terça-feira, 24 de outubro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Mistério (Kallistos Ware) [Parte 2/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade 


Como desconhecidos, mas sendo bem conhecidos.
2 Coríntios 6:9

Deus não pode ser entendido pela mente. Se pudesse ser entendido, ele não seria Deus.
Evágrio Pôntico

Certo dia, alguns dos irmãos vieram ver Abba Antônio, entre eles, Abba José. Desejando testá-los, o ancião mencionou um texto da Escritura, e, começando com o mais novo, perguntou o que significava. Cada um explicou o melhor que pôde. Mas para cada um, o velho disse: "Você ainda não encontrou a resposta". Por último, ele disse a Abba José: "E o que você acha que o texto significa?" Ele respondeu: "Não sei". Então Abba Antônio disse: "Verdadeiramente, Abba José encontrou o caminho, porque ele disse: eu não sei".
Ditos dos Pais do Deserto

Como amigo falando com seu amigo, o homem fala com Deus, e aproximando-se com confiança, ele se encontra diante da face d'Aquele que habita a luz inacessível.
São Simeão, o Novo Teólogo

A Alteridade e a Proximidade do Eterno

O que, ou quem, é Deus?

O viajante no Caminho espiritual, quanto mais avança, mais consciente se torna-se de dois fatos contrastantes - da alteridade e proximidade do Eterno. Em primeiro lugar, ele percebe cada vez mais que Deus é um mistério. Deus é "o inteiramente Outro", invisível, inconcebível, radicalmente transcendente, além de todas as palavras, além de toda compreensão. "Certamente uma criança acabou de nascer", escreve o católico romano George Tyrrell, "sabe tanto do mundo e seus caminhos como o mais sábio de nós pode saber dos caminhos de Deus, cuja influência se estende sobre o céu e a terra, o tempo e a eternidade." Um cristão na tradição ortodoxa concordará com isso inteiramente. Como os Pais Gregos insistiram: "Um Deus que é compreensível não é Deus." Ou seja, um Deus que afirmamos compreender de forma exaustiva por meio do nosso raciocínio não é mais do que um ídolo, moldado a nossa própria imagem. Tal "Deus", decisivamente, não é o Deus verdadeiro e vivo da Bíblia e da Igreja. O homem é feito à imagem de Deus, mas o inverso não é verdadeiro.

No entanto, em segundo lugar, esse Deus de mistério está, ao mesmo tempo, claramente próximo de nós, preenchendo todas as coisas, presente por toda parte ao nosso redor e dentro de nós. E ele está presente, não apenas como uma atmosfera ou uma força sem nome, mas de forma pessoal. O Deus que está infinitamente além do nosso entendimento revela-se a nós como pessoa: ele chama cada um por nosso nome e nós respondemos. Entre nós e o Deus transcendente, há uma relação de amor, semelhante em espécie àquela que existe entre cada um de nós e os seres humanos mais queridos para nós. Conhecemos outros seres humanos através do nosso amor por eles, e através do amor deles por nós. Assim também é com Deus. Nas palavras de Nicolau Cabasilas, Deus nosso Rei é

mais afetuoso do que qualquer amigo,
mais justo do que qualquer governante,
mais amoroso do que qualquer pai,
mais  parte de nós do que nossos próprios membros,
mais necessário para nós do que o nosso próprio coração.

Estes, então, são os dois "pólos" na experiência humana do Divino. Deus está mais longe, e mais próximo, de nós, do que qualquer outra coisa. E percebemos, paradoxalmente, que esses dois pólos não se anulam: pelo contrário, quanto mais somos atraídos para um "pólo", mais vividamente nos tornamos conscientes do outro ao mesmo tempo. Avançando no Caminho, cada um descobre que Deus torna-se cada vez mais íntimo e sempre mais distante, bem conhecido e ainda desconhecido - conhecido para uma pequena criança, incompreensível para o mais brilhante teólogo. Deus habita em uma "luz inacessível", mas ainda assim o homem está em sua presença com uma confiança amorosa e se dirige a ele como a um amigo. Deus é ponto de chegada e o ponto de partida. Ele é o anfitrião que nos acolhe no final da jornada, mas é também o companheiro que caminha ao nosso lado a cada passo do Caminho. Como Nicolau Cabasilas diz: "Ele é  tanto a estalagem na qual descansamos por uma noite como o final de nossa jornada".

Mistério, mas pessoa: vamos considerar esses dois aspectos a seguir.

