sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Francos, Romanos, Feudalismo e Doutrina: uma interação entre teologia e sociedade (Pe. John Romanides) - PARTE 2:


Teologia Empírica versus Teologia Especulativa


Na parte 1 apresentamos um resumo da evidência que testifica que o feudalismo na Europa Ocidental não resultou do entrelaçamento de raças e costumes Romanos e Germânicos, como se crê comumente, mas sim da subjugação do Oeste Romano por seus conquistadores. Os francos então voltaram a sua atenção para a escravização eclesiástica e doutrinal da România Papal, tentando causar um cisma entre o Papado e a România Oriental. Este esforço falhou enquanto a nação Romana permaneceu sob o controle do trono Papal.
Os historiadores europeus e americanos tratam a alienação entre o Leste e o Oeste como se fosse inevitável, por conta da suposta separação do próprio Império Romano em Oriental e Ocidental, devido à diferenças linguísticas e culturais, e por conta da famosa distinção entre o legalismo Ocidental versus a especulação Oriental. (1) Esta evidência fortemente sugere que tais tentativas de explicação entre o Oriente e o Ocidente são condicionadas por preconceitos inerentes à tradição cultural dos Francos e da velha propaganda de séculos do Papado Franco.
A evidência aponta claramente para a unidade nacional, cultural e linguística entre o Leste e o Oeste (que por vezes quase colocou a França de joelhos), e que sobreviveu até o momento em que os papas Romanos foram substituídos pelos Francos. Que os papas Romanos Pré-Tusculanos nunca aceitaram a condenação franca do Leste Europeu por alegada heresia, mas, muito pelo contrário, participaram na condenação dos Francos , (ainda que sem se citar nomes) são fatos que devem ser seriamente considerados.  
Os princípios dos Decretos de procedimento jurídico foram uma parte do papado por pelo menos cem anos antes que o Leste dos Francos lhe tomassem. Porém, é certo que os papas Romanos nunca os teriam pensado em aplicar administrativamente se os sínodos fossem substituídos por monarquias diretas legisladas pelos papas, como ocorreu depois. Os Francos resistiram à vigilância jurídica dos papas Romanos. Eles nunca teriam aceitado um papa Romano ordenando e comandando, como os Romanos Orientais nunca aceitariam ordens de Papas Francos.
Não tivessem os Francos tomado o Papado, é muito provável que o sínodo local da Igreja de Roma (com o papa o presidindo) , eleito de acordo com o decreto eleitoral 769 aprovado pelo Oitavo Sínodo Ecumênico em 879, teria resistido, e não existiriam quaisquer diferenças significativas entre o papado e os outros quatros Patriarcados Romanos.
Porém, as coisas não se deram deste modo. O Papado foi alienado do Leste pelos Francos, de modo que nos damos de cara com a história de uma alienação, ao contemplarmos justamente a Cristandade dividida. Em qualquer caso, a estrutura administrativa da Igreja não pode ser julgada e avaliada simplesmente se ou não ela cumpriu com a antiga lei canônica e seus costumes, como frequentemente aconteceu com o lado Ortodoxo. Nem se pode simplesmente apelar para a alegada necessidade da Igreja de se adaptar às mudanças e circunstâncias dos tempos, para supostamente melhorar o que é bom, tornando-o mais eficaz.
Muitos dos protestantes de hoje aceitariam tal abordagem, mas não concordariam que a adaptação não poderia ser elevada a dogma, como foi feito pelo próprio Papado. Os teólogos Latinos, Protestantes e Ortodoxos concordariam que a autêntica Cristandade precisa ter uma continuidade com seu passado apostólico, mas devem ao mesmo tempo se adaptar a situações correntes e suas necessidades. Isto quer dizer que a interação entre teologia e sociedade é aceita como uma necessidade normal na história da Cristandade. Entretanto, os Cristãos estão divididos porque cada grupo vê a adaptação do outro como uma quebra perigosa à continuidade e, consequentemente, à autenticidade.


Teologia Empírica


Talvez uma chave para desenrolarmos esta série de questões que esperam por escrutínio de especialistas, seria adotar os métodos usados nas ciências positivas e relegar os métodos já em uso das ciências sociais para um nível inferior. Claro que não se pode aplicar tais métodos para um exame de Deus e da vida após a morte, mas alguém pode fazê-lo quando se tratar desta vida, levando em consideração as experiências espirituais nas várias religiões.
