quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Ortodoxia e o Iluminismo

Como os Ortodoxos avaliam a chamada "Era da Razão", esse período de otimismo inebriante entre a Restauração da Monarquia na Inglaterra em 1660 e a Revolução Francesa de 1789? Foi nesse período que a semente do humanismo, semeada no Renascimento e germinada na Reforma Protestante, finalmente chegou a plena floração naquilo que hoje é chamado de "Iluminismo".

O "Iluminismo" sugere a emergência da humanidade da escuridão de uma era passada. A agenda anti-cristã e secular da Era da Razão fica clara. É neste momento que o adjetivo "medieval" se torna um termo de insulto. É nessa época que a ciência natural passa a considerar a teologia como uma camisa de força da qual alegremente se libertará. A nova classe mercante adotará a não-conformidade como greve pela liberdade contra a classe rica e de prestígio estabelecida no país anglicano. A Revolução Industrial gerará uma classe desvinculada da Igreja e conduzirá a Grã-Bretanha para um Império glorioso, no qual o anglicanismo se redefinirá como uma denominação que se aproveitará do colonialismo. Muito disso, no entanto, só ocorre mais tarde. As raízes do Iluminismo não estão em máquinas ou no capital, mas em uma filosofia secular que substituirá o que resta da Ortodoxia no ocidente.

Os heróis desta época são Isaac Newton e John Locke. Ambos são crentes, mas não no sentido Cristão Ortodoxo do termo. Eles acreditam na lei natural da criação e na razoabilidade da moral cristã, mas não nos milagres, na revelação, na ressurreição, na salvação, na regeneração e nos sacramentos da Igreja. Eles são quase (se não totais) deístas. De mãos dadas com os Whigs na política, esta nova intelectualidade estabelece os alicerces de um movimento que se difundirá em grande parte da Europa. Voltaire, Diderot e Rousseau aproveitam esse novo pensamento para ampliar a ruptura entre a Igreja francesa comprometida e a classe de camponeses desprotegida que eles, como toda boa burguesia desde então, manipularam para tomar o poder. No continente - e começando pela França - a tendência anti-cristã do movimento em direção à "razoabilidade", paradoxalmente, gera os excessos irracionais da Revolução.

Felizmente, a Grã-Bretanha é salva da violência desta Era da Revolução, mas sua cultura cristã permanecerá sufocada por esse moralismo "racional" diluído por um século ou mais. Somente com Wesley e os Metodistas, a classe trabalhadora inglesa alcançará Cristo, mas na base do coração e não da mente. Aqui começará o Reavivamento Evangélico. 

Entretanto, alguns anglicanos, como Berkeley e Butler, tentarão corajosamente dar um fim nesta mudança em direção ao Deísmo, que, no Espírito da Era, prega um deus racional, frio e distante. Esse deus cria as leis e simplesmente senta-se no céu sem fazer nada enquanto o trabalho real é feito por homens racionais que obedecem tanto à vontade de Deus quanto à lei natural e têm o melhor interesse para todos no coração. Quão reconfortante!


Na verdade, no entanto, o fim real da Era da Razão vem com a Revolução Francesa, cujos excessos sangrentos recordam a toda a Europa que os pregadores da nova racionalidade podem ser tão cruéis e opressivos quanto seus predecessores aristocráticos. David Hume completa a demolição dessa confiança na Razão, mostrando quão experimentais todas as nossas abordagens ao mundo natural e a verdade podem ser. Ao enfatizar a necessidade de evidências sem pressuposições de qualquer tipo, ele ajuda a inaugurar uma nova confiança, não na Razão enquanto tal, mas no surgimento da Ciência.

Até aqui muito exame histórico. Mas como a Igreja Ortodoxa reage a tudo isso? Temos poucas evidências do período em si. O mundo Ortodoxo do mediterrâneo estava separado do ocidente, encarcerado sob o domínio islâmico otomano. A igreja russa estava muito ocupada lidando com o Czar Pedro (o chamado) "Grande", que parecia gastar muito do seu tempo imitando modos ocidentais. As respostas Ortodoxas significativas só emergem retrospectivamente e então, principalmente, em relação ao legado do Iluminismo nas igrejas ocidentais até hoje. É esse legado que informa como nós, Ortodoxos, devemos deixar nossa marca.

