domingo, 15 de outubro de 2017

O Testemunho da Ortodoxia no Mundo Atual (George Mantzaridis)




Sir Steven Runciman, o notável bizantinista, em sua última entrevista, disse: "Por vezes fico desapontado com as outras igrejas. No entanto, me agrada pensar que, antes de passar de cem anos, a Ortodoxia será a única Igreja histórica remanescente. Eu acredito que ela oferece a espiritualidade real que as outras igrejas não podem mais oferecer."(1) Se esse presságio for verdadeiro, então a universalidade da Ortodoxia se torna atual. Ao mesmo tempo, a apostolicidade, que é uma das quatro características distintivas da Igreja de acordo com o Credo, é enfaticamente apresentada no estágio moderno.
A apostolicidade liga a Igreja juntamente com sua origem histórica e institucional, ao mesmo tempo em que denota seu caráter e perspectiva. A Igreja de Cristo é apostólica porque suas origens e ensinamentos se baseiam nos Apóstolos de Cristo. Além disso, o mandamento do Senhor aos Apóstolos tinha alcance universal: "Ide, pois, e faz discípulos de todas as nações". (2)
Cristo nasceu como um homem, através da linhagem de Judá, para redimir o povo de Israel e o mundo inteiro. (3) Ele não negligenciou as outras raças e nações, mas recapitulou tudo em Seu corpo teandrico (Divino-humano), a saber, a Igreja. Embora os doze apóstolos representem as doze raças de Israel, eles assumem a consciência ecumênica e ensinam "todas as nações". Caracteres raciais, nacionais e outros tipos de características divisivas existem antes das fronteiras da morte. A Igreja, enraizada sobre a verdade e a experiência real da vitória sobre a morte, não desconsidera essas divisões, mas ela transcende as distinções e une o mundo inteiro em um só corpo e indivíduo.
As divisões raciais e nacionais existentes durante o tempo dos Apóstolos ainda existem hoje. Mesmo a idolatria se apresenta poderosamente nos mundos não cristãos e cristãos, numa das suas formas mais antigas, a da cobiça. A era atual crê no poder do dinheiro e é direcionada pelo capital.  O capital governa o homem, corrompe sua moral, molda sua vida social e determina escolhas políticas.
A Bíblia Sagrada e os Padres da Igreja relacionam diretamente a liberdade e a justificação do homem com o desapego do dinheiro e o alargamento da consciência para abraçar o mundo inteiro. O Evangelho indica as dimensões metafísicas que o dinheiro potencialmente adquire, transformando-se e tornando-se Mammon. (4)
São Paulo diz que avareza é idolatria. (5) Os Padres da Igreja também condenam a avareza como crime. (6) No entanto, a contração da consciência ecumênica de um cristão e o retorno a uma visão nacionalista da percepção, é também identificado como idolatria.
O homem tem valor infinito. Em si mesmo, a personalidade é uma espécie de centro capaz de conter em si toda a plenitude da divindade e da humanidade. (7) Esta é a reivindicação da antropologia cristã, que é negligenciada pelo mundo cristão em geral, mas preservada na teologia Ortodoxa. É verdade que, a nível moral e social, os povos tradicionalmente ortodoxos não podem ocupar uma posição superior em relação aos não ortodoxos. Isto é por causa da secularização que começou no Ocidente e foi finalmente transplantada no Oriente, resultando em desvantagem para os ortodoxos. O desejo de imitar e a dificuldade inerente de assimilar e explorar elementos culturais estrangeiros, criou turbulências pessoais e sociais. No entanto, a superioridade da Ortodoxia decorre de seus fundamentos teológicos. A ortodoxia permanece como uma pura verdade da fé cristã. Na Igreja Ortodoxa, a verdade cristã é intocada e a perspectiva escatológica do cristianismo é preservada. Este é o maior valor da Ortodoxia e isso garante a qualidade do que a Igreja professa ao mundo.
Para os ortodoxos, a autocrítica e o arrependimento são essenciais. Nesta perspectiva, vemos o desafio que a Igreja Ortodoxa enfrenta com a globalização. Quando o espírito do mundo, sob a forma de avareza, amor ao poder, sincretismo religioso, nacionalismo, liberalismo ou conservadorismo, entrava a Ortodoxia na inevitável rede de corrupção e morte, a redução ou relativização do espírito absoluto e universal da Ortodoxia pode ser fatal.