Na exaltada tradição Ortodoxa, a experiência espiritual genuína é o fundamento das formulações dogmáticas que, por sua vez, são guias necessários para nos conduzir à glorificação. Traduzido na linguagem científica, isto significaria que a verificação pela observação é expressa em símbolos descritivos os quais, por sua vez, agem como guias para que outros experimentem esta mesma verificação por observação. Assim, as observações dos primeiros astrônomos, biólogos, químicos, físicos e médicos tornam-se a observação de seus sucessores.
Exatamente da mesma maneira, a experiência de glorificação dos profetas, apóstolos e santos são expressas em formas linguísticas, cuja proposta é agir como guia para a mesma experiência de glorificação por seus sucessores.
A tradição de observação empírica é a pedra angular que esquadrinha a realidade factual a partir de hipóteses em todas as ciências positivas. O mesmo também é verdadeiro para o método teológico patrístico da ortodoxia.
Uma característica básica do método escolástico Franco, desencaminhado pelo Platonismo Agostiniano e o Aristotelismo Tomista, foi sua confiança ingênua na existência objetiva das coisas racionalmente especuladas por ele. Ao seguir Agostinho, os Francos substituíram o interesse patrístico pela observação espiritual, (que eles encontraram firmemente estabelecido na Gália quando primeiro conquistaram esta área) por uma fascinação pela metafísica. Eles não suspeitaram que tais especulações não tinham fundamento nem na realidade criada, nem na espiritual.
Ninguém hoje aceitaria como verdadeiro o que não é empiricamente observável, ou pelo menos verificável por inferência, a partir de um efeito comprovado e assim o foi com a teologia patrística. A especulação dialética sobre Deus e a Encarnação são rejeitadas como tais. Apenas aquelas coisas que podem ser testificadas pela experiência da Graça de Deus no coração são aceitas. “Não vos carregueis com ensinamentos estranhos e diversos. Pois é bom que o coração seja confirmado pela graça”, uma passagem de Hebreus 13,9, citada pelos Pais para este efeito.


A Bíblia e a Tradição


Os Padres não entendem teologia como uma ciência especulativa ou teorética, mas como uma ciência positiva em todos os sentidos. Esta é a razão de porque o entendimento patrístico da inspiração Bíblica deve ser similar à inspiração dos escritos no campo das ciências positivas. (2)
Os manuais científicos são inspirados pela observação de especialistas. Por exemplo, o astrônomo registra o que ele observa através dos instrumentos que são postos à sua disposição. Por conta deste treinamento no uso de instrumentos, ele é instigado pelos corpos celestes e vê coisas invisíveis a olho nu. O mesmo é verdadeiro para todas as ciências positivas. No entanto, livros sobre ciência nunca podem substituir observações científicas. Tais escritos não são as próprias observações, mas sobre estas observações.
Isto é verdadeiro até mesmo quando equipamentos fotográficos ou acústicos são usados. O equipamento não substitui as observações, mas simplesmente adiciona às observações seus registros. Cientistas não podem ser substituídos pelos livros que escrevem, nem pelos instrumentos que inventam ou usam.
O mesmo é verdadeiro acerca do entendimento ortodoxo da Bíblia e os escritos sobre os Pais. Nem a Bíblia, nem os escritos sobre os Pais são revelação ou palavra de Deus. Eles são sobre a revelação e a Palavra de Deus.
Revelação é a aparição de Deus aos profetas, apóstolos e santos. A Bíblia e os escritos dos pais são sobre estas aparições, mas não a própria aparição. E esta é a razão de porque á chamado profeta, apóstolo e santo quem vê a Deus, e não simplesmente quem lê sobre suas experiências de glorificação. E é evidente que nem um livro sobre a glorificação, nem quem lê tal livro poderá jamais substituir um profeta, apóstolo ou santo que tenha tido a experiência da glorificação.
Os escritos de cientistas são acompanhados por uma tradição de interpretação, encabeçada pelos cientistas que os sucedem os quais, por treinamento e experiência, sabem o que seus colegas quiseram dizer com a linguagem usada e agora repetem as observações descritas. Também é assim na Bíblia e com os escritos dos Pais. Apenas aqueles que têm a mesma experiência de glorificação como seus predecessores profetas, apostólicos e patrísticos podem entender os escritos Bíblicos e patrísticos sobre a glorificação e os estágios espirituais conducentes a ela.  Aqueles que chegaram à glorificação sabem como eles foram guiados até lá, e também como guiar outros, e eles são os garantidores da transmissão da mesma tradição.
