domingo, 15 de outubro de 2017

Ortodoxia e Heterodoxia - Catolicismo Romano (Pe. Andrew Stephen Damick) [Parte 4/4]

Nota do tradutor: o texto que segue provém de uma transcrição de um áudio (do podcast "Orthodoxy and Heterodoxy"),  por isso o texto está em um formato um pouco diferente. 



Validade Sacramental 

O legalismo de Roma também leva a compreender os sacramentos em termos de categorias de validade. Se determinados requisitos forem cumpridos, então um sacramento é "válido", mesmo que seja removido do contexto litúrgico e eclesial tradicional. Os sacramentos são assim objetificados e podem ser tratados como eventos independentes em vez de integrados organicamente na vida da igreja, como a confirmação sendo removida do contexto do batismo, a ordenação removida do contexto de serviço na Igreja e a Eucaristia removida do contexto da comunhão.

Talvez uma das diferenças mais significativas da pratica sacramental do Catolicismo Romano, que difere da Ortodoxia, é o adiamento de dois santos mistérios vitais: a santa comunhão e a confirmação (que, na Igreja Ocidental é chamado de crisma). A comunhão não é dada a todos os membros batizados, mas apenas aqueles acima de certa idade, comumente acima dos 7 anos. A confirmação (crisma) também é comumente adiada até a adolescência. Esses atrasos têm suas raízes na idéia de que um fiel precisa de compreensão racional para receber esses sacramentos; a ênfase se torna individual - um rito de passagem - e não eclesial, no qual o cristão é iniciado na comunidade.

O adiamento da comunhão é especialmente preocupante para o Ortodoxo. Se a criança é batizada, e é um membro da Igreja, por que deve ser negado a ela o sacramento que une todos em um só Corpo? De certa maneira ela não é verdadeiramente um membro, uma vez que ela é batizada mas é imediatamente excomungada.

O adiamento para a confirmação originalmente começou da prática em que só os bispos podiam administrar os sacramentos. Uma vez que raramente visitavam paróquias locais e era necessário um fluxo constante de batismos, a confirmação era separada do rito do batismo. Eventualmente, a confirmação passou a ser adiada e então esperava-se até a adolescência unindo "mais estreitamente aqueles que a recebem à Igreja"

"No rito latino, o ministro ordinário da Confirmação é o bispo. Se houver necessidade o Bispo pode conceder a faculdade de administrar a confirmação aos Padres. muito embora, é conveniente que seja ele mesmo a conferi-la, não se esquecendo de que foi por esse motivo que a celebração da Confirmação foi separada, no tempo, da do Baptismo. Os bispos são os sucessores dos Apóstolos e receberam a plenitude do sacramento da Ordem. A administração deste sacramento feita por eles, realça que ele tem como efeito unir mais estreitamente aqueles que o recebem à Igreja, às suas origens apostólicas e à sua missão de dar testemunho de Cristo." (Catecismo, Seção 1313)

O que significa estar unido mais próximo à Igreja? Para o Ortodoxo ou se é membro da Igreja ou não é. Algumas vezes é dito que a prática de Roma, de adiar a confirmação, é um "sacramento em busca de uma teologia". A Ortodoxia e o Catolicismo do Oriente, mantém a tradição da crisma (confirmação) como parte do batismo.

Outra distorção da vida sacramental ocorre na adoração da eucaristia fora do contexto do ato da comunhão. Essa adoração trata a Eucaristia como um objeto e não como uma ação:

"Adoração da Eucaristia. Na liturgia da Missa, expressamos nossa fé na presença real de Cristo sob as espécies de pão e de vinho, entre outras formas, se ajoelhando ou se curvando extremamente como um sinal de adoração do Senhor. A Igreja Católica sempre ofereceu e ainda oferece ao sacramento da Eucaristia o culto da adoração, não só durante a Missa, mas também fora dela, reservando as hóstias consagrados com o maior cuidado, expondo-as à solene veneração dos fiéis, e carregando-as em procissão". (Seção 1378.)
Pode-se passar um tempo nas capelas especiais de adoração que tem o propósito de permitir os fiéis a se aproximarem da presença da eucaristia, para adorá-la e meditar sobre. Para o Ortodoxo, embora respeitamos os sacramentos reservados (que fica ao lado no tabernáculo em cima do altar, para a comunhão dos enfermos), nós não removemos a eucaristia do contexto da comunhão. O Senhor nos disse para comber e beber Seu Corpo e Sangue em João 6: 53-56. Ele não falou nada sobre os remover daquele contexto. Devemos observar aqui que alguns Ortodoxos de Rito Ocidental praticam a chamada bênção do sacramento consagrado, um rito em que se é abençoado com a eucaristia reservada. Mas isso não é o mesmo do que ter capelas de adoração ou em encorajar a adoração da eucaristia. Prática que é, de certa forma, controvérsia.