A Ortodoxia encontra-se distante do Iluminismo porque sua abordagem à mente humana é radicalmente diferente. Nós não acreditamos que a mente humana seja tão pura que apenas o exercício da razão pode conduzir inexoravelmente a certas verdades auto-evidentes sobre Deus e a humanidade. Nós tampouco podemos avançar parcialmente com David Hume porque ele permanece com uma pequena fé que baseia-se apenas em evidências.

Podemos ser tentados talvez a nos juntar com os protestantes em nossa ênfase na revelação, em vez da razão ou evidência; mas não, nossa compreensão da revelação e da evidência é de caráter bastante diferente. Nós não podemos nos juntar com o que podemos chamar de "cristãos do coração", metodistas, pentecostais e carismáticos. Eles fariam do cristianismo algo sentimentalista e um pouco mais, reduzindo-o certamente como os quakers antes fizeram numa devoção banal e em ativismo social. A Ortodoxia é compelida a considerar todos os movimentos de reforma ocidentais bem intencionados, mas essencialmente suspeitos até que seja realizada uma análise mais radical dos problemas do cristianismo ocidental.

Um bom lugar para começar é a relação entre a mente e o coração. Os escolásticos medievais liderados pelos dominicanos foram aqueles que primeiro deram início ao grande empreendimento da Razão, a saber, no discernimento e na confirmação dos grandes propósitos de Deus, utilizando as faculdades da mente humana. Embora os protestantes se rebelaram contra isso, muitas Igrejas Reformadas eventualmente substituíram por suas próprias escolásticas da mente. O Iluminismo foi a inevitável resolução anti-cristã dessa tendência. Desenvolvendo de forma paralela, tanto antes como depois da Reforma, a religião do coração foi propagada pelos místicos da Renânia, os franciscanos espirituais, os anabatistas, os quakers, os metodistas e os pentecostais. No entanto, essas duas tendências no ocidente, a mente e o coração, permaneceram bastante distintas. Às vezes, a guerra irrompia entre elas, mas cada uma, essencialmente, tinha seu próprio domínio, método e espiritualidade separadas, e cada uma delas freqüentemente se definia uma contra outra, e não uma pela outra.

A Ortodoxia entra com uma ideia bastante diferente, ou pode-se dizer, uma prática ascética diferente, agora amplamente esquecida no ocidente. Na mais elevada obra do homem, a oração, a mente desce ao coração. Lá, a mente permanece intacta, ainda ativa e funcionando; mas no coração ela ouve uma Canção mais vasta e profunda do que o próprio raciocínio: o murmúrio do Espírito Santo que revela a Palavra Viva, Deus-Cristo. Contudo, tendo encontrado Cristo no coração e combatido todos os demônios que procuravam destronar Seu reino justo e gentil, a mente ressurge no domínio ativo para entender a benção que recebeu. Esse entendimento combina tudo o que é bom e nobre nas ciências humanas e naturais, não em um humanismo "fácil" que venderia seu cristianismo por uma aceitação do mundo, mas em nova síntese, a transfiguração de tudo o que é humano pela Palavra e Poder de Deus.

Nesta síntese da Santa Ortodoxia, não há batalhas entre Fé e Razão, entre Coração e Mente, entre Religião e Ciência, entre o indivíduo e a comunidade. Todos são um em Deus e essa unidade se estende desde a humanidade a todo o Cosmos.

Lembremos então que a fonte deste verdadeiro Iluminismo está no encontro entre a mente no coração e Deus. Esta Iluminação não é simplesmente pensar em Deus ou sentir Sua Presença. É uma luta com e para Deus que inicia no batismo e termina apenas no Último Dia, quando o Reino de Deus e o Cosmos se reunirão completamente e indistinguivelmente no Amor. No amor de Deus, a mente e o coração já são um. A Ortodoxia não precisa de nenhum Iluminismo extra adicionado. Ela é o próprio Iluminismo. Introduza a Ortodoxia no ocidente e o antigo e destrutivo "Iluminismo" simplesmente desaparecerá. Que esse dia possa chegar em breve!


Arcipreste Gregory Hallam, Orthodoxy and the Enlightenment

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