Deus como Mistério

A menos que comecemos com um sentimento de admiração e reverência - com o que muitas vezes é chamado de senso do numinoso -, faremos pouco progresso no Caminho. Quando Samuel Palmer visitou pela primeira vez William Blake, o velho perguntou-lhe como ele abordava a pintura. 'Com temor e tremor', Palmer respondeu. "Então você será capaz", disse Blake.

Os Pais Gregos comparam o encontro do homem com Deus à experiência de alguém caminhando sobre as montanhas na névoa: ele dá um passo à frente e de repente descobre que ele está na borda de um precipício, sem um chão sob os pés, mas apenas um abismo sem fundo. Ou então eles usam o exemplo de um homem de pé na noite, em uma sala escura: ele abre uma pequena brecha na janela, e, quando olha para fora um súbito relâmpago o faz cair para trás, momentaneamente cego.  Tal é o efeito de ficar frente a frente com o mistério vivo de Deus: somos atingidos por uma vertigem;  todos os pontos de apoio familiares desaparecem, e não parece não haver nada que possamos entender; nossos olhos internos tornam-se cegos, nossas suposições normais são estilhaçadas.

Os Pais também tomam como símbolos do Caminho espiritual as duas figuras do Antigo Testamento, Abraão e Moisés. Abraão, vivendo ainda em sua antiga morada em Ur dos Caldeus, recebe a instrução de Deus: "Sai do teu país, e da tua parentela, e da casa de teu pai, para uma terra que eu vou te mostrar" (Gen. 12:1). Aceitando o chamado divino, ele sai de seu ambiente familiar e se aventura no desconhecido, sem qualquer ideia clara de seu destino final. Ele simplesmente recebeu a ordem, 'Sai...' e, com fé, ele obedece. Moisés recebe sucessivamente três visões de Deus: primeiro ele avista Deus em uma visão de luz na Sarça Ardente (Êxodo 3: 2); em seguida, Deus lhe é revelado na mistura de luz e escuridão, na "coluna da nuvem e do fogo", que acompanha o povo de Israel pelo deserto (Êxodo 13:21); e então, por fim, ele encontra Deus em uma "não-visão", quando fala com Ele na "escuridão espessa" no topo do Monte Sinai (Êxodo 20:21).

Abraão viaja da  casa de sua família para um país desconhecido; Moisés progride da luz para a escuridão. E assim acontece com cada um que segue o Caminho espiritual. Saindo do conhecido para o desconhecido, avançamos da luz para a escuridão. Nós não procedemos simplesmente da escuridão da ignorância para a luz do conhecimento, mas avançamos da luz do conhecimento parcial para um conhecimento maior que é muito mais profundo que só pode ser descrito como a "escuridão do desconhecimento". Como Sócrates, começamos a perceber quão pouco que entendemos. Vemos que não é tarefa do cristianismo fornecer respostas fáceis a todas as questões, mas sim tornar-nos progressivamente conscientes de um mistério. Deus não é tanto o objetivo do nosso conhecimento, mas a causa de nossa admiração. Citando o Salmo 8:1: "Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra", São Gregório de Nisa afirma: "O nome de Deus não é conhecido; é admirado."

Reconhecendo que Deus é incomparavelmente maior do que qualquer coisa que possamos dizer ou pensar sobre Ele, achamos necessário referirmo-nos a ele não apenas por meio de declarações diretas, mas por meio de figuras e imagens. Nossa teologia é em grande medida simbólica. No entanto, os símbolos por si só são insuficientes para transmitir a transcendência e a "alteridade" de Deus. Para apontar para o mysterium tremendum, precisamos usar declarações negativas e afirmativas, dizendo o que Deus não é em vez do que ele é. Sem o uso do caminho da negação, daquilo que é chamado de abordagem apofática, nossa conversa sobre Deus torna-se seriamente enganosa. Tudo o que afirmamos em relação a Deus, por mais correto que seja, fica longe da verdade viva. Se dissermos que Ele é bom ou justo, devemos, de imediato, acrescentar que sua bondade ou justiça não devem ser medidas pelos nossos padrões humanos. Se dissermos que Ele existe, devemos qualificar isso de imediato, acrescentando que Ele não é um objeto existente entre muitos, que em seu caso a palavra "existir" tem um significado único. Portanto, o caminho da afirmação é equilibrado pelo caminho da negação. Como diz o Cardeal Newman, continuamente estamos "dizendo e não dizendo, com um resultado positivo". Tendo feito uma afirmação sobre Deus, devemos passar além dela: a afirmação não é falsa, mas nem ela nem qualquer outra forma de palavras podem conter a plenitude do Deus transcendente.

