segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Ortodoxia e Heterodoxia - Catolicismo Romano (Pe. Andrew Stephen Damick) [Parte 1/4]

Nota do tradutor: o texto que segue provém de uma transcrição de um áudio (do podcast "Orthodoxy and Heterodoxy"),  por isso o texto está em um formato um pouco diferente. 



O Grande Cisma criou uma nova religião?

"Um vínculo particularmente estreito já nos liga. Temos quase tudo em comum, e, acima de tudo, temos em comum o verdadeiro anseio pela unidade." (Papa João Paulo II, Orientale Lumen, 1995)

"Os Latinos não são apenas cismáticos mas também hereges. No entanto, a Igreja ficou em silêncio sobre isso porque suas nações são maiores e mais poderosas do que a nossa... e não desejamos cair no triunfalismo em relação aos latinos enquanto hereges, mas aceitamos seu retorno e cultivamos a fraternidade. Nós não nos separamos deles por qualquer outra questão além do fato de que são hereges. É precisamente por esta razão que não devemos nos unir com eles. A menos que eles abandonem a adição do credo, o filioque, e confessem o credo como fazemos." (São Marcos de Éfeso, 1439)

"Certamente nosso problema não é geográfico nem de alienação pessoal. Tampouco é um problema de organização estrutural, nem de arranjos jurisdicionais. Nem é um problema de submissão externa, nem de absorção de indivíduos e grupos. É algo mais profundo e mais substancial. A maneira em que existimos tornou-se ontologicamente diferente. A menos que nossa transfiguração ontológica e transformação para um modelo comum de vida seja alcançada, não só na forma, mas também na substância, a unidade e realização que a segue tornam-se impossíveis. Ninguém ignora o fato de que o modelo para todos nós é a pessoa do Theanthropos (Deus-Homem) Jesus Cristo. Mas qual modelo? Ninguém ignora o fato de que a incorporação Nele é alcançada dentro de Seu corpo, a Igreja. Mas a Igreja de quem?" (Patriarca Ecumênico Bartolomeu I, discurso feito na universidade de Georgetown, 1997)  

"Portanto, estas igrejas e comunidades separadas - o que inclui a Igreja Ortodoxa - embora acreditemos que sofram de defeitos, de modo algum foram privadas de significado e importância no mistério da salvação. Pois o espírito de Cristo não se absteve de usá-las como meios de salvação que derivam sua eficácia da plenitude da graça e da verdade confiada à Igreja Católica" (Joseph Cardinal Ratzinger [mais tarde Papa Benedito XVI], Dominus Iesus, 2000)

Em 16 de julho de 1054, quando as orações começavam na Igreja de Santa Sofia em Constantinopla, na época a capital do Império Romano, três representantes do papa de roma liderados pelo Cardinal Humbert de Moyenmoutier entraram no local. Junto com Humbert estava o Arcebispo Pedro de Amalfi e o Cardeal Frederick de Lorena (que em 1057 viria tornar-se Papa Estevão IX). Todos os três foram líderes centrais numa reforma posterior que veio expandir o poder papal, libertando-o do controle político secular (que veio a se chamar Controvérsia das Investiduras), preparando para seu desenvolvimento sob Papa Gregório IV 

Os três foram diretamente ao Santo Altar, o Santuário, e com eles estava uma bula papal, um documento excomungando Michael Cerularius, o Patriarca de Constantinopla. Saíram imediatamente e, ao deixar a Igreja, Humbert, sacudiu a poeira de seus pés e disse que Deus observasse e julgasse. Um dos diáconos da Igreja correu atrás dos enviados do papa e implorou para que mudassem o que haviam feito, o cardinal rejeitou suas súplicas e a bula papal foi largada na rua. 

