quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Epílogo - Deus como Eternidade (Kallistos Ware) [Parte 8/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade 


Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu reino.
Lucas 23:42

Para todas as almas que amam Deus, para todos os cristãos verdadeiros, haverá um primeiro mês do ano, como o mês de abril, um dia de ressurreição.
As Homilias de São Macário

Quando Abba Zacharias estava a ponto de morrer, Abba Moisés perguntou: "O que você vê?" e Abba Zacharias respondeu: "Não é melhor não dizer nada, pai?" "Sim, meu filho", disse Abba Moisés, "é melhor não dizer nada".
Os Ditos dos Padres do Deserto

A fala é o órgão deste mundo presente. O silêncio é o mistério do mundo vindouro.
São Isaac, o Sírio


O fim se aproxima

"Estou esperando a ressurreição dos mortos e a vida da era por vir". Orientado para o futuro, o Credo termina com uma nota de expectativa. Mas, embora as últimas coisas formem nosso ponto de referência constante ao longo desta vida terrena, não nos é possível falar em detalhes sobre as realidades da era por vir. "Amados", escreve São João, "agora somos filhos de Deus, e ainda não se manifestou o que havemos de ser" (1 João 3: 2). Através da nossa fé em Cristo, possuímos aqui e agora uma relação viva e pessoal com Deus; e nós sabemos, não como uma hipótese, mas como um fato presente da experiência, que essa relação já contém em si as sementes da eternidade. Mas o que é viver não dentro da seqüência do tempo, mas no eterno Agora, não nas condições da queda, mas em um universo onde Deus é "tudo em todos" - disso, temos apenas vislumbres parciais, mas nenhuma concepção clara; e então devemos falar sempre com cautela, respeitando a necessidade do silêncio.

Há, no entanto, pelo menos três coisas que temos o direito de afirmar sem ambiguidade: que Cristo virá novamente na glória; que, na sua vinda, seremos ressuscitados dentre os mortos e julgados; e que "seu reino não terá fim" (Lucas 1:33). 

Primeiro, então, a Escritura e a Sagrada Tradição nos fala repetidamente sobre a Segunda Vinda. Não nos dão motivos para supor que, através de um avanço constante na "civilização", o mundo gradualmente se tornará melhor e melhor até que a humanidade consiga estabelecer o reino de Deus sobre a terra.  A visão cristã da história do mundo é totalmente oposta a esse tipo de otimismo evolucionário. O que somos ensinados a esperar são desastres no mundo da natureza, a guerra cada vez mais destrutiva entre homens, confusão e apostasia entre aqueles que se dizem cristãos (ver especialmente Matt. 24: 3-27). Esse período de tribulação culminará com o aparecimento do "homem do pecado" (2 Tessalonicenses 2: 3-4) ou Anticristo, que, de acordo com a interpretação tradicional na Igreja Ortodoxa, não será o próprio Satanás, mas um ser humano, um homem genuíno, em quem todas as forças do mal se concentrarão e que irá por um tempo ter o mundo inteiro sob seu domínio. O breve reinado do Anticristo será terminado abruptamente pela Segunda Vinda do Senhor, desta vez não de forma oculta, como em seu nascimento em Belém, mas "assentado à direita do Poder, e vindo sobre as nuvens do céu" (Mateus 26:64). Assim, o curso da história será levado a um final súbito e dramático, através de uma intervenção direta do reino divino.

O tempo exato da Segunda Vinda está escondido de nós: "Não lhes compete saber os tempos ou as datas que o Pai estabeleceu pela sua própria autoridade" (Atos 1: 7). O Senhor virá "como um ladrão na noite" (1 Tessalonicenses 5: 2). Isso significa que, evitando especulações sobre a data exata, devemos estar sempre preparados e atentos. "E as coisas que vos digo, digo-as a todos: Vigiai."  (Marcos 13:37). Pois, caso o Fim venha mais cedo ou mais tarde em nossa escala de tempo humana, ele é sempre iminente, sempre espiritualmente próximo. Devemos ter em nossos corações um senso de urgência. Nas palavras do Grande Cânone de São André de Creta, recitado a cada Quaresma:

Minha alma, ó minha alma, levanta-te! Por que você está adormecida?

O fim se aproxima, e em breve estarás perturbada.

Vigiai, então, para que Cristo, o teu Deus, te poupe,

Pois ele está presente em todos os lugares e preenche todas as coisas.