Assim, o Caminho espiritual revela-se um caminho de arrependimento no sentido mais radical. Metanoia, a palavra grega para arrependimento, significa literalmente "mudança de mente". Ao aproximarmo-nos de Deus, devemos mudar a nossa mente, despojando-nos de todas as nossas formas habituais de pensar. Devemos nos converter não só na nossa vontade, mas também no nosso intelecto. Precisamos inverter nossa perspectiva interior,  manter a pirâmide de cabeça para baixo.

No entanto, a "escuridão espessa" em que entramos com Moisés revela-se uma escuridão luminosa ou deslumbrante. A maneira apofática de "desconhecer" não nos leva ao vazio, mas à plenitude. Nossas negações são, na realidade, supra-afirmações. Destrutiva na forma externa, a abordagem apofática é afirmativa em seus efeitos finais: ela nos ajuda a alcançar, para além de todas as afirmações positivas ou negativas, para além de toda linguagem e de todo o pensamento, uma experiência imediata do Deus vivo.

Isto está implícito, na verdade, na  própria palavra "mistério". No sentido religioso correto do termo, "mistério" significa não só ocultação, mas também desvelamento.  A palavra grega mysterion está ligada com o verbo myein, que significa "fechar os olhos ou a boca". O candidato para iniciação em certas religiões de mistérios pagãs era primeiramente vendado e conduzido através de um labirinto; então, de repente, seus olhos descobertos e ele via, os emblemas secretos do culto ao redor dele. Assim, por "mistério", no contexto cristão, não nos referimos meramente àuquilo que é desconcertante e misterioso, um enigma ou um problema insolúvel. Um mistério é, ao contrário, algo que é revelado ao nosso entendimento, mas que nunca compreendemos exaustivamente porque conduz à profundidade ou à escuridão de Deus. Os olhos são fechados - mas eles também são abertos.

Portanto, ao falarmos de Deus como um mistério, somos levados ao nosso segundo "pólo". Deus está escondido de nós, mas ele também nos é revelado: revelado como pessoa e como amor.

Fé em Deus como Pessoa

No Credo, não dizemos: "Creio que há um Deus"; nós dizemos: "Creio em um só Deus". Entre a crença de que há e a crença em, há uma distinção crucial. É possível, para mim, crer que alguém ou algo existe, e, ainda assim, que essa crença não tenha nenhum efeito prático sobre minha vida. Posso abrir a lista telefônica de Wigan e verificar os nomes registrados em suas páginas; e, enquanto leio, estou preparado para acreditar que algumas (ou mesmo a maioria) dessas pessoas realmente existem. Mas eu não conheço nenhuma delas pessoalmente, eu nunca visitei Wigan, e minha crença de que elas existem não faz diferença para mim. Quando, por outro lado, eu digo a um amigo muito querido, "Eu creio em você", estou fazendo muito mais do que expressar a crença de que essa pessoa existe. "Eu creio em você" significa: Eu recorro a você, confio em você, coloco minha confiança total em você e espero em você. E é isso que estamos dizendo a Deus no Credo. A fé em Deus, portanto, não é o mesmo que o tipo de certeza lógica que alcançamos na geometria euclidiana. Deus não é a conclusão de um processo de raciocínio, a solução de um problema matemático. Acreditar em Deus não é aceitar a possibilidade de sua existência porque nos foi provado por algum argumento teórico, mas é confiar n'Aquele que conhecemos e amamos. A fé não é o pressuposto de que algo pode ser verdade, mas a certeza de que alguém está presente.

Pelo fato da fé não ser uma certeza lógica, mas um relacionamento pessoal, e pelo fato deste relacionamento pessoal ser ainda muito incompleto em cada um de nós e precisar continuamente desenvolver-se ainda mais, não é impossível que a fé coexista com a dúvida. Os dois não são mutuamente exclusivos. Talvez haja alguns que, pela graça de Deus, conservem ao longo de sua vida a fé de uma criança, permitindo-lhes aceitar sem questionar tudo o que lhes foi ensinado. Para a maioria daqueles que vivem no ocidente hoje, no entanto, essa atitude simplesmente não é possível. Temos que clamar também: "Eu creio, Senhor! ajuda a minha incredulidade". (Marcos 9:24). Para muitos de nós, essa continuará sendo nossa oração constante até os próprios portões da morte. No entanto, a dúvida não significa, por si só, falta de fé. Pode significar o oposto - que nossa fé está viva e crescendo. Pois a fé não implica complacência, mas assumir riscos, não nos desligando do desconhecido, mas avançando audazmente para encontrá-lo. Aqui, um cristão ortodoxo pode prontamente fazer suas as palavras do bispo J.A.T. Robinson: "O ato de fé é um diálogo constante com a dúvida". Como Thomas Merton corretamente diz: "A fé é um princípio de questionamento e luta antes de se tornar um princípio de certeza e paz".