A categoria de validade, também permite que as linhas eclesiásticas sejam ultrapassadas pelo clérigo, mesmo se não houver comunhão entre os corpos eclesiásticos, isto permite Roma reconhecer sacramentos válidos mesmo fora de seus próprios limites.

"Cristãos Orientais que de boa fé se acham separados da Igreja católica, quando espontaneamente pedem a estão bem dispostos, podem ser conferidos os sacramentos da Penitência, Eucaristia e Unção dos enfermos. Também aos católicos é permitido pedir os mesmos sacramentos aos ministros não-católicos em cuja Igreja haja sacramentos válidos, sempre que a necessidade ou a verdadeira utilidade espiritual o aconselhar e o acesso ao sacerdote católico se torne física ou moralmente impossível." (Documento do Vaticano II, Orientalium Ecclesiarum, 1964)
Para o Ortodoxo, só é possível receber os sacramentos dentro de uma comunhão eclesiástica. Os cristãos ortodoxos devem receber os sacramentos apenas de clérigos ortodoxos. Da mesma forma, os clérigos ortodoxos devem dar os sacramentos apenas aos cristãos ortodoxos. (Em casos emergenciais, os não-ortodoxos são bem-vindos a se converterem para que recebam os sacramentos).

A validade sacramental também permite a possibilidade de ordenação existindo fora da comunidade da Igreja, pois considera-se a ordenação como indelével.
"Tal como no caso do Batismo e da Confirmação, esta participação na função de Cristo é dada uma vez por todas. O sacramento da Ordem confere, também ele, um caráter espiritual indelével, e não pode ser repetido nem conferido temporariamente. Uma pessoa validamente ordenada pode, é certo, por graves motivos, ser dispensada das obrigações e funções decorrentes da ordenação, ou ser proibido de as exercer, mas já não pode voltar a ser leigo, no sentido estrito, porque o caráter impresso pela ordenação fica para sempre. A vocação e a missão recebidas no dia da ordenação marcam-no de modo permanente. (Catecismo, Seção 1582-83).

É devido a marca indelével da teologia católica da ordenação, que a doutrina da sucessão apostólica é truncada. Tudo que é necessário para uma sucessão apostólica para Roma, é que se prove que a ordenação pode ser retraçada a uma cadeia válida de bispos, até os apóstolos. Para a Ortodoxia, no entanto, essa cadeia não é suficiente. A fé apostólica e a comunhão dentro da Igreja também são exigidas. Roma considera cadeias válidas de bispos fora de sua própria comunhão, "episcopi vagantes", frase em latim que significa bispos vagantes. A Ortodoxia não considera essas pessoas como Bispos.

Para a Ortodoxia, a ordenação existe dentro e para a Igreja. Se um clérigo abandona a Igreja, ele não é mais tratado como clérigo. De igual maneira, se for removido da classe dos clérigos pela Igreja, ele é verdadeiramente um leigo, mais uma vez.

No entanto, não podemos tomar essa distinção como absoluta, porque existem costumes dentro de algumas igrejas ortodoxas (por ex., a Rússia) de receber certos clérigos não ortodoxos (especialmente católicos) como clérigos por "aquisição", isto é, sem batismo, crismação ou serviço de ordenação ortodoxo. Esta prática não é universal na Ortodoxia, e não necessariamente constitui um reconhecimento de sacramentos não-ortodoxos per si, apenas que possui algo "a ser trabalhado", quando tais pessoas se aproximam da Igreja Ortodoxa. Portanto, esse reconhecimento limitado é "de facto" e não "de jure".

A validade sacramental também é o que torna possível a anulação do casamento - pode-se estar casado há anos e depois descobrir um detalhe técnico que torna a pessoa não-casada, como nunca ter querido filhos, a intenção de ser infiel ou mesmo se casar com pressa sem o devido discernimento. Essa possibilidade existe pois o casal é considerado como ministros do sacramento e não o padre. O casamento é compreendido primariamente como um contrato legal e, portanto, pode ser considerado invalido se alguma exigência técnica não é satisfeita. Essas tecnicalidades são comumente utilizadas apenas nos casos em que o divórcio civil foi alcançado, o que faz do anulamento essencialmente um divórcio, mas com outro nome.

A Ortodoxia tem certo tipo de anulamento, mas não é baseado na intenção e na tecnicalidade. Por exemplo, um homem não pode casar-se com sua irmã, mesmo se ele participar dos ritos de casamento com ela. Portanto, tal casamento, seria automaticamente inválido.