Este é o coração do entendimento Ortodoxo da tradição e sucessão apostólica que o distingue das tradições Latina e Protestante, ambos provenientes da teologia dos Francos.
Seguindo Agostinho, os francos identificaram a revelação com a Bíblia e acreditaram que Cristo deu à Igreja o Espírito Santo como guia para seu correto entendimento. Isto seria similar a reivindicar que os livros sobre biologia foram revelados pelos micróbios e as células ainda que os biólogos não os tivessem visto pelo microscópio, e estes mesmos micróbios e células inspirariam os professores no futuro a compreender corretamente estes livros sem o auxílio dos microscópios.
E, de fato, os francos acreditaram que os profetas e apóstolos não viram o próprio Deus, exceto talvez Moisés e Paulo. O que estes profetas e apóstolos alegadamente viram e ouviram foram símbolos fantasmáticos de Deus, cujo propósito seria o de transmitir conceitos sobre Deus à razão humana. Enquanto tais conceitos chegam à existência, a natureza humana de Cristo é uma realidade permanente e o melhor conversor dos conceitos sobre Deus.
Não se precisa então nem de telescópios, nem de microscópios, nem da Visão de Deus, mas preferencialmente de conceitos sobre as realidades invisíveis, os quais a razão humana é por natureza supostamente capaz de entender.
Os historiadores notaram a ingenuidade da mente religiosa franca que estava chocada com a afirmação de que a observação tem um primado sobre a análise racional. Mesmo o telescópio de Galileu conseguiu mudar esta convicção. No entanto, vários séculos antes de Galileu, os Francos se chocaram com a afirmação da Roma Oriental, lançada por São Gregório Palamas (1296-1359), do primado da experiência e observação sobre a razão na teologia.
Os teólogos latinos de hoje ainda se servem da abordagem metafísica de seus predecessores, e continuam a apresentar os teólogos da Roma Oriental, como os hesicastas, como aqueles que preferem a ignorância à erudição, em sua abordagem acerca da união ascendente com Deus. Isto é o equivalente a afirmar que um cientista é contra a educação porque ele insiste no uso de telescópios e microscópios ao invés da filosofia na busca da análise descritiva do fenômeno natural.
O assim chamado movimento humanista na România Oriental foi uma tentativa de reavivar a antiga filosofia Grega, cujas tentativas já haviam sido rejeitadas, muito antes que a moderna ciência a conduzisse à sua substituição no Ocidente Moderno. Apresentar o assim chamado movimento humanista como um reavivamento da cultura é negligenciar o fato de que a pesquisa real estava entre o primado da razão sobre a observação e a experiência.


Instrumentos, observação, conceitos e linguagem
A ciência moderna nasceu pelo acúmulo de técnicas de comprovação com a ajuda de instrumentos e de teorias imaginativas propostas pelo intelecto. A observação por meio destes artefatos abriu um vasto campo de conhecimento que teria sido absolutamente impossível e mesmo inimaginável para o intelecto.
O universo tornou-se um mistério muito maior ao homem do que alguém seria capaz de imaginar, e os indícios são fortes de que ainda se provará ser um mistério muito maior do que o homem de hoje possa imaginar. À luz disso, pensa-se com humor dos bispos que não foram capazes de compreender a realidade, tampouco a magnitude, do que eles viram por meio do telescópio de Galileu. Mas a magnitude da ingenuidade dos Francos tornou-se ainda maior quando eles perceberam que estes mesmos líderes clericais que não haviam entendido o significado de uma simples observação estavam afirmando o conhecimento da essência e natureza de Deus.
A tradição latina não podia entender o significado de um instrumento mediante o qual os profetas, apóstolos e santos alcançaram a glorificação.
Similar às ciências contemporâneas, a Teologia Ortodoxa também depende de um instrumento que não é identificado com a razão ou o intelecto. O nome Bíblico para ele é: coração. Cristo disse: “Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus”. (3)
O coração não está normalmente limpo, i. e., ele não costuma funcionar da forma que lhe é própria. Como as lentes de um telescópio ou microscópio, ele deve ser polido para que a luz possa atravessá-lo e permitir ao homem focar em sua visão espiritual das coisas não visíveis a olho nu.