A fé, portanto, significa uma relação pessoal com Deus; um relacionamento ainda incompleto e vacilante, mas ainda assim real. Trata-se de conhecer Deus não como uma teoria ou princípio abstrato, mas como pessoa. Conhecer uma pessoa é muito mais do que conhecer fatos sobre essa pessoa. Conhecer uma pessoa é essencialmente amar ele ou ela; não pode haver consciência real de outras pessoas sem amor mútuo. Não temos conhecimento genuíno daqueles que odiamos. Aqui, então, estão as duas formas menos enganosas de falar sobre o Deus que supera nossa compreensão: ele é pessoal e ele é amor. E estas são basicamente duas maneiras de dizer a mesma coisa. Nosso modo de entrada no mistério de Deus é através do amor pessoal. Como "A Nuvem do Não-Saber"  diz: "Ele pode ser amado, mas não pensado. Por amor, ele pode ser alcançado e mantido, mas pelo pensar nunca".

Como uma indicação ofuscada desse amor pessoal existente entre o fiel e o Sujeito de sua fé, vamos dar três exemplos ou ícones (ikons) verbais. O primeiro é do relato do martírio de São Policarpo, do século II. Os soldados romanos haviam acabado de chegar para prender o já idoso Bispo Policarpo, e levá-lo ao que ele sabia que devia ser a sua morte:

Quando soube que tinham chegado, ele desceu e falou-lhes. Todos ficaram maravilhados com sua idade e sua calma, e se perguntaram por que as autoridades estavam tão ansiosas para prender um homem velho como ele. De imediato, Policarpo ordenou que comida e bebida fossem servidas, tanto quanto quisessem, embora fosse tarde; e pediu-lhes que lhe dessem uma hora para rezar sem ser perturbado. Quando concordaram, ele levantou-se e rezou, e estava tão cheio da graça de Deus que, durante duas horas, não pôde ficar em silêncio. Enquanto ouviam, ficaram cheios de espanto, e muitos deles se arrependeram por terem prendido um idoso tão santo. Ele se lembrou do nome de todos os que havia conhecido, grandes e pequenos, comemorados ou desconhecidos, e de toda a Igreja Católica em todo o mundo.

Tão forte e arrebatador era seu amor por Deus, e por toda humanidade em Deus, que, nesse momento de crise, São Policarpo pensa apenas nos outros e não no perigo que ele mesmo estava correndo. Quando o governador romano lhe diz para salvar sua vida, rejeitando Cristo, ele responde: "Por 86 anos eu fui seu servo, e ele não me fez nada errado. Como então eu posso blasfemar contra meu Rei, que me salvou?"

O segundo é o relato de São Simeão, o Novo Teólogo no século XI, descrevendo como Cristo revelou-se em uma visão de luz:

Tu brilhste sobre mim com um resplendor radiante e, assim me pareceu, surgiste para mim em Tua totalidade enquanto, com todo o meu ser, eu olhava abertamente para Ti. E quando eu disse: "Mestre, quem és?" então ficaste satisfeito por falar pela primeira vez comigo, o pródigo. Com que gentileza falaste comigo, enquanto, admirado e tremendo, refleti um pouco dentro de mim e disse: "O que essa glória e esse brilho deslumbrante significam? Como posso ser escolhido para receber essas grandes bênçãos?" "Eu sou Deus", respondeste, "que se fez homem por tua causa; e porque me procuraste com todo o teu coração, daqui em diante serás meu irmão, meu herdeiro e meu amigo."

Como terceiro exemplo, uma oração de um bispo russo do século XVII, São Dimitrii de Rostov:

Vem, minha Luz, e ilumina minha escuridão.
Vem, minha Vida e me reviva da morte.
Vem, meu Médico, e cura minhas feridas.
Vem, Chama do amor divino, e queime
os espinhos dos meus pecados, acendendo meu coração com a
Chama do Teu amor.
Vem, meu Rei, senta-te no trono do meu coração
e reina ali.
Pois
Tu és meu Rei e meu Senhor.