A primavera futura

Em segundo lugar, como cristãos, acreditamos não apenas na imortalidade da alma, mas na ressurreição do corpo. De acordo com a ordenança de Deus em nossa primeira criação, a alma humana e o corpo humano são interdependentes, e nenhum deles pode existir corretamente sem o outro. Em consequência da queda, os dois se separam na morte corporal, mas essa separação não é definitiva e permanente. Na Segunda Vinda de Cristo, ressuscitaremos dentre os mortos em nossa alma e em nosso corpo; e assim, com a alma e o corpo reunidos, apareceremos diante de nosso Senhor para o Juízo Final.

O julgamento, como enfatiza o Evangelho de São João, está acontecendo o tempo todo em toda a nossa existência terrena. Sempre que, conscientemente ou inconscientemente, escolhemos o bem, entramos já pela antecipação à vida eterna; sempre que escolhemos o mal, recebemos uma antecipação do inferno. O Juízo Final é melhor entendido como o momento da verdade quando tudo é trazido à luz, quando todos os nossos atos de escolha nos são revelados em suas implicações completas, quando percebemos com absoluta clareza quem somos e qual foi o significado profundo e objetivo de nossa vida. E, seguindo este esclarecimento final, entraremos - com alma e corpo reunidos - no céu ou no inferno, na vida eterna ou na morte eterna.

Cristo é o juiz; e ainda, de outro ponto de vista, somos nós que nos pronunciamos sobre nós mesmos. Se alguém está no inferno, não é porque Deus o aprisionou lá, mas porque é aí que ele mesmo escolheu estar. Os perdidos no inferno condenam-se a si mesmos, escravizam-se a si mesmos; já foi dito, corretamente, que as portas do inferno encontram-se trancadas por dentro.

Como pode um Deus de amor aceitar até mesmo uma única de suas criaturas que ele fez deve permanecer para sempre no inferno? Há um mistério aqui que, do nosso ponto de vista nesta vida presente, não podemos esperar entender.  O melhor que podemos fazer é manter em equilíbrio duas verdades, contrastantes, mas não contraditórias. Primeiro, Deus deu livre arbítrio ao homem, e assim, para toda a eternidade, está no poder do homem rejeitar Deus. Em segundo lugar, o amor significa compaixão, envolvimento; e, se houver alguém que permanece eternamente no inferno, em certo sentido, Deus também está lá com ele. Está escrito nos Salmos: "Se eu for até o inferno, lá tu também estás" (139: 7); e São Isaque, o Sírio, diz: "É incorreto imaginar que os pecadores no inferno são privados do amor de Deus". O amor divino está em toda parte e não rejeita ninguém. Mas nós do nosso lado somos livres para rejeitar o amor divino: não podemos, no entanto, fazê-lo sem nos infligir dor, e quanto maior nossa rejeição, mais amargo é nosso sofrimento.

"Na ressurreição", declara as Homilias de São Macário, "todos os membros do corpo são ressuscitados: nenhum cabelo perece" (compare Lucas 21:18). Ao mesmo tempo, o corpo da ressurreição é dito ser um "corpo espiritual" (ver 1 Cor. 15: 35-46). Isso não significa que, na ressurreição, nossos corpos serão de alguma forma desmaterializados; mas devemos lembrar que a matéria, tal como a conhecemos neste mundo caído, com toda a sua inércia e opacidade, não corresponde à matéria como Deus pretendia que fosseLivres da grosseria da carne caída, a ressurreição do corpo irá compartilhar as qualidades do corpo de Cristo na Transfiguração e após a Ressurreição. Mas, apesar de transformado, nosso corpo de ressurreição ainda será de maneira reconhecível o mesmo corpo que o que temos agora: haverá continuidade entre os dois. Nas palavras de São Cirilo de Jerusalém:

É esse mesmo corpo que é ressuscitado, embora não em seu estado atual de fraqueza; pois ele "vestirá a incorrupção" (1 Cor. 15:53) e assim será transformado. Já não precisará dos alimentos que agora comemos para mantê-lo vivo, nem escadas para a sua ascensão; pois ele será feito espiritual e se tornará algo maravilhoso, de tal maneira que não podemos descrever adequadamente.

E Santo Ireneu testifica:

Nem a estrutura nem a substância da criação são destruídas. É apenas a "forma externa deste mundo" (1 Coríntios 7:31) que passa - ou seja, as condições produzidas pela queda. E quando essa "forma externa" passar, o homem será renovado e florescerá em um auge da vida que é incorruptível, de modo que já não é possível que ele envelheça mais. Haverá "um novo céu e uma nova terra" (Apocalipse 21: 1); e neste novo céu e terra nova viverá o homem, para sempre novo e para sempre conversando com Deus.

"Um novo céu e uma nova terra": o homem não é salvo do seu corpo, mas nele; não salvo do mundo material, mas com ele. Porque o homem é um microcosmo e um mediador da criação, a própria salvação dele envolve a reconciliação e a transfiguração de toda a criação animada e inanimada em torno dele - sua libertação "da servidão da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus" (Romanos 8:21). Na "nova terra" da era por vir certamente há lugar não só pro homem, mas também para os animais: no e através do homem, eles também irão compartilhar da imortalidade, assim como as rochas, as árvores, as plantas, o fogo e a água.

Uma viagem ao infinito

Este reino da ressurreição, no qual, pela misericórdia de Deus, habitaremos com a nossa alma e corpo reunidos, é, em terceiro lugar, um reino que não terá "fim". Sua eternidade e infinito estão além do alcance de nossa imaginação caída, mas duas coisas, pelo menos, podemos ter certeza. Primeiro, a perfeição não é uniforme, mas diversificada. Em segundo lugar, a perfeição não é estática, mas dinâmica.

Primeiro, a eternidade significa uma variedade inesgotável. Se é verdade sobre a nossa experiência nesta vida que a santidade não é monótona, mas sempre diferente, isso não é verdade também, e a um grau incomparavelmente superior, na vida futura? Deus promete a nós: 'Ao que vencer darei… lhe darei uma pedra branca, e na pedra um novo nome escrito, o qual ninguém conhece senão aquele que o recebe.' (Apocalipse 2:17). Mesmo na Era por vir, o significado interior da minha personalidade única continuará sendo eternamente um segredo entre Deus e eu. No reino de Deus, cada um é um com todos os outros, mas cada um é distintamente ele mesmo, tendo os mesmos delineamentos que ele teve nesta vida, mas com essas características curadas, renovadas e glorificadas. Nas palavras de Santo Isaias de Sketis:

O Senhor Jesus, em sua misericórdia, concede descanso a cada um de acordo com suas obras - ao grande de acordo com a sua grandeza e com o pequeno segundo a sua pequenez; pois ele disse: "Na casa do meu pai há muitas mansões" (João 14: 2). Embora o reino seja um, no entanto, no único reino, cada um encontra seu próprio lugar especial e seu próprio trabalho especial.

Em segundo lugar, a eternidade significa um progresso sem fim, um avanço incessante. Como J. R. R. Tolkien disse: "Os caminhos seguem sempre adiante". Isto é verdade para o Caminho espiritual, não apenas na vida presente, mas também na Era por vir. Movemo-nos constantemente em diante. E é adiante que nós vamos, não para trás. A Era por vir não é simplesmente um retorno ao início, uma restauração do estado original de perfeição no paraíso, mas é uma nova partida. Haverá um novo céu e uma terra nova; e as últimas coisas serão maiores que as primeiras.


‘Aqui embaixo’, diz Newman, ‘viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado muitas vezes.’ Mas é assim somente aqui embaixo? São Gregório de Nissa acreditava que mesmo no paraíso a perfeição é o crescimento. Em um paradoxo, ele diz que a essência da perfeição consiste precisamente em nunca se tornar perfeita, mas em alcançar sempre uma perfeição superior que se encontra além. Porque Deus é infinito, esse constante "avançar" ou epektasis, como os pais gregos o chamaram, prova-se ilimitado. A alma possui Deus, e ainda assim o procura; sua alegria é completa, e ainda assim torna-se mais intensa. Deus se torna cada vez mais próximo de nós, mas ele ainda continua a ser o Outro; contemplamos-lo face a face, mas continuamos a avançar cada vez mais para o mistério divino. Embora não sejamos mais estranhos, não deixamos de ser peregrinos. Avançamos "de glória em glória" (2 Cor. 3:18), e depois para uma glória ainda maior. Nunca, em toda a eternidade, alcançaremos um ponto em que realizamos tudo o que há para fazer, ou descobrimos tudo o que há para saber. "Não só na idade presente, mas na Era por vir", diz São Ireneu, "Deus sempre terá algo mais para ensinar ao homem, e o homem sempre terá algo a aprender com Deus".


Nenhum comentário:

Postar um comentário