De igual modo, alguns Pais deram o nome de νους para a faculdade da alma que opera com o coração quando restaurado às suas capacidades normais, e reserva o nome λογος e διανοια para o intelecto e a razão, ou para o que hoje chamamos de cérebro. De modo a evitar confusão, nós usamos os termos de faculdade noética e oração noética para designar a atividade do νους no coração (νοερα ευχη).
É no coração e não no cérebro que o teólogo se forma. A teologia inclui como todas as demais ciências, o intelecto, mas é no coração que o intelecto e a integralidade do ser humano observa e sente a Lei de Deus.
Um das diferenças básicas entre a Ciência e a Teologia Ortodoxa é que o homem tem seu coração ou faculdade noética dados pela natureza, de modo que ele próprio cria seus instrumentos de observação científica.
Uma segunda diferença básica é a seguinte: por meio de seus instrumentos, e a energia radiada por ou sobre o que se observa, os cientistas veem coisas que se pode descrever com palavras, mesmo que por vezes inadequadamente. Estas palavras são símbolos de experiência humana acumulada.
Em contraste a isto, a experiência de glorificação é ver a Deus, o qual não tem qualquer similaridade com as coisas criadas, nem mesmo ao intelecto e aos anjos. Deus é literalmente único e não pode em nenhum sentido ser descrito em comparação com o que possa ser qualquer coisa criada, mesmo que pensada ou imaginada. Nenhum aspecto de Deus pode ser expresso em um conceito ou em uma coleção de conceitos.
Pode-se literalmente perceber-se porque a teoria das ideias de Platão ou mesmo das formas em Agostinho (em que as criaturas são literalmente cópias de protótipos arquetípicos reais na mente divina), são consistentemente rejeitados pelos Pais da Igreja.
Assim, a experiência da glorificação não tem lugar na especulação agostiniana sobre Deus por meio do uso de analogias psicológicas, nem na afirmação de alguns teólogos Russos de que os Pais da igreja supostamente teologizaram sobre Deus na base de algum tipo de “personalismo”. Os Padres não aplicam a Deus nem qualquer termo ou conceito. A razão é clara. Todos os Pais enfatizam, e é precisamente isto o que querem dizer, que não há absolutamente nenhuma similaridade entre Deus e Suas criaturas. Isto significa que os nomes de Deus ou a linguagem sobre Deus não pretendem ter o mesmo significado que o intelecto é capaz de obter quando revela a essência de Deus pelo intelecto.  Preferencialmente, a proposta de linguagem sobre Deus é para ser um guia nas mãos de um pai espiritual que conduz seu pupilo através de vários estágios de perfeição e conhecimento até a glorificação, onde se vê que o que os santos antes dele insistiram sobre Deus como completamente distinto dos conceitos usados acerca Dele.
É por esta razão que as afirmações positivas sobre Deus são contrabalançadas por afirmações negativas, não apenas a fim de purificar as positivas de suas imperfeições, mas de modo a tornar claro que Deus não é em nenhum sentido similar aos conceitos convencionados pelas palavras, já que Deus está acima de todo nome e conceito dirigido a Ele.  
Os Pais insistem contra a heresia Eunomiana de que a linguagem é um desenvolvimento humano não criado por Deus. Argumentando a partir do Antigo Testamento, São Gregório de Nissa afirmou que o hebraico é uma das mais novas línguas do Oriente Médio, uma posição considerada hoje como correta. Compare esta posição com a afirmação de Dante de que Deus criou o hebraico para que Adão e Eva pudessem falar e o preservaram para que Cristo também pudesse usar esta linguagem de Deus. Ora, Cristo não falou o hebraico, mas o aramaico.
A análise de Nissa da linguagem bíblica foi dominante entre os escritores da Roma Oriental. Eu encontrei quatro teorias típicas de Dante até agora apenas entre os Eunomianos e Nestorianos. Dadas tais pressuposições, pode-se ver porque os pais insistem que estudar o universo, ou engajar-se na especulação filosófica não contribui em nada para os estágios de perfeição que conduzem à glorificação.