Três "Indicadores"

Deus, então, é Aquele a quem amamos, nosso amigo pessoal. Não precisamos provar a existência de um amigo pessoal. Deus, diz Olivier Clemente, "não é uma evidência externa, mas o chamado secreto dentro de nós". Se acreditamos em Deus, é porque O conhecemos diretamente em nossa própria experiência, não por causa de provas lógicas. No entanto, uma distinção precisa ser feita entre "experiência" e "experiências". A experiência direta pode existir sem necessariamente acompanhar experiências específicas. De fato, muitos creem em Deus por causa de alguma voz ou visão, como São Paulo recebeu no caminho de Damasco (Atos 9: 1-9). Há muitos outros, porém, que nunca passaram por experiências particulares desse tipo, mas que ainda podem afirmar que, presente durante a vida como um todo, há uma experiência total do Deus vivo, uma convicção em um nível mais fundamental do que todas as suas dúvidas. Mesmo que eles não possam apontar para um lugar ou momento preciso do caminho como Santo Agostinho, Pascal ou Wesley puderam, eles podem afirmar com confiança: eu conheço Deus pessoalmente.

Tal, então, é a "evidência" básica da existência de Deus: um apelo à experiência direta (mas não necessariamente às experiências). No entanto, embora não possa haver demonstrações lógicas da realidade divina, existem certos "indicadores". No mundo que nos rodeia, como também dentro de nós, há fatos que clamam por uma explicação, mas que permanecem inexplicáveis a menos que nos comprometamos a crer em um Deus pessoal. Três desses "indicadores" exigem menção particular.

Primeiro, há o mundo que nos rodeia. O que vemos? Muita desordem e desperdício evidente, muito desespero trágico e sofrimento aparentemente inútil. E isso é tudo? Certamente não ... Se existe um "problema do mal", também há um "problema do bem". Onde quer que olhemos, vemos não só confusão, mas beleza. Em flocos de neve, folhas ou insetos, descobrimos padrões estruturados de uma delicadeza e equilíbrio que nada fabricado pela habilidade humana pode igualar. Não devemos sentimentalizar essas coisas, mas não podemos ignorá-las. Como e por que esses padrões surgiram? Se eu pegar um baralho de cartas da fábrica, com os quatro naipes organizados em sequência, e começar a embaralhá-lo, então quanto mais ele é embaralhado, mais o padrão inicial desaparece e é substituído por uma justaposição sem sentido. Mas, no caso do universo, o contrário aconteceu. A partir de um caos inicial, surgiram padrões de uma complexidade e significado cada vez maiores, e entre todos esses padrões, o mais intrincado e significativo é o próprio homem. Por que o processo que acontece com o baralho de cartas é exatamente  invertido no nível do universo? O que, ou quem, é responsável por essa ordem e design cósmico? Tais questões não são despropositadas. É a razão em si que me impele a buscar uma explicação sempre que percebo ordem e sentido.

"O Grão era Oriente e Trigo Imortal, que nunca deveria ser colhido, nem nunca foi semeado. Eu pensei que havia permanecido de Eternidade a Eternidade. A Poeira e as Pedras da Rua eram preciosas como Ouro... As Árvores Verdes, quando eu as vi primeiro através de um dos Portões, me Transportaram e me Arrebataram: sua Doçura e Beleza incomum fizeram meu coração pular, e quase enlouquecido de Êxtase, eram Coisas tão estranhas e Maravilhosas..." As percepções da infância de Traherne da beleza do mundo encontram paralelo em numerosos textos de fontes ortodoxas. Aqui, por exemplo, estão as palavras do Príncipe Vladimir Monomakh de Kiev:

Veja como o céu, o sol, a lua e as estrelas, a escuridão e a luz, e a terra que está posta sobre as águas, são ordenados, ó Senhor, por tua providência! Veja como os diferentes animais, e os pássaros e peixes, são adornados pelo seu carinho, ó Senhor! Esta maravilha, também, admiramos: como Tu criaste o homem do pó e quão variada é a aparência dos rostos humanos: embora devamos reunir todos os homens em todo o mundo, mesmo assim não há nenhum a mesma aparência, mas cada um pela sabedoria de Deus tem sua própria aparência. Também nos admiramos como os pássaros do céu saem do seu paraíso: eles não ficam em um país, mas vão, fortes e fracos, em todos os países, ao comando de Deus, para todas as florestas e campos.