Ironicamente, o papa morreu em 19 de abril daquele ano, assim, tornando a autoridade de seus legados tecnicamente nula. Mas o ato já havia sido consumado. Os historiadores frequentemente marcam esses eventos em 1054 como marcos importantes no Grande Cisma entre os dois grupos que vieram a ser identificados como os Ortodoxos do oriente e os Católicos do ocidente 

Embora os atos desse dia de julho no século XI em Constantinopla não foram o único ou momento definitivo no Grande Cisma, eles ainda assim se tornaram icônicos no mais trágico e doloroso de todas as rupturas que sofreu a cristandade. Séculos de desenvolvimentos levaram aquele momento e somente a partir do início do século XIII que o cisma completou-se quando o último latino conhecido foi excomungado de Antioquia. Os séculos que seguiram aquele dia de 1054 nos deram duas visões diferentes do que significa ser cristão e o que significa ser a Igreja. Essas diferenças não são apenas de mentalidade e visão, mas também em doutrinas centrais que são necessárias para a própria salvação.

Diferentes visões

Existem três áreas primárias que o catolicismo romano difere da ortodoxia em termos de sua visão geral, de sua cultura teológica e espiritual. Essas três áreas são o desenvolvimento da doutrina, a relação entre fé e razão, e um diferente tipo de espiritualidade

Desenvolvimento da doutrina

O catolicismo romano aceita o desenvolvimento da doutrina. Isso significa que a Igreja progride em seu entendimento e expressão da doutrina, e não que novos dogmas são introduzidos. 

O texto católico clássico sobre o desenvolvimento da doutrina é o ensaio de John Henry, 'Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã'. Cardinal Newman, no século XIX, converteu-se ao catolicismo vindo da Igreja Anglicana - hoje a caminho para ser canonizado por Roma - procurou defender sua Igreja contra os ataques dos anglicanos e protestantes sobre as doutrinas católicas romanas que não estavam presentes nas escrituras e no testemunho da Igreja primitiva. 

O próprio Newman não teria aceitado a idéia de que dogmas verdadeiramente novos fossem definidos por sua igreja E, assim, sua noção de desenvolvimento da doutrina é semelhante da Ortodoxia em que as expressões dogmáticas se desenvolvem mas não sua substância. Portanto, embora Roma não ensine formalmente que a substância doutrinária se desenvolva ao longo do tempo, a evidência material, do ponto de vista ortodoxo, da história dogmática de Roma, (por exemplo, a concepção imaculada ou infalibilidade papal), demonstra que, ao contrário daquilo que compreendem, eles ensinam, de fato, novos dogmas que não foram defendidos pelos Apóstolos ou pelo Padres. Então o ponto onde a Ortodoxia difere é que acreditamos que, Roma, de fato, introduziu novos dogmas. Com o passar do tempo dogmas apareceram que não estavam presentes em séculos anteriores. Uma vez que a fé católica romana é, portanto, não compatível com versões anteriores - utilizando um termo de software - isso significa que um bom católico de 2000 anos atrás estaria em perigo de excomunhão se estivesse vivo hoje. Por exemplo, a infalibilidade papal foi negada por muitos católicos, incluindo Bispos, até sua definição oficial dogmática no primeiro Concílio Vaticano em 1870. Ou seja, os bons católicos de antes de 1870, agora estariam excomungados sob o anátema, do primeiro Concílio Vaticano. 

Newman dizia que todas doutrinas desenvolvidas existiram em uma forma seminal - forma de semente - na antiga tradição da igreja. E numa tentativa de provar desenvolvimentos posteriores os historiadores de Roma passaram a buscar e apresentar provas bastante anacrônicas, de acordo com esta fórmula. Por exemplo quase sempre que referências sobre a primazia são encontradas em relação ao Apóstolo Pedro e os apóstolos ou ao Papa e os Patriarcas assumem que trata-se da prova da supremacia, ignorando que a supremacia não é a mesma coisa que a primazia.