A doutrina da Santíssima Trindade e da encarnação, quando tomados fora de seu contexto empírico e revelador, tornam-se ou tornaram-se ridículos. O mesmo pode ser dito da distinção entre a essência e as energias incriadas de Deus. Conhecemos tal distinção a partir da experiência de glorificação desde o tempo dos profetas. Ela não foi inventada por São Gregório Palamas. Mesmo os atuais teólogos judeus continuam a vê-la claramente no Antigo Testamento.
A despeito de Deus ter criado o universo, o qual continua na Sua dependência, Deus e o universo não pertencem a uma categoria de verdade. As verdades a respeito da criação não podem se aplicar a Deus, nem pode a verdade de Deus ser aplicada à Criação.


Diagnose e Terapia




Tendo chegado a este ponto, voltaremos nossa atenção àqueles aspectos que diferenciam a teologia dos Romanos e a dos Francos que tiveram um forte impacto diferencial no desenvolvimento de suas doutrinas sobre a Igreja. A diferença básica pode ser listada sob a diagnose das doenças espirituais e suas terapias.
A Glorificação é a visão de Deus que afirma a igualdade de todos e o valor absoluto de cada homem. Deus ama a todos igualmente e indiscriminadamente, sem fazer acepção de seus status morais. Deus ama com o mesmo amor o santo e o possesso. Para se ensinar de outra forma, como fizeram Agostinho e os Francos, seria adequado provar que eles não tiveram a menor ideia do que era a glorificação.
Deus se multiplica e se divide a si mesmo em Suas energias incriadas indivisamente entre coisas divididas, para que assim Ele esteja presente em ato, ainda que ausente em Natureza, para cada criatura individual, estando presente e ausente ao mesmo tempo e em todo lugar. Este é o mistério fundamental da presença de Deus em Suas criaturas e mostra que os universais não existem em Deus e são, consequentemente, nenhuma parte do estágio de iluminação como na tradição Agostiniana.
O próprio Deus está ao mesmo tempo no céu e no inferno, na recompensa e no castigo. Todos os homens foram criados para verem a Deus incessantemente em Sua glória incriada. Se Deus será para cada homem céu ou inferno, delícia ou castigo, depende da resposta que cada homem dá ao amor de Deus e da transformação do homem de seu estado de egoísmo e egolatria para o amor Divino que não procura realizar os seus próprios fins.
Já que todos os homens verão a Deus, nenhuma religião pode afirmar de si mesma como tendo o poder de enviar as pessoas ou ao céu ou ao inferno. Isto significa que os verdadeiros pais espirituais preparam seus encargos espirituais para que a visão da Glória de Deus seja no paraíso e não no inferno, uma delícia e não um castigo. A proposta principal da Cristandade Ortodoxa então é preparar seus membros para uma experiência que todo ser humano terá mais cedo ou mais tarde.
Enquanto o cérebro é o centro da adaptação humana ao meio ambiente, a faculdade noética no coração é o órgão primário de comunhão com Deus. A queda do homem ou o estado do pecado herdado é esta: a) o fracasso da faculdade noética de suas funções próprias ou sua completa disfuncionalidade; b) sua confusão com as funções do cérebro e do corpo em geral; c) sua resultante escravidão ao meio.  
Cada indivíduo experimenta a falha de suas faculdades noéticas. Pode-se ver porque o entendimento agostiniano da queda do homem como uma culpa herdada pelo pecado de Adão e Eva não é, e não pode ser, aceito pela Tradição Ortodoxa.
Há dois sistemas de memória constituintes dos seres viventes, 1) a memória celular que determina a função e o desenvolvimento do indivíduo com relação a si mesmo; 2) a memória celular cerebral que determina a função do indivíduo em relação ao seu meio ambiente. Somado a isto, a tradição patrística é consciente da existência nos seres humanos de uma memória que não funciona normalmente ou que é sub-funcional alojada no coração, a qual, quando posta em ação pela oração noética, inclui uma memória incessante de Deus e consequentemente a normalização de todas as suas outras relações.
Quando a faculdade noética não está funcionando propriamente, o homem é escravizado pelo medo e pela ansiedade e todas as suas demais relações são essencialmente utilitárias. Assim, a raiz ou causa de todas as relações anormais entre Deus e o homem e entre nós e os homens decaídos é o mal funcionamento da faculdade noética, a qual acabará por usar Deus, seu próximo e a natureza para seu próprio entendimento de segurança e felicidade. O homem fora da glorificação imagina a existência de Deus ou dos deuses como projeções psicológicas de sua necessidade de segurança e felicidade.