Essa presença de sentido no mundo, bem como a confusão, a coerência e a beleza, bem como a inutilidade, nos fornece um primeiro "indicador" em direção a Deus. Encontramos um segundo "indicador" dentro de nós mesmos. Por que, diferente do meu desejo de prazer e antipatia pela dor, tenho dentro de mim um sentimento de dever e obrigação moral, um senso de certo e errado, uma consciência? E essa consciência não me diz simplesmente para obedecer os padrões que os outros me ensinaram; ela é pessoal. Por que, além disso, colocado como estou no tempo e no espaço, encontro dentro de mim aquilo que Nicolau Cabasilas chama de "sede infinita" ou sede do que é infinito? Quem sou eu? O que eu sou?


A resposta para essas questões está longe de ser óbvia. Os limites da pessoa humana são extremamente amplos; cada um de nós pouco sabe sobre o seu eu verdadeiro e profundo. Por meio de nossas faculdades de percepção, voltada ao interior e ao exterior, por meio da nossa memória e através do poder do inconsciente, ampliamos o espaço, nos esticamos para trás e para a frente no tempo, e alcançamos além do espaço e o tempo até a eternidade. "Dentro do coração existem profundidades insondáveis", afirmam as Homilias de São Macário. "É apenas um vaso pequeno: e ainda assim existem dragões e leões, e há criaturas venenosas e todos os tesouros da iniquidade; caminhos acidentados, irregulares e abismos abertos estão lá. Também está Deus, os anjos, a vida e o Reino, há luzes e os apóstolos, as cidades celestiais e os tesouros da graça: todas as coisas estão lá ".


Desta forma, temos, dentro do nosso próprio coração, um segundo "indicador". Qual é o significado da minha consciência? Qual é a explicação para a minha sensação de infinito? Dentro de mim, há algo que continuamente me faz olhar além de mim mesmo. Dentro de mim, carrego uma fonte de maravilha, uma fonte de auto-transcendência constante.

Um terceiro "indicador" é encontrado em meus relacionamentos com outras pessoas. Para cada um de nós - talvez uma ou duas vezes apenas em todo o curso de nossa vida - houve momentos súbitos de descoberta, quando vimos o mais profundo ser e verdade do outro revelados a nós, e experimentamos sua vida interior como se fosse nossa. E esse encontro com a verdadeira personalidade do outro é, uma vez mais, um contato com o transcendente e atemporal, com algo mais forte do que a morte. Dizer ao outro, com todo nosso coração, "eu te amo", é dizer: "Você nunca morrerá". Em tais momentos de compartilhamento pessoal, sabemos, não por argumentos, mas por convicção imediata, de que há vida além da morte. É assim que, em nossas relações com os outros, bem como em nossa experiência de nós mesmos, temos momentos de transcendência, apontando para algo que está além. Como sermos leais a esses momentos e como podemos dar sentido a eles?

Esses três "indicadores" - no mundo que nos rodeia, no mundo dentro de nós e em nossas relações interpessoais - podem servir juntos como um meio de aproximação, levando-nos ao limiar da fé em Deus. Nenhum desses "indicadores" constitui uma prova lógica. Mas qual é a alternativa? Devemos dizer que a aparente ordem no universo é mera coincidência; que a consciência é simplesmente o resultado do condicionamento social; e que, quando a vida neste planeta finalmente for extinta, será como se tudo o que a humanidade que viveu e todas as nossas potencialidades nunca tivessem existido? Essa resposta parece-me não apenas insatisfatória e desumana, mas também extremamente irracional.

É fundamental para meu caráter como ser humano que eu busque em todos os lugares explicações com sentido. Faço isso com as coisas menores da minha vida: não devo fazer isso também com a maior? A crença em Deus me ajuda a entender porque o mundo deve ser como é, com sua beleza e bem com sua feiura; porque eu deveria ser como eu sou, com minha nobreza, bem como com minha miséria; e porque eu deveria amar os outros, afirmando seu valor eterno. Para além da crença em Deus, não consigo ver nenhuma outra explicação para tudo isso. A fé em Deus me permite dar sentido às coisas, vê-las como um todo coerente, de uma forma que nada mais pode fazer. A fé me permite fazer um a partir de muitos.

Essência e Energias

Para indicar os dois "pólos" do relacionamento de Deus conosco - desconhecido, mas ainda assim bem conhecido, escondido, mas ainda assim revelado - a tradição ortodoxa estabelece uma distinção entre a essência, a natureza ou o ser interior de Deus, por um lado, e suas energias, operações ou atos de poder, por outro.

"Ele está fora de todas as coisas de acordo com sua essência", escreve Santo Atanásio, "mas está em todas as coisas através de Seus atos de poder." "Conhecemos a essência através da energia", afirma São Basílio. "Ninguém jamais viu a essência de Deus, mas acreditamos na essência porque experimentamos a energia." Pela essência de Deus se entende a sua alteridade, pelas energias sua proximidade. Porque Deus é um mistério além do nosso entendimento, nunca conheceremos sua essência ou ser interior, nem nesta vida, nem na era por vir. Se conhecêssemos a essência divina, quer dizer que conheceríamos Deus da mesma forma que Ele próprio conhece a si mesmo; e isso não podemos fazer, já que ele é Criador e somos criados. Mas, enquanto a essência interior de Deus está para sempre além da nossa compreensão, Suas energias, graça, vida e poder enchem todo o universo e são diretamente acessíveis a nós.

A essência, portanto, significa a transcendência radical de Deus; as energias, a Sua imanência e a onipresença. Quando os ortodoxos falam das energias divinas, não querem dizer com isso uma emanação de Deus, um "intermediário" entre Deus e o homem, ou uma "coisa" ou "dom" que Deus concede. Pelo contrário, as energias são o próprio Deus em sua atividade e auto-manifestação. Quando um homem conhece ou participa das energias divinas, ele realmente conhece ou participa do próprio Deus, na medida em que é possível para um ser criado. Mas Deus é Deus, e nós somos homens; e assim, enquanto Ele nos possui, não podemos possuí-lo da mesma forma.

Assim como seria errado pensar nas energias como uma "coisa" concedida a nós por Deus, seria igualmente enganador considerar as energias como "uma parte" de Deus. A Divindade é simples e indivisível, e não tem partes. A essência significa Deus inteiro, como ele é em si mesmo; as energias significam Deus inteiro, como ele é em ação. Deus em sua totalidade está completamente presente em cada uma das suas energias divinas. Deste modo, a distinção essência-energia é uma maneira de declarar simultaneamente que Deus inteiro é inacessível e que Deus inteiro em seu amor, saindo de si, tornou-se acessível ao homem.

Em virtude desta distinção entre a essência divina e as energias divinas, podemos afirmar a possibilidade de uma união direta ou mística entre o homem e Deus - o que os Padres Gregos denominam a theosis do homem, a sua "deificação" - mas ao mesmo tempo, excluímos qualquer identificação panteísta entre os dois: porque o homem participa nas energias de Deus, não na essência. Existe união, mas não fusão ou confusão. Embora 'unido' com o divino, o homem ainda permanece homem; ele não é engolido ou aniquilado, mas entre ele e Deus continua sempre a existir uma relação "Eu-Tu" de pessoa para pessoa.

Assim, é nosso Deus: incognoscível em sua essência, mas conhecido em suas energias; além e acima de tudo que podemos pensar ou expressar, mas mais próximo de nós do que nosso próprio coração. Através da via apofática, esmagamos todos os ídolos ou imagens mentais que formamos dele, pois sabemos que todos são indignos de sua grandeza insuperável. Ainda assim, ao mesmo tempo, por nossa oração e por nosso serviço ativo no mundo, descobrimos a cada momento Suas energias divinas, Sua presença imediata em cada pessoa e cada coisa. Diariamente, de hora em hora tocamos Nele. Nós não estamos, como Francis Thompson disse, "em terra estranha". Ao nosso redor está a "uma coisa repleta de esplendores"; a escada de Jacob é "lançada entre o céu e a Charing Cross":

Ó mundo invisível, nós te vemos,
Ó mundo intangível, nós te tocamos,
Ó mundo incognoscível, nós te conhecemos,
Inapreensível, nós te apanhamos.

Nas palavras de John Scotus Eriugena, "Toda criatura visível ou invisível é uma teofania ou aparição de Deus". O cristão é aquele que, onde quer que olhe, vê Deus em todos os lugares e se alegra com Ele. Não sem razão, os primeiros cristãos atribuíram a Cristo este provérbio: "Levante a pedra e você me encontrará; corte a madeira em dois e aí estou Eu."