Se a Igreja Ortodoxa descansar sobre uma presença convencional no mundo contemporâneo, se a Igreja não responder aos desafios atuais, com o espírito universal de Cristo, o homem estará sem ajuda. O homem se submeterá à homogeneização da globalização. No entanto, se a Igreja promove o espírito da Tradição a nível pessoal e comunitário, a verdade da universalidade de Cristo superará a ilusão da globalização.
As perspectivas atuais são decepcionantes. Todos os fenômenos nos traem e a crise se mostra em uma inevitável explosão. Se o foco do homem está sobre os interesses individuais e o homem negligencia o companheiro, a sociedade é prejudicada e levada a um impasse. O modelo de crescimento econômico se torna o autor da autodestruição. Os ricos se tornam mais ricos sob o capitalismo moderno, uma vez que a riqueza é retida por eles mesmos. Os pobres ficam mais pobres porque as flutuações cíclicas do modelo e a necessidade inerente de sustentar a viabilidade, afetam a renda dos pobres mais. Este processo só pode levar à auto-implosão.
A solução só deve surgir quando o homem decidir virar os olhos para o seu entorno; quando ele decide seguir um preceito básico cristão: "Que cada um de vocês olhe não só para seus próprios interesses, mas também para os interesses dos outros". (8) Quando todos se interessam por seus semelhantes, quando os interesses dos outros estão em nosso foco, quando o homem reconhece o benefício dos outros como o objetivo final do trabalho, então o homem ocupará o lugar certo na sociedade humana. Naquele momento, o homem deve verificar se o seu verdadeiro eu, seu verdadeiro ser, está no seu próximo.
No entanto, tudo isso não é simplesmente escolha humana. Eles emergem como uma consequência do renascimento espiritual do homem. Especificamente, eles são como frutos da participação do homem na vida de Cristo. Aquele que segue a Cristo e se torna participante da Sua morte e Ressurreição, entra na perspectiva de Sua universalidade. Se o indivíduo é um sacerdote ordenado ou leigo, ele é convocado para suportar a graça do "sacerdócio real" (9) e oferecer serviços no trabalho de reconciliação do mundo inteiro, que é realizado através de Cristo. Isso exige intenso ascetismo e oração, que por sua vez revela a imagem de Deus no homem. (10)
Toda pessoa, e a humanidade como um todo, são uma imagem de Deus. Este caráter iconológico do homem torna necessário o nexo entre o homem e Deus. Quando uma pessoa deixa de refletir Deus em seu ser, ele se auto-apaga. Ele se torna a imagem do nada. A referência do homem a Deus é o que dá substância à sua hipóstase. Isso faz do homem um participante do Ser Divino, um deus pela graça: "Eu digo, vocês são deuses, filhos do Altíssimo, todos vocês" (11).
Uma perspectiva tão alta para o homem e sua vida é o ideal da Igreja Ortodoxa. Além disso, a Igreja é uma "comunhão de deificação". (12) A Igreja é a comunidade constituída pela Presença do Espírito Santo, que nos eleva ao status da Universalidade de Cristo. No entanto, essa elevação da humanidade é simultaneamente dada e exigida. É oferecido como uma doação de Cristo em Sua Igreja, mas também deve ser realizado pelos fiéis através da ativação dos dons do Espírito Santo. Esta conquista não é um processo indolor, mas torna-se possível por meio da humildade e amor kenótico (isto é, auto-esvaziar).
O homem não pode facilmente se castigar ou se livrar de seu egoísmo, para aceitar seus semelhantes. Embora a disposição amorosa seja inerente à natureza humana, a falta de amor verdadeiro caracteriza o homem "caído". O verdadeiro amor é revelado apenas pelo sacrifício do egoísmo. O modelo para este amor é o Deus Triúno. A unidade na Santíssima Trindade é realizada através da interpenetração cinética e amorosa das Pessoas Divinas, sendo assim o modelo para a unidade da Humanidade e para a criação da comunhão de deificação.