Todos os homens possuem a faculdade noética no coração o que também quer dizer que todos estão em relação direta com Deus em vários níveis, dependendo do quanto a personalidade individual resiste à escravidão física e social que o rodeia e dependendo do quanto ele permite a si mesmo ser dirigido por Deus. Todo indivíduo é sustentando pela glória incriada de Deus e é uma morada para a Glória incriada de Deus e é a morada desta criação não criada e da luz mantenedora , que é chamada Lei, Poder, Graça, etc de Deus. A reação humana a esta relação direta ou comunhão com Deus pode variar desde o endurecimento do coração (ou seja, o esmorecimento da faísca da Graça) até a experiência de glorificação alcançada pelos profetas, apóstolos e santos.
Isto significa que todos os homens são iguais na posse desta faculdade noética, mas não na qualidade ou no grau de função.
É importante se ater à clara distinção entre espiritualidade, que é a faculdade noética primariamente enraizada no coração e a intelectualidade, que é a enraizada no cérebro. Assim:
  1. Uma pessoa com poucas realizações intelectuais pode atingir o mais alto nível de perfeição noética.
  2. Por outro lado, um homem com as mais altas realizações intelectuais pode cair no mais baixo nível da imperfeição noética.
  3. Pode-se também ao mesmo tempo chegar ao mais alto nível das realizações intelectuais e da perfeição noética.
  4. Pode haver uma realização intelectual escassa com endurecimento do coração.  
O papel da Cristandade foi originalmente mais próxima à profissão médica, especialmente no que hoje chamamos de psicólogos e psiquiatras.
O homem tem um mau funcionamento ou um desfuncionamento da faculdade noética no coração, e é a tarefa especialmente do clérigo aplicar a cura por meio da memória incessante de Deus, pela oração incessante ou iluminação.
A preparação para a visão de Deus ocorre em duas etapas: purificação e iluminação da faculdade noética. Sem isto, é impossível para o amor egoísta do homem seja transformado em amor desinteressado. Esta transformação ocorre no mais alto estágio de iluminação chamado teoria, que literalmente significa visão-em, neste caso a visão por meio da incessante e ininterrupta memória de Deus.
Aqueles que permanecem egoístas e autocentrados com o coração endurecido, fechado ao amor de Deus, não verão a Glória de Deus nesta vida. Porém a verão eventualmente, como um fogo eterno e que não se consome e uma escuridão eterna.  
No estado de teoria a faculdade noética é liberada da escravidão do intelecto, das paixões, do que o circunda e reza incessantemente. Ela é influenciada somente pela memória de Deus. Assim a oração noética funciona simultaneamente com as atividades normais cotidianas. Quando a faculdade noética chega a este estado que o homem se torna templo de Deus.
São Basílio, o Grande, escreve que “a morada de Deus é isto – ter Deus estabelecido em nós mesmos na memória. Ele se torna templo de Deus quando a continuidade da memória não é interrompida pelos cuidados terrenos, nem a faculdade noética sacudida por sofrimentos inesperados, mas escapando de todas estas coisas (faculdade noética) o amigo de Deus se retira para estar a sós com Deus, eliminando as paixões que colocam em risco a continência e permanecendo nas práticas que conduzem à virtude”. (4)
São Gregório o teólogo aponta que “devemos nos lembrar de Deus mais frequentemente do que respiramos; e basta dizer isto, não devemos fazer mais nada ... ou, para usar as palavras de Moisés, se  um homem adormece, ou se levanta, ou caminha por uma estrada, ou o que quer que esteja fazendo, ele deve ter isto impresso em sua memória para a sua purificação”. (5)
São Gregório insiste que teologizar é “permitido apenas àqueles que passaram em seus exames e alcançaram a theoria, e foram purificados na alma e no corpo, ou pelo menos estão sendo purificados”. (6)
Este estado de theoria é duplo e tem dois estágios: a) a memória incessante de Deus e b) a glorificação, um estado posterior, um dom que Deus dá aos Seus amigos de acordo com suas necessidades e as necessidades dos demais. Durante este último estágio de glorificação, a oração noética incessante é interrompida já que ela é substituída pela visão da Glória de Deus em Cristo. As funções normais do corpo, como dormir, comer, beber e a digestão são suspensas. Em outros casos, o intelecto e o corpo funcionam normalmente. Não se perde a consciência, como ocorre na experiência mística extática de Cristãos Não-Ortodoxos e das religiões pagãs. Ele está plenamente consciente e conversando com todos ao seu redor, exceto que ele vê tudo e todos saturados pela glória incriada de Deus, que não é nem luz ou trevas, nenhum lugar e todos os lugares ao mesmo tempo. Este estado pode ser curto, médio ou de longa duração. No caso de Moisés durou quarenta dias e quarenta noites. A face daqueles neste estado de glorificação dão uma imposição radiante, como a face de Moisés, que após a sua morte, teve seu corpo tornado uma relíquia sagrada. Estas relíquias produzem um estranho cheiro doce que pode se tornar forte. Em muitos casos, estas relíquias permanecem intactas em bom estado de preservação, sem que sejam embalsamadas. Eles são completamente rígidos da cabeça aos pés, luminosos, secos, e com nenhum sinal de putrefação.