Embora algum dos primeiros Padres tivessem crenças que mais tarde foram rejeitadas por serem incompatíveis com a Ortodoxia (como o mileniarismo, presente na obra de Irineu de Leão, ou a apocatastasis em Gregório de Nissa), essas opiniões pessoais nunca fizeram parte da fé de toda a Igreja. Em relação a Roma fica claro que a fé de toda a Igreja Católica Romana mudou e até mesmo seu catecismo parece sugerir que tais mudanças são possíveis e adequadas. Eis uma citação do catecismo da Igreja Católica, seção 94, "Graças à ajuda do Espírito Santo, a compreensão das realidades e das palavras da herança da fé são capazes de crescer na vida da igreja." Ou seja, através da contemplação, estudos, pesquisa teológica, e até mesmo com: "... senso íntimo de realidades espirituais que os fiéis experimentam, as sagradas escrituras crescem com aquele que a lê.

A Igreja Ortodoxa pratica o desenvolvimento da expressão do dogma cristão, mas não do seu significado e substância, que é eterno, tendo sido dada por Deus em sua totalidade aos apóstolos. Também acho problemática a linguagem que "a compreensão das realidades e das palavras da herança da fé são capazes de crescer". Será realmente possível que, só por que estou mais a frente no progresso da história, eu posso compreender as realidades e as palavras da herança da fé melhor do que os apóstolos? 

Ainda que seja muitas vezes o ponto de partida para mais reflexão teológica, a formulação ortodoxa dogmática, especialmente em sua expressão conciliar, é primariamente uma resposta pastoral à heresia, não uma oportunidade para codificar especulações ou imaginação sistemática e doutrina. O dogma ortodoxo nunca pretende expor toda a verdade sobre qualquer coisa, mas apenas delinear as fronteiras do mistério. 

Apesar de suas formulações oficiais, temos de concluir que, na elaboração efetiva do modelo de Roma, Cristo deve ter dado apenas uma semente de fé aos apóstolos que cresceu e mudou com o tempo. Sendo assim, a Igreja Católica de hoje supostamente entende melhor a verdade - e com um nível mais elevado de conhecimento - do que a igreja do ano anterior. Assim, os Padres apostólicos que foram os Padres imediatamente após os Apóstolos, possuíam um nível mais elevado de compreensão do que os apóstolos, os escolásticos medievais entendiam melhor do que os Padres e assim por diante. Esta prática teológica contribui para a estrutura de todas as inovações na doutrina católica romana que diferem da Ortodoxia. 

Fé e razão

Desenvolver a doutrina é possível em parte por causa da relação que Roma vê entre a fé e razão, onde a razão tende a ser colocada em um nível mais elevado na vida cristã comparada a Igreja Ortodoxa. Especialmente desde o tempo de Tomás de Aquino, no século XIII, Roma definiu e redefiniu grande parte de sua doutrina, incluindo novos dogmas, em termos racionais. 

O projeto de Aquino era fundir o dogma católico com a exigência filosófica da lógica aristotélica. Para ser justo, muitos santos ortodoxos também utilizaram Aristóteles, incluindo João de Damasco, o início de sua "Fonte da Sabedoria" que é parte de um trabalho maior que inclui sua famosa "Exposição Exata" é essencialmente um comentário sobre as categorias de Aristóteles, uma das famosas obras de Aristóteles. Muitos dos Padres da Igreja lutaram com a herança filosófica grega, e uma espécie de escolasticismo existiu no oriente antes que ocorresse no ocidente. Mas Aquino leva tudo isso muito além, deixando muitos ortodoxos desconfortáveis... A fusão do tomismo com Aristóteles é a origem de muitas tentativas modernas de provar a existência de Deus que são baseadas na proposição de que a doutrina deve ser lógica e científica para que seja crível. 

O Papa João Paulo II em sua encíclica de 1998, Fides et Ratio (Fé e Razão), coloca a razão e a fé no mesmo nível como meios para a Verdade. Ele escreve,

"A fé e a razão são como duas asas sobre as quais o espírito humano se eleva à contemplação da verdade; e Deus colocou no coração humano o desejo de conhecer a verdade - em uma palavra, conhecer a si mesmo - para que, ao conhecer e amar a Deus, os homens e as mulheres também possam chegar à plenitude da verdade sobre si mesmos." 

Esse tipo de linguagem é a razão pela qual os críticos ortodoxos do catolicismo romano o descrevem como racionalista - não apenas racional, mas submetido às exigências da racionalidade humana. A razão é compreendida não como apenas uma ferramenta mas, em vez disso, torna-se o próprio critério da verdade. É também por este motivo que grande parte da vida espiritual católica romana é legalista. Pois frequentemente está mais preocupada em satisfazer categorias filosóficas legais do que abordar e curar realidades espirituais. 

Essas não são generalizações grosseiras do catolicismo que também possui seu misticismo. O misticismo não é colocado em oposição a racionalidade, não são opostos, mas a ênfase é claramente diferente para o Ortodoxo. De qualquer maneira não podemos enfatizar essa demais diferença. Newman, por exemplo, escreveu em seu ensaio Grammar of Assent que a 'lógica de papel' - como ele chama - não era suficiente para funcionar na vida concreta, incluindo nas crenças religiosas. 

Para o Ortodoxo, o pensamento racional é uma ferramenta útil para suportar o meio de conhecer a verdade, que é a fé, em cooperação com a graça de Deus. A razão, embora útil, não é um elemento necessário na vida cristã. A Igreja Ortodoxa valoriza a razão e possui uma forte tradição intelectual. A Ortodoxia não é anti-intelectual. A Ortodoxia é racional, mas não racionalista. Você pode ser um verdadeiro teólogo na Igreja Ortodoxa e ainda assim ser intelectualmente incapacitado pois a verdadeira teologia não é definida pela a acuidade da mente racional, mas sim pela qualidade da oração do coração. 

Espiritualidade

A ênfase exagerada na razão, pode conduzir para uma espiritualidade desequilibrada, afetando a espiritualidade do dia a dia do cristão, onde a unidade integral do corpo-mente-alma (que a espiritualidade Ortodoxia nutre), torna-se fragmentada e o corpo passa a ser enfatizado demais na vida espiritual. Algumas correntes da espiritualidade católica, tendem ser antropocêntricas e materialmente focadas. Ao invés de afastar o olho da alma para longe do mundo, esse tipo de espiritualidade, tende a focar em imagens especificamente terrenas e em sensações. 

Na arte religiosa, alguns exemplos visuais deste tipo de ênfase, incluem a renascença e a arte barroca com seu caráter exageradamente sensível - e até mesmo erótico - e as estátuas realistas em três dimensões que servem de ornamentação da Igreja. Em contraste, a iconografia ortodoxa é propositadamente não realista para conduzir o espectador para além deste mundo. Ainda que existam estátuas na tradição Ortodoxa, ela tende a ser em relevo (achatada em vez de tridimensional) e muito menos realista. 

O catolicismo romano também foi, ao menos antes da introdução da musica pop estilo protestante e das músicas populares na década de 70's, lugar de um estilo de música complexo em que o foco não está no texto que está sendo entregue, mas na grandiosidade das harmonias e inventividade dos compositores. Muitas vezes transformando a adoração numa performance. A Ortodoxia também sofre disso em alguns lugares, muitas vezes devido a influência de igrejas sob Roma. Muito embora, tanto o ocidente quanto o oriente, possuem tradições de cantos ascéticos modal. O principal canto tradicional do antigo ocidente é o gregoriano. Os estudantes da história da música da Igreja lembrarão que a harmonia era canonicamente proibida na Igreja primitiva precisamente devido ao seu apelo emocional e manipulativo. 

Na prática espiritual privada, podemos pensar nos estigmas (sangramento no corpo nos locais das feridas de Cristo), que muitas vezes rezava-se desesperadamente por eles, como Francis de Assis, o fundador dos franciscanos. Ou considere os exercícios espirituais imaginativos de Inácio de Loyola (o fundador dos jesuítas), auto-flagelação e outras formas extremas de ascetismo. Todos estes representam uma abordagem carnal e sensualista da vida espiritual. Existe aí um foco na carne e na imaginação.

Para ser mais justo, tal abordagem espiritual não é universal no catolicismo. Pode-se pensar no asceticismo mais austero e contido do monasticismo dos beneditinos, por exemplo, mas certamente essa abordagem está presente, e encontra-se sua expressão na piedade popular e até mesmo em filmes, como o filme de Mel Gibson, A Paixão de Cristo. 

A devoção popular da Quaresma, as Estações da Cruz, é focada em imaginar a si mesmo presente com Cristo em vários pontos durante sua Paixão. Escapulares devocionais - pequenos pedaços de pano - podem ser simplesmente ferramentas mnemônicas para ajudar seu usuário a lembrar-se de orar, mas muitas vezes são considerados muito mais que isso Afirma-se que o uso piedoso do escapulário marrom garante o resgate pela Virgem Maria do purgatório no primeiro sábado após a morte do portador. Isso é chamado de privilégio sabatino

A espiritualidade católica romana na prática também é frequentemente legalista. Por exemplo, considera-se um pecado não jejuar, enquanto a Ortodoxia reconhece o jejum como simplesmente uma ferramenta. Pode-se também encontrar listas detalhadas de como obter indulgências do purgatório, penitências quantitativas ("Ore dez Ave Marias e um Pai Nosso") e a anulação dos casamentos como meio de contornar a proibição de divórcio.

Esse problema realmente me tocou quando eu estava folheando uma grande e antiga Bíblia Católica de uma namorada da faculdade. Dentro da capa da frente havia um gráfico detalhado listando quantos anos fora do purgatório você poderia obter se você ler tantos minutos a Bíblia. Bem, este tipo de coisa não é enfatizada tanto nos nossos dias mas, no entanto, fica claro que a vida diária do fiel católico romano não é a mesma que a do fiel cristão ortodoxo. 

Enfatizamos certas tendências e correntes na espiritualidade católica aqui que são especialmente problemáticas para os ortodoxos, mas trata-se de um campo muito mais amplo do que representamos. As diferentes ordens clericais do catolicismo podem enfatizar abordagens radicalmente diversas com ordens de sensibilidade mais místico-contemplativas por um lado, e tipos mais legalistas, por outro. Os jesuítas não são o mesmo que os franciscanos, nem os trapistas são o mesmo que os norbertinos e as vezes as práticas e visões desses grupos se contradizem, tudo isso afetando igualmente os leigos. 

Retornemos para as questões mais dogmáticas. 

Algumas diferenças importante na doutrina provém - ou são a fonte - dessas diferenças significativas na perspectiva teológica. Na prática Roma não concorda com a ortodoxia em questões fundamentais como a eclesiologia (o que é a igreja), e o papel relacionado a autoridade da igreja. Da mesma forma nossa visão básica de quem é Deus difere em questões como do Filioque, a absoluta simplicidade divina e a graça criada. Até mesmo a questão - que a maioria dos cristãos perguntam - "como somos salvos" é respondida diferentemente pelas doutrinas de Roma, tais como: o pecado original, o complexo sistema de méritos, satisfação, purgatório, indulgências e a validade sacramental e se não-católicos podem ou não podem ser salvos. Discutiremos tudo isso. Vamos começar com a questão mais conhecida entre Roma e a Ortodoxia, o papado. Uma questão que vai ao próprio o coração da eclesiologia: o que é a Igreja? As objeções Ortodoxas aos ensinamentos de Roma sobre o papado provém de duas partes: a supremacia papal e a infalibilidade papal. 

Supremacia Papal 

A supremacia papal é o ensinamento de que o Papa de Roma possui suprema jurisdição universal ordinária imediata sobre todo cristão, e que ele é a cabeça da Igreja. As decisões do Papa não podem ser anuladas nem mesmo por um concílio ecumênico e a rejeição da supremacia papal põe em perigo tanto a fé como a própria salvação. 

Este ensinamento teve sua definição mais explícita no primeiro Concílio Vaticano em 1870. 

"Por isso ensinamos e declaramos que, pela ordenança divina, a Igreja Romana possui uma preeminência de poder ordinário sobre todas as outras Igrejas, e que este poder jurisdicional do Pontífice Romano é episcopal e imediato. Tanto o clero como os fiéis, seja qual for o rito e a dignidade, individualmente e coletivamente, devem submeter-se a esse poder pelo dever de subordinação hierárquica e verdadeira obediência, e isto não só em matéria de fé e moral, mas também nas que se referem à disciplina e ao governo da Igreja em todo o mundo. Este é o ensinamento da verdade católica, e ninguém pode afastar-se dele sem pôr em perigo sua fé e salvação." (Pastor aeternus, Vaticano I, 1870)

Embora tenha sido apenas no Vaticano I - que deu uma declaração tão clara da jurisdição universal - esse ensinamento não era novidade para os católicos romanos, no que diz respeito as reformas papais que vieram a existir sob Gregório VII, por exemplo. Foi reivindicado - pelo papa Gregório VII - em um documento chamado Dictatus Papae (incluído no registo do Papa no ano de 1075). Esta frase em latim significa os ditames do Papa ou as coisas que o Papa disse, literalmente; é dito, entre outras coisas, que o Papa não está somente acima do julgamento de qualquer um, mas que ele pode afastar imperadores, livrar os cidadãos da lealdade aos seus governantes; é dito que a Igreja Romana nunca errou e não pode errar, que todos os príncipes devem beijar seus pés e até mesmo que ele é feito um santo em virtude de sua eleição como papa. Este documento não tem posição canônica e muitas das estipulações não são explicitamente ensinadas por Roma hoje, mas seu conteúdo nos dá uma sensação da cultura que envolvia o papado durante os anos imediatamente após o Grande Cisma.

Esta sensação da posição do papa é expressada nas palavras usadas para coroar novos papas com a tiara papal, que foi usada até 1962: "Receba a tiara adornada com três coroas e saiba que você é pai de príncipes e reis, o governante do mundo na terra, o vigário do nosso Salvador Jesus Cristo, a quem damos honra e glória em todos os séculos ".

E em 1439, quando o concílio de Florença se encontrou na tentativa de reunir a Igreja Ortodoxa com Roma por meio da submissão da Igreja Ortodoxa, o concílio declarou: "O pontífice romano é o verdadeiro vigário de Cristo, o chefe de toda a igreja e o pai e professor de todos os cristãos; e para ele foi cometido no abençoado Pedro, pelo nosso senhor Jesus Cristo, o poder total de cuidar, dominar e governar toda a igreja". Como dizemos, esse tipo de linguagem vai mais longe e pode-se encontrar ecos antes do Grande Cisma entre o oriente e o ocidente (embora esse tipo de presunção tenha sido frequentemente ignorado pelo oriente).

O ensinamento de que o Papa tem jurisdição universal é às vezes chamado de ultramontanismo porque dá ao Papa poder jurisdicional além das montanhas (os Alpes na fronteira norte da Itália). O termo ultramontano historicamente teve outros significados no uso da igreja, principalmente no sentido geográfico referindo-se originalmente a um papa que veio de além da Itália, por isso ele era um papa de além das montanhas, mas agora o termo é usado no sentido de um papa que controla além das montanhas.

Este dogma da supremacia papal coloca o Papa acima de qualquer ser humano e anatemiza - isto é, colocar sob uma maldição reservada para hereges - qualquer um que rejeitar este ensinamento: 

"A sentença da Sé Apostólica [ou seja, Roma]  (de que não há autoridade superior) não está sujeita a revisão por qualquer pessoa, e ninguém pode legitimamente julgar sobre isso. E assim se desviam do verdadeiro caminho da verdade aqueles que defendem que é lícito recorrer dos juízos dos pontífices romanos a um conselho ecumênico como se fosse uma autoridade superior ao Pontífice Romano. 

Então, se alguém disser que o pontífice romano tem meramente um ofício de supervisão e orientação e não o pleno e supremo poder de jurisdição sobre toda a igreja e isso não só em questões de fé e moral, mas também naquelas que dizem respeito à disciplina e ao governo da igreja dispersa em todo o mundo ou que ele tem apenas a parte principal, mas não a plenitude absoluta deste poder supremo ou que este seu poder não é ordinário e imediato tanto global em cada uma das igrejas e em geral em cada um dos pastores e dos fiéis que seja anátema." (Pastor Aeternus, Vaticano I, 1870). 

Essas reivindicações ainda são feitas em nossos tempos. No Concílio Vaticano II, Roma diz: "Nesta Igreja de Cristo, o Pontífice Romano, como sucessor de Pedro a quem Cristo confia a alimentação de uma ovelha e cordeiros desfrutar de uma plena autoridade suprema imediata e universal sobre o cuidado das almas, por instituição divina." Isto é do documento Christos Dominus, 1965. Este ensinamento ainda está bem presente nos livros e ainda está em prática até hoje.

Ensina-se que esta autoridade vem de São Pedro, o chefe dos Apóstolos, cujo único sucessor é o Bispo de Roma O papado universalmente supremo é um elemento necessário para a constituição da Igreja. Cada diocese local é, assim, apenas uma parte da Igreja Católica e não é plenamente católica sem a submissão ao Papa. A autoridade apostólica suprema repousa sobre um só homem. 

A Ortodoxia rejeita a supremacia papal por várias razões Primeiro, acreditamos que Cristo é a cabeça da Igreja, não qualquer bispo como está escrito em Efésios 1:22 e 5:23 e Colossenses 1:18 Ele também não precisa de um Vigário; um dos títulos do Papa é Vigário de Cristo (Vicarius) porque Ele está sempre presente em Sua Igreja. 

Quanto a São Pedro, há alguns que vêem um papel especial para ele quando Cristo lhe dá as "chaves" do Reino dos céus para "ligar" e "desligar" (Mateus 16:19), mas essas mesmas chaves são dadas a um sujeito plural a todos os apóstolos em João 20:23. O Senhor também se descreve (não Pedro) como tendo as "chaves do inferno e da morte" em Apocalipse 1:18. A idéia de que o único sucessor de Pedro é o papa romano, que tem acesso exclusivo às "chaves", não está nas Escrituras.

É verdade que Pedro era o chefe dos Apóstolos e a Igreja Ortodoxa o honra dessa maneira, mas a honra de sentar-se na cadeira de Pedro, não só descende ao Papa de Roma, mas para todos os Bispos Ortodoxos. Há poucas evidências históricas de que Pedro um dia já foi Bispo de Roma, muito embora ele seja celebrado como o primeiro bispo de Antioquia (e Roma tem até mesmo uma festa em 22 de fevereiro dedicada ao episcopado de Pedro em Antioquia). A associação de Pedro com Roma é mais pelo seu martírio junto com Paulo (ocorrido em Roma) que é amplamente atestado na tradição cristã. Embora existam alguns estudiosos modernos que duvidam se ele já esteve em Roma. 

Pedro nunca é chamado de cabeça da Igreja em nenhum sentido na Bíblia, nem ele mesmo nunca apelou a qualquer suposta autoridade papal, até mesmo em suas discordâncias São Paulo não reconheceu tal autoridade quando ficou de frente com Pedro em relação a aceitação temporária de Pedro dos costumes judaicos como é dito em Galátas 2:11, nem parece que ele precisou da permissão de Pedro para escrever epístolas pastorais aos Cristãos romanos, ele sequer menciona Pedro nelas, enquanto saúda cinquenta pessoas por nome naquela carta. E no momento em que imaginaríamos em que Pedro estaria mais 'papal', no Concílio Apostólico em Atos 15, é Tiago (o Bispo local em Jerusalém, no território em que eles se encontravam) que pronuncia a sentença do Concílio, não Pedro. 

A história da Igreja também nos mostra que Concílios superam o Papado repetidamente. Nenhum dos Concílios Ecumênicos anteriores ao Grande Cisma jamais reconheceu a suposta supremacia do Papa. Por exemplo, no Quarto Concílio em Calcedônia em 451, o tomo do Papa Leão não foi simplesmente aceito, mas, ao contrário, foi examinado e discutido primeiramente e então é que foi dito que Pedro falou através de Leão. O mesmo Concílio define o primado de Roma como sendo primariamente de honra, não de supremacia. E é dito no cânon 28 que a honra é dada a Roma "porque é a cidade imperial" - nem Pedro nem qualquer instituição divina é mencionada. Há também diversos exemplos de bispos levantando-se diante de Roma e não reconhecendo nenhuma suposta jurisdição absoluta universal. Por exemplo, quando São Cipriano de Cartago levantou-se contra o Papa Estevão em relação se os batismos heréticos eram eficazes. 

Um dos problemas dos argumentos a favor da supremacia papal é que frequentemente apoiam-se em evidências históricas da primazia papal, que não é a mesma coisa. A primazia é uma posição de antiguidade que pode incluir alguns privilégios como presidir os Concílios ou servir de último tribunal de recurso, mas a supremacia vai muito mais além e faz do Papa o mestre de todos. Portanto, embora os Ortodoxos aceitem a primazia do Papa na Igreja pré-cisma, eles argumentam que não é a mesma coisa que a supremacia. 

A reivindicação de Roma pela supremacia também cria alguns problemas práticos e teológicos, realisticamente falando, se o Papa possui autoridade imediata e absoluta em qualquer lugar então ele é, essencialmente, o único verdadeiro Bispo na Igreja. Mesmo que outros bispos ainda sejam ensinados que são sucessores dos Apóstolos em sua própria maneira, e não através do Papa, eles são, efetivamente, apenas vigários. Todos os bispos, em todo mundo, são nomeados e removidos pelo Papa. A nomeação papal de todos os bispos é uma política que desenvolveu-se após o Vaticano I, embora tenha sido mencionada séculos antes, no Dictatus Papae. 

São Gregório o Grande (Papa de Roma, do ano 590 até 604) reconheceu isso como um problema teológico quando ele falou contra o novo título Patriarca Ecumênico que começou a ser utilizado pelo Arcebispo de Constantinopla, São Gregório escreveu isso: "Qualquer um que se chame de Bispo Universal, ou deseja este título é, pelo seu orgulho, o precursor do Anticristo." Foi um Papa que disse isso. Ele mal-interpretou o que Ecumênico significava. Foi uma referência a Constantinopla como sendo o centro da Oecumene, do Império Romano. Mas ele claramente rejeita a idéia de um Bispo Universal. 

São Cipriano de Cartago expressa sentimentos semelhantes em sua disputa com Papa Santo Estevão, quando escreve: "Nenhum entre nós se colocou acima dos outros como um Bispo dos Bispos ou pela tirania e terror forçou nossos colegas à obediência compulsória, visto que cada bispo na independência de sua liberdade e poder possui o direito a sua própria mente e não pode ser mais julgado por outro do que ele mesmo pode julgar outro. Devemos todos aguardar o julgamento de nosso Senhor Jesus Cristo, que somente Ele tem poder tanto para nos nomear ao governo de sua Igreja quanto para julgar nossos atos nela." 

Parte 1 - Parte 2 - Parte 3 - Parte 4

2 comentários:

  1. Teria como disponibilizar as outras partes da palestra ! Não está abrindo...obrigado

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