
13 Ibid., p. 161.
14 McGrath, op. cit. p. 136.
15 Philokalia, Vol. 3, London, 1984, p. 200.
16 Carroll, op. cit., p. 136.
17 Schweigel, G.M., Fatima e la Conversione Della Russia, Rom, 1957, p. 10.
18 Kondor, op. cit. p. 167.
19 Ibid., pp. 154-158.
20 McGrath, op. cit. pp. 90-91.
21 Attwater, D., A Catholic Dictionary, New York, 1941, p. 363.  

Texto original em http://www.orthodox.org/fatima.htm

Nota do blog: É comum ver Católicos Romanos utilizando parte da suposta mensagem que diz "a Rússia espalhará seus erros pelo mundo...” como uma forma de criticar não somente o comunismo (que, obviamente, é algo nefasto e corretamente criticado), mas também o Cristianismo Ortodoxo. Pois na cabeça deles - não de todos eles, claro - a Igreja Ortodoxa aparentemente faz parte dos supostos erros, pois, afirmam, ela é manipulada pelo governo russo (e consequentemente pela "KGB"). Além disso, estendem a crítica feita a uma igreja local Ortodoxa, a uma crítica à Igreja Ortodoxa como um todo (isto é, ignoram o fato de que a Igreja Ortodoxa é uma comunhão de igrejas locais, onde a igreja russa é apenas uma entre outras).

Deixo aqui os seguintes comentários:

[1] A primeira referência à Rússia é fornecida pela Irmã Lúcia em 1930. Antes disso - isto é, nas várias entrevistas e depoimentos iniciais - a Rússia não é mencionada nem pelas crianças nem pelos inúmeros depoimentos dos envolvidos. Somente nas memórias de Lucia, escritas na década de 1940, há a primeira referência de que a Rússia "espalhará seus erros pelo mundo" e a profecia sobre o início da Segunda Guerra Mundial aparece pela primeira vez. A irmã Lúcia revelou essas palavras da aparição somente depois que esses fatos ocorreram. (retirado do blog Catena Aurea)

[2] Comentário do Fábio L. Leite no facebook:

A primeira revolução genocida e assumidamente anti-cristã foi francesa. O cientificismo, materialista e matematicista, é anglo-americano e germânico. Marx era um alemão, com sua principal produção intelectual realizada na Inglaterra. Gramsci era italiano. George Soros é húngaro. A Escola de Frankfurt nasceu na Alemanha e criou raízes nos EUA. A Teologia da Libertação nasceu, frutificou e se espalhou para o mundo desde a América Latina. O globalismo e o projeto de uma nova ordem mundial são idéias nascidas na Europa Ocidental. O metacapitalismo começa no Império Britânico e nos EUA e se espalha desde lá. O próprio regime soviético só foi possível devido a farto apoio ocidental. E quase tudo isso sendo de alguma forma tributário de Kant (alemão), Nietzsche (alemão), Voltaire (francês), Descartes (francês) e tantos outros. Agora, você pode achar que tudo isso é a Rússia manipulando o mundo como um fantoche, assim como tem quem ache que sejam os judeus ou os "reptilianos", mas se não for, o que predomina no mundo? Essas coisas aí, ou uma hegemonia cultural russa? O que predomina no mundo são os erros da Rússia ou os da Europa Ocidental? (comentário do Fábio L. Leite no facebook)

[3] Comentário do Fábio L. Leite no facebook:

O mito da Igreja Russa como instrumento de propaganda do governo russo funciona assim:

(1) Você pesquisa e estuda as relações entre Igreja e Estado.
(2) Você descobre que basicamente em toda parte há mártires, místicos, fiéis, perseguidos, mornos, carreiristas e vendidos.
(3) Dentre os vendidos há os que o fazem por interesse pessoal ou por fé maior em algum ideal exterior à Igreja. Dentre os carreiristas há os que são agentes de si mesmo, e os que são agentes de governos.
(4) Em todas as outras igrejas você diz que os fiéis e místicos são seus representantes fiéis, e os carreiristas, especialmente se trabalham para governos, seus traidores. Para Igreja Russa você arbitrariamente diz o contrário: os carreiristas para o governo são os fiéis que definem a instituição, os outros são inocentes companheiros de estrada sendo usados.
(5) Igualmente você descobre que não há igrejas que não tenham passado por períodos longos de intervenção de governantes seculares. Inclusive Roma e mesmo depois das controvérsias de Investidura. Para todos você reconhece que as intervenções governamentais foram períodos de exceção e não representam a vida normal daquela igreja. Para a Igreja Russa, arbitrariamente, você diz que esses períodos é que são a Igreja Russa no seu modus operandi normal, e os demais apenas casos de exceção.

O que fazem com a Igreja Russa é precisamente a atitude mesquinha de olhar para uma pessoa de gênio e querer defini-la por seus defeitos. Oras, alguém já viu a KGB ou a CIA gerar santos? Se o fizeram foi apenas no papel de algozes perseguindo mártires.~

[4] Quando Roma ainda professava o catolicismo ortodoxo e era a sė primaz, vivia sob o Imperador cristão (inclusive quando ele era herege) sendo necessário inclusive que o imperador aprovasse o bispo de Roma até o século 8. Quando não estava nessa condição, estava sempre trabalhando com algum rei germânico e nos seus piores anos sob o domínio de famílias italianas (século X). A própria inserção do filioque no Credo romano oficialmente foi devido a pedido do imperador do Sacro Império em 1014. O protestantismo por sua vez nasce inteiro do oportunismo de nobres germânicos apoiando dissidentes de Roma para terem uma igreja pra chamarem de sua.

Como pode, em face de tais fatos, que ocidentais acreditem em "igreja estatal russa"? A igreja russa quando não esteve em frágil paz com o governo russo esteve sendo perseguida por ele! O mito do cesaropapismo russo não passa de wishful thinking ocidental.