Não há critério metafísico para distinguir as boas das más pessoas. É muito mais correto distinguir entre os muito sadios e os doentes. Os doentes são aqueles cuja faculdade noética está sendo limpa e iluminada.
Os níveis estão incorporados nos quatro Evangelhos e na vida Litúrgica da Igreja. Os Evangelhos de Marcos, Mateus e Lucas refletem o catecismo pré-batismal para a limpeza do coração, e o Evangelho de João reflete o batismo pós batismal que conduz à teoria pelo sentido do estágio da Iluminação. Cristo mesmo é o Pai Espiritual que conduz aos apóstolos, como ele fizeram com Moisés e os profetas, para glorificar através da purificação e da iluminação. (7)
Pode-se sumarizar estes três estágios de perfeição como: a) aqueles escravos que cumprem os mandamentos pelo temor de ver a Deus como um fogo que os consome; b) o negociante cuja motivação é a recompensa de ver a Deus como Glória; c) aqueles amigos de Deus cuja faculdade noética está completamente livre, cujo amor tornou-se desinteressado e por causa disso, está desejando ser condenado pela salvação de seu próximo, como nos casos de Moisés e Paulo.


O surgimento do Monasticismo, sua contribuição e declínio
Theoreticamente, o clero é supostamente eleito entre os fiéis que alcançaram a iluminação ou glorificação. O esquema histórico do processo mostra que se tornou habitual eleger bispos que não haviam alcançado a experiência espiritual dos quais os dogmas são expressão verbal, algo descrito por São Simão o Novo Teólogo. (d. 1042) , reconhecido como um dos maiores pais da Igreja. Isto revela que esta análise histórica é parte de uma auto-compreensão da Igreja ortodoxa.
Os três estágios de perfeição são 3 etapas do entendimento espiritual e, a seu tempo, existiu em cada comunidade. Isso é comparável a ter cada comunidade estudantes universitários, estudantes graduados e professores. Neste último caso, seriam os líderes que estão em níveis mais altos de iluminação. Porém, é possível que os líderes religiosos possam não ser espiritualmente no mesmo nível que os estudantes.
O resultado do colapso entre o clero na vida espiritual e o entendimento até agora descrito, foi o nascimento de um movimento ascético paralelo às comunidades episcopais. Isto transformou o movimento monástico, que preservara a tradição profética e apostólica da espiritualidade e da teologia. Quando prevaleceu o costume de que os bispos fossem recrutados entre os monges, a antiga tradição de bispos como mestres em espiritualidade e teologia foi geralmente restaurada, devido à poderosa influência de São Simão, Novo Teólogo. Esta restauração era tão forte que deu às Igrejas Romanas Orientais o vigor não apenas para sobreviver à dissolução e o desaparecimento do Império como também para manter a espiritualidade e a teologia dos Quatro Patriarcados Romanos em níveis surpreendentemente altos durante a ocupação do Império Otomano, até a chamada Revolução “Grega”.
Sob a influência dos cidadãos franceses e do agente Adamantios Koraes, oficialmente reconhecido pela Terceira Assembléia como o Pai do Novo Helenismo, o novo estado Grego decidiu que a Igreja da Grécia devia seguir o exemplo da Ortodoxia Russa, porque ela estava em estado avançado de Ocidentalização, especialmente desde o tempo de Pedro o Grande (1672-1725). O Estado Grego fundou a Igreja Grega, e literalmente forçou-a a se separar do Patriarcado Ecumênico de Constantinopla, nova Roma, e ao mesmo tempo declarou guerra ao monasticismo. A inacreditável ignorância de Adamantios Koraes transformou a ideologia sob a qual a nova espiritualidade e a nova teologia da Igreja Grega estava fundada.