Esse amor foi revelado ao mundo por Cristo. Esse tipo de amor é o que a Igreja Ortodoxa propõe ao homem para a salvação, o que é identificado com o fato de se tornar uma pessoa universal. Na Igreja, o crente é chamado a viver a tragédia universal que atravessa a história, a fim de proceder através do arrependimento à reconciliação universal, à comunhão católica do amor. Desta forma, o mundo inteiro é confraternizado e cada homem é aberto à universalidade.
A ascensão a tal perspectiva da vida exige grande esforço. O homem criado e corruptível é convocado para assumir o ethos do Ser incriado e atemporal. Sem dúvida, isso não é alcançado somente por seus poderes. A teologia Ortodoxa sempre fala sobre a sinergia entre Deus e o homem. O limite dessa sinergia é a morte. Em última análise, a morte prova a fidelidade do homem a Deus e a fé de que a morte foi derrotada. Deste modo, a barreira da morte é quebrada e a nova criação da Nova Aliança é revelada. É por isso que, de acordo com São Paulo, o Novo Testamento não é "o Evangelho do homem". (13)
Muitas pessoas caracterizam nossa era como uma era pós-cristã. Isso deve significar duas coisas: primeiro, que as eras anteriores eram cristãs. Além disso, que nossa era não é mais cristã e que o cristianismo não tem mais nada a oferecer. Esta premissa é duas vezes errada. Porque nem o primeiro período foi cristão, nem o potencial do cristianismo foi esgotado, não tendo nada mais a oferecer para o presente e o futuro. Isso não significa que o cristianismo não afetou o passado e o presente. Significa que o cristianismo não foi vivido nas suas dimensões autênticas pelas massas (14).
O cristianismo é centrado na pessoa. O indivíduo não é visto como sujeito ao todo impessoal, nem justaposto à comunidade. O cristianismo percebe que a pessoa está em comunhão na Igreja e vê em cada homem a capacidade de refletir em sua pessoa toda a humanidade. Consequentemente, o cristianismo não procura mudar a sociedade alterando as estruturas sociais. Procura a alteração da sociedade na alteração de cada pessoa. Nesta perspectiva, o cristianismo prioriza a unificação interna do homem, que é possível através da reunião do intelecto com o coração. Nesta reunião encontra-se a essência da hesychia piedosa (ou seja, quietude, contemplação silenciosa ou solidão, a prática da oração do coração), um elemento básico da Tradição Ortodoxa.
Em nossa era turbulenta, a reminiscência da hesychia parece irrealista. Isso não significa que está fora do alcance ou, pior, que é inútil. A hesychia Ortodoxa não significa estagnação ou opacidade, mas auto-concentração e atividade intensa ao nível do homem interior. É o pressuposto para a reorganização interna do homem e o estabelecimento de sua relação com Deus e seu próximo. Na confusão de ruídos e informações que nossa sociedade atual oferece, o homem pode facilmente perder sua identidade e humanidade. A menos que ele se concentre em si mesmo e retorne a uma verdadeira relação com Deus e com os outros, todo progresso humano é condenado à aniquilação. É por isso que a hesychia devotada é uma prioridade que leva à perfeição do homem. Este é, na verdade, o verdadeiro ativismo social e o trabalho missionário. (15)
A teologia ortodoxa foi cultivada ao longo dos tempos através de hesychias internas, criando as condições para a experiência espiritual e evitando a influência alienante do mundo. (16) O testemunho da Igreja Ortodoxa no mundo contemporâneo será autêntico e convincente apenas se ele vier do silêncio e da hesychia. Hesychia, tal como é percebida pela Ortodoxia, pode provocar uma explosão de atividade criativa, que é a única esperança do homem em meio aos grilhões sufocantes, espalhados magistralmente pelo mundo inteiro e pela globalização recente. Essa explosão espiritual promoverá a divulgação da autêntica pessoa humana na sociedade globalizada impessoal. A contra-oferta da Igreja Ortodoxa à globalização ativista é a universalidade hesicásta.
O ser humano autêntico é universal. Nesta pessoa universal, o mundo pode encontrar a sua universalidade. Os santos eram essas pessoas. Na pessoa do Santo, toda a criação é santificada. Além disso, na principal figura sagrada da Mãe de Deus, reside a "alegria universal" (17) e a "glória universal". (18) A menos que vejamos o conteúdo ontológico da pessoa humana nesta profundidade insondável, não podemos experimentar corretamente o mistério da Igreja.