A existência de ritos católicos orientais que ainda utilizam práticas ortodoxas - como a crisma / confirmação imediata no batismo e a teologia do sacerdote como ministro do sacramento do casamento - é uma contradição, dada a prática latina padrão. Por exemplo, se um casamento católico oriental é anulado, então isso significa que o sacerdote (provavelmente sem saber) atuou de forma inválida?

Próximo mas ainda assim mais distante: teologia, liturgia e reunião.

Tendo dito tudo isso, é importante que os Cristãos Ortodoxos percebam que o Catolicismo do século XX e XXI, passou por alguns desenvolvimentos que levou certos teólogos se aproximarem da Ortodoxia e outros se distanciarem. Há muito no movimento "Ressourcement" ("voltando às fontes" em francês), com sua nova ênfase nos Pais da Igreja, que deve animar os Ortodoxos. Ao mesmo tempo algumas distorções preocupantes ocorreram em alguns setores da Igreja Católica Romana no século XX, tais como a Teologia da Libertação, que é uma tentativa de combinar os dogmas da Igreja com políticas marxistas. Ainda assim houve alguns desenvolvimentos como, por exemplo, três papas seguidos, João Paulo II, Benedito XVI e Francisco, indicaram um interesse em expressar a primazia papal, e não em termos supremos, absolutos e infalíveis que prevaleceram no ocidente desde o século XVIII Ao invés disso, Roma espera que o Oriente aceite a doutrina de primazia que foi formulada e vivida no primeiro milênio, como Cardeal Joseph Ratzinger, mais tarde Papa Benedito XVI, escreveu em 1987. Ele esperava que o Oriente não mais rejeitasse como herético o desenvolvimento pós-cisma do Ocidente, mesmo se não aceitassem.

Devido a esses tipos de desenvolvimentos - bem como o problema atual da lacuna entre o ensino oficial do Vaticano e o que o católico romano médio crê pessoalmente ou que lhe é ensinado no púlpito - os fiéis ortodoxos devem ter cuidado ao discutir teologia com os católicos romanos. Eles podem estar mais perto ou mais longe da ortodoxia do que aquilo que é oficialmente ensinado pelo Vaticano. É fundamental discernir o que a pessoa à sua frente acredita antes de se lançar em qualquer tipo de refutação detalhada do dogma e prática católica romana.

Também penso que grande parte das críticas Ortodoxas do Catolicismo Romano são baseadas ou em modelos pré-século XIX do pensamento de Roma ou simplesmente em maus entendidos e simplificações excessivas de sua teologia e prática. Na minha opinião, muitos escritores Ortodoxos de nossos tempos, tem feito uso das polêmicas protestantes contra Roma, que frequentemente são baseadas em exageros ou mau entendidos da teologia de Roma ou até mesmo baseadas na teologia protestante que não é consistente com a Ortodoxia. É importante que compreendamos a teologia da pessoa diante de nós, assim como a nossa.

Gastamos muitas palavras discutindo as semelhanças e as diferenças da teologia Católica e as práticas tradicionais comparadas com a Ortodoxia, mas uma área que alguns dos meus amigos Católicos desejariam que os Ortodoxos enfatizassem mais na sua relação com os Católicos, é sobre as práticas litúrgicas atuais.

Nós mencionamos algumas áreas de práticas Católicas tradicionais litúrgicas que gostaríamos de ver corrigidas, tais como a comunhão e o adiamento da confirmação, mas algo muito maior ocorreu que é verdadeiramente preocupante para os Ortodoxos e para muitos fiéis Católicos: as reformas litúrgicas que resultaram do Concílio Vaticano II (1962-65). As reformas previstas pelo concílio eram relativamente modestas e se conformavam muito mais aos padrões da história.  Mas o que o concílio decretou e o que ocorreu - tanto em termos de mudanças oficiais como de serviços efetivamente conduzidos - não foi o mesmo. Joseph Ratzinger, então como Cardeal, expressou-se assim:

"Não é possível manufaturar um movimento litúrgico, mas pode-se contribuir para seu desenvolvimento esforçando-se em reassimilar o espírito da liturgia e defendendo publicamente o que se recebeu. O que aconteceu depois do Concílio foi algo completamente diferente. No lugar da liturgia e seu desenvolvimento, procedeu-se uma liturgia fabricada. Nós abandonamos o processo vivo orgânico de crescimento e desenvolvimento ao longo dos séculos e substituímos - como num processo de manufatura - por uma fabricação de um produto". 
Tal rompimento com a tradição foi lamentado pelo Cardeal Ottaviani, que escreveu numa carta para o Papa em 1969, que o rompimento foi grave levando a uma completa desorientação dos fiéis, e portanto, para "o melhor do clérigo, o resultado prático, é uma agonizante crise de consciência".