* * *

Imagine um penhasco íngreme, com uma extremidade saliente no topo. Agora imagine o que uma pessoa provavelmente sentiria se colocasse seu pé na beira deste precipício e, olhando para o abismo abaixo, não visse nenhuma base sólida nem nada a que se agarrar. Isso é o que eu acho que a alma vivencia quando vai além de sua base nas coisas materiais, em sua busca por aquilo que não tem dimensão e que existe desde toda a eternidade. Porque ali não há nada de que se possa apoiar, nem lugar, nem tempo, nem medida, nem qualquer outra coisa; as nossas mentes não podem aproximar-se dele. E assim a alma, escorregando em cada ponto do que não pode ser apreendido, fica tonta e perplexa e volta mais uma vez ao que lhe é conatural, satisfeita agora em apenas saber isto sobre o Transcendente, que é completamente diferente da natureza das coisas que a alma conhece.

São Gregório de Nissa 


Pense em um homem de pé à noite dentro de sua casa, com todas as portas fechadas; e então suponha que ele abra uma janela exatamente no momento em que há um relâmpago repentino. Incapaz de suportar o seu brilho, ele se protege fechando os olhos e afastando-se da janela. Assim é acontece com a alma que está encerrada no reino dos sentidos: se alguma vez ela espreita pela janela do intelecto, ela é inundada pelo brilho, como um raio, da promessa do Espírito Santo que está dentro dela. Incapaz de suportar o esplendor da luz desvelada, logo fica desnorteada no seu intelecto e recua inteiramente sobre si mesma, refugiando-se, como em uma casa, entre coisas sensoriais e humanas.

São Simeão, o Novo Teólogo


Qualquer um que tenta descrever a Luz inefável em linguagem é um verdadeiro mentiroso, não porque ele odeie a verdade, mas por causa da inadequação de sua descrição.

São Gregório de Nissa

Abandonai os sentidos e o funcionamento do intelecto, e tudo o que os sentidos e o intelecto podem perceber, e tudo o que não é e o que é; e, através do desconhecimento, alcançai, tanto quanto possível, a unidade com aquele que está além de todo ser e conhecimento. Desta forma, através de um desapego rigoroso, absoluto e puro de si mesmo e de todas as coisas, transcendendo todas as coisas e libertado de todas, sereis conduzidos para o alto, para esse resplendor da escuridão divina que está além de todos os seres.

Entrando na escuridão que ultrapassa o entendimento, encontrar-nos-emos conduzidos, não apenas à brevidade da fala, mas ao perfeito silêncio e ao desconhecimento.

Esvaziado de todo o conhecimento, o homem une-se na parte mais elevada de si mesmo, não com nenhuma coisa criada, nem com ele mesmo, nem com outro, mas com Aquele que é totalmente incognoscível; e, não conhecendo nada, ele conhece de uma maneira que ultrapassa o entendimento.

São Dionísio, o Aeropagita 

A forma de Deus é inefável e indescritível, e não pode ser vista com olhos de carne. Ele é na glória incontível, na grandeza incompreensível, na altura inconcebível, na força incomparável, na sabedoria inacessível, no amor inimitável, na beneficência inefável.

Assim como a alma do homem não é vista, porque é invisível aos homens, mas sabemos da sua existência através dos movimentos do corpo, assim também Deus não pode ser visto pelos olhos humanos, mas é visto e conhecido através da sua providência e das suas obras.

Teófilo de Antioquia

Não conhecemos Deus na Sua essência. Conhecemo-Lo antes pela grandeza da Sua criação e pelo Seu cuidado providencial por todas as criaturas. Pois, dessa maneira, como que usando um espelho, chegamos ao conhecimento da Sua infinita bondade, sabedoria e poder.

São Máximo, o Confessor

A coisa mais importante que acontece entre Deus e a alma humana é amar e ser amado.

Kallistos Kataphygiotis

O amor a Deus é extático, fazendo-nos sair de nós mesmos: não permite que o amante pertença mais a si mesmo, ele pertence apenas ao Amado.

São Dionísio, o Areopagita

Eu sei que o Imóvel desce;

Eu sei que o invisível aparece para mim;

Eu sei que aquele que está longe de toda a criação

Leva-me para dentro de si e esconde-me nos seus braços,

E então encontro-me fora do mundo inteiro.

Eu, um frágil e pequeno mortal no mundo,

Contemplo o Criador do mundo, todo ele, dentro de mim;

E sei que não morrerei, porque estou dentro da Vida,

Tenho toda a Vida brotando como uma fonte dentro de mim.

Ele está no meu coração, ele está no céu:

Tanto ali como aqui ele se mostra a mim com igual glória.

São Simeão, o Novo Teólogo


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