A Igreja Ortodoxa, com sua tradição teológica e ascética, resumida na Divina Liturgia, preservou a perspectiva acima mencionada, algo que não pode ser afirmado pela tradição teológica ocidental. Princípios fundamentais da teologia ortodoxa e do ascetismo, como o ensino sobre a verdadeira comunhão entre Deus e o mundo, o amor kenótico, que culmina com o amor pelos inimigos, e o hesicasmo, que resgata a prioridade da pessoa humana, constitui pressupostos essenciais para a restauração do mundo cristão alienado.
Na Divina Liturgia, o crente experimenta a comunhão com Deus e com o mundo inteiro. Ele participa do amor kenótico e é instruído na aplicação desse amor para com todas as pessoas. Ele entra na eternidade, torna incorruptível a natureza criada e vive a universalidade. A Divina Liturgia e outros serviços, dão ao crente o impulso adequado para a vida correta, como consagrada na petição "pela paz do mundo inteiro". Assim, o crente evolui para uma pessoa autêntica, em um homem universal. Desta forma, o desejo do homem pela universalidade é saciado e o homem está devidamente armado para enfrentar os perigos da globalização.
Os acima mencionados são um tesouro confiado à Igreja Ortodoxa. Aqui reside a importância da Igreja e a responsabilidade monumental. O testemunho da ortodoxia não é um caso confessional, porque é de alcance católico e universal. É uma testemunha que emana de sua qualidade como Igreja Católica e Apostólica. Enquanto isso, é o testemunho que deve ser dado, para que possamos apreciar a esperança para o futuro.
A verdade da Igreja Ortodoxa é testemunhada não no ar, mas no coração dos ortodoxos. Não é ofereciao com referência ao passado, mas através da experiência e ativação no presente. Hoje, num momento em que o mundo considera o dinheiro como a medida de todas as coisas, quando a humanidade é governada pelo dinheiro e se detém no dinheiro, a testemunha da Ortodoxia deve ser dada através do desprezo ao dinheiro, através do desmoronamento desse deus falso. Este testemunho deve ser primariamente dado pelo monaquismo ortodoxo, bem como por todo o corpo da Igreja.
Se o mundo é induzido a acreditar que tudo pode ser comprado com dinheiro, é necessário ver formas de vida autênticas, como um mosteiro cenobítico ortodoxo ou uma família tradicional, que permanecem livres do dinheiro. Além disso, o mundo deve ser informado de que com o dinheiro, apenas "as coisas inferiores e insignificantes" podem ser compradas, enquanto que "o necessário que constitui a nossa vida" é comum a todos. (19) O dinheiro do mundo inteiro e o mundo em si mesmo, nada disso é comparado com o valor de apenas um homem, de apenas uma alma humana. (20)


1. Revista Pemptousia 4 (dezembro de 2000 a março de 2001) p.38.
2. Matt. 28:19
3. João 4:22
4. Lucas 16: 9-13
5. Col. 3: 5
6. São Basílio, Sermão no verso "Vou abater os meus celeiros" 7, PG 31,276B.
7. Arco. Sophrony, nós o veremos como Ele é, Essex 1988, p. 197.
8. Philip. 2: 4
9. 1 Pedro 2: 5, 9
10. Gen. 1:27
11. Salmo 82: 6-7
12. São Gregório Palamas, "Homilia no Espírito Santo" 2, 78 em P. Christou, Gregory Palamas: Works, vol.1, Thessaloniki 1962, p.149.
13. Gálatas 1:11
14. Archim. Sophrony, On Prayer, Essex 1994 (2), p.97 (grego).
15. Isaac o sírio, "Sermão 23". Ed. Ioannis Spetsieris, p.93.
16. "Fique quieto e saiba que eu sou Deus" - Salmo 46:10
17. Sticheron das Vésperas de 9 de setembro.
18. Doxastikon das Vésperas do sábado (1º modo).
19. São João Crisóstomo, "Sermão das estátuas" 2,6, PG 49,43
20. Matt. 16:26

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