As reformas litúrgicas foram conduzidas pelo Cardeal Annibale Bugnini, que incluiu suas próprias preferências na Missa Nova e até mesmo protestantes nos comitês da reforma. Não-católicos que protestavam contra doutrinas básicas Católicas puderam dar opinião sobre a adoração católica mundial. O Novo Ordinário da Missa, Novus Ordo, foi introduzido em 1969.

O cânone, o centro da Missa, foi modificado, assim como muito outros elementos. Algumas foram coisas que os Ortodoxos receberiam bem, como o uso da língua local ao invés do latim e a comunhão do Sangue e o Corpo para os leigos (por séculos os leigos só comungavam o Corpo). Outras foram problemáticas, como a celebração da missa Versus Populum, que significa "de frente para o povo" ao invés de Ad Orientem, "para o Oriente". Com o Padre de frente para o povo na maior parte da missa, sua personalidade se torna maior o foco, como uma espécie de mestre de cerimônias ao invés de alguém que está conduzindo povo em direção a Deus, todos voltados para a mesma direção, ad Orientem, na maior parte do serviço.

Ottaviani faz críticas detalhadas da Novus Ordo em sua carta e ainda acrescenta que acredita que a Nova Missa afastará tanto os Católicos Orientais como os Ortodoxos pois "A Novus Ordo parece ter deliberadamente se despojado de tudo daquilo que na liturgia de Roma se aproximava do Oriente." Nos anos que seguiram a reforma, alguns católicos latinos mudaram-se para os ritos orientais da Igreja Católica, que possui uma tradição litúrgica mais similar - em alguns casos praticamente idênticas - com a Ortodoxia, fugindo das reformas de 1969.

Além dessas mudanças oficiais surgiram inúmeros abusos. Um tour pelos vídeos na internet nos mostra missas católicas e outros encontros (tanto litúrgicos quanto não litúrgicos) incluindo danças litúrgicas, bonecos gigantes fantasiados (eu vi um em que o padre estava vestido de Barney, o Dinossauro), e todo tipo de shows que trivializam a vida litúrgica.

Esses, de fato, são abusos, e não representam a política litúrgica oficial de Roma, eles são, no entanto, bastante comuns e estão expostos até em grandes eventos públicos com participação de prelados da alta hierarquia. Por exemplo, no dia da Jornada Mundial da Juventude, em 2013, que mencionei anteriormente, o Papa foi acolhido por dezenas de bispos católicos empenhados num tipo de dança que faz idosos parecerem dançarinos horríveis.

Preocupante para muitos católicos também, é aquilo que é permitido como devoção e disciplina privada. O Papa Francisco disse em 2015 que católicos que sentem na consciência que devem ser permitidos a comungar, são bem-vindos, mesmo se estiverem vivendo em pecado grave. E também já faz muitas décadas que se espera asceticismo dos fiéis, fora dos mosteiros. Jejum além daquele do peixe na sexta feira durante a Quaresma é algo completamente desconhecido na Igreja Católica atual. E mesmo entre os monges - que em número vem rapidamente caindo - encontra-se todo tipo de posições morais problemáticas, sem mencionar que muito deles nem mesmo se vestem como monges.

Essas coisas representam os maiores obstáculos para os Ortodoxos pensarem em unir-se com Roma, terei que ser honesto e dizer que não estou otimista sobre qualquer esperança de união com Roma. Ao mesmo tempo, especialmente no que diz respeito as questões litúrgicas e pastorais, há muitos católicos que estão quase concordando com a Ortodoxia. Esperamos que eles ajam como fermento na Igreja deles.

Uma coisa que já percebi na maioria dos encontros entre os Católicos e os Ortodoxos, é que a avaliação da distância entre nós é diferente. Como vimos numa citação no inicio desta conversa (do Papa João Paulo II), muitos católicos veem a Ortodoxia como sendo praticamente a mesma coisa, faltando, talvez, apenas uma coisa: o Papado. Já os Ortodoxos tendem a ver as diferenças em maior número e mais sérias.

O que exacerba essa discrepância é que os ortodoxos são muito mais conscientes do catolicismo romano do que os católicos são da ortodoxia, provavelmente, devido pelo menos em parte, ao tamanho relativo das duas igrejas. A Ortodoxia permanece invisível para a maioria dos Católicos, e certas memórias históricas do Catolicismo, tais como o saque brutal de Constantinopla pelos Cruzados latinos em 1204 permanecem importantes para o Ortodoxo.

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