A Igreja Russa deu um golpe contra a espiritualidade Ortodoxa e a sua teologia ao condenar Máximo do Monte Atos e os anciãos Trans-Volgas no século XVI. Em outras palavras, a Igreja Russa, tornou-se como uma detentora de livros sobre astronomia, biologia e medicina, mas deu um fim aos telescópios, microscópios e os cientistas que os usavam.  Isto tornou a Igreja presa da Ocidentalização sob Pedro, o Grande.
Uma das fascinantes peculiaridades da História é que enquanto o estado Grego estava se livrando da teologia e espiritualidade baseadas na oração noética, esta mesma tradição estava sendo reintroduzida na Rússia por meio das crianças espirituais de Paisios Velitchkovsky da Moldávia que faleceu em 1817.  
Foi extremamente feliz para a Ortodoxia que ao mesmo tempo que os seguidores de Koraes estivessem no poder e que o estado Grego não se estendesse ao Monte Atos com seus muitos mosteiros que foram deixados em paz pelo Império Otomano. De outro modo, as imbecilidades de Adamantios Koraes teriam tido efeito mais destrutivos sob a Ortodoxia Romana, agora chamada de Ortodoxia Bizantina, por causa deste mesmo Adamantios Koraes que se comprometeu a convencer os habitantes da Grécia Antiga que eles não eram mesmo Romanos, mas exclusivamente Gregos, o que supostamente os fez esquecerem-se de sua própria identidade nacional. A visão de Adamantios Koraes foi substituir a tradição de espiritualidade e teologia patrística, e mesmo da nacionalidade Romana, pela filosofia Grega e o nacionalismo como bases da teologia e da filosofia política. Não é talvez acidental que a França Napoleônica tenha revivido tais políticas pertencentes ao Romanos Orientais que são similares às de Carlos Magno, como descritas na Parte 1. Napoleão era, acima de tudo, descendente da nobreza franca da Toscana, estabelecida lá desde os tempos de Carlos Magno.  
Agora esta visão está morta, sepultada pelos avanços posteriores nas ciências modernas e no forte reavivamento da teologia patrística e sua espiritualidade com os Romanos ou denominados Bizantinos.


Espiritualidade Ortodoxa, a mesma no Leste e no Oeste
De modo a termos um quadro claro do que isto significou em termos do diálogo atual, temos apenas que rememorar que a teologia e a espiritualidade dos Cristãos Romanos era absolutamente a mesma no Leste e no Oeste, se escrita em latim ou grego, com exceção de Agostinho.
As diferenças teológicas entre os francos carolíngios e os ortodoxos romanos são claramente visíveis nas diferenças entre Agostinho e Santo Ambrósio, que é comumente apresentado como o professor de Agostinho. Porém, não há evidências de que tenham existido relações fortes entre eles, até porque suas teologias apontam para sentidos contrários. Nós apontamos isso com alguns detalhes em outro lugar.


Porém, nós voltaremos nossa atenção para Gregório de Tours, que nos deu claro testemunho de que durante a Regra Franca Merovíngia, a espiritualidade ortodoxa e a teologia estavam florescendo na França. Ao mesmo tempo, eles não foram bem compreendidos pela nova classe de bispos administradores criada pelos reis francos. (Deixamos d elado São João Cassiano, já que ele é pré-franco e sua identificação com a espiritualidade oriental e sua teologia são inquestionáveis).
Gregório de Tours foi um grande admirador da espiritualidade e da teologia descritas nesta palestra. Ele reconheceu e expressou seu mais alto reconhecimento a São Basílio o Grande e a São João Cassiano de Marseille (uma vez diácono de São João Crisóstomo) como os guias do monasticismo na Gália. Em seus muitos escritos, Gregório de Tours nunca menciona Agostinho. O entendimento de Gregório da espiritualidade e teologia de São Basílio e de São João Cassiano é muito limitado e colorido com muitos erros, por vezes, hilários.
Gregório relata que no tesouro da Igreja de São Martinho, ele encontrou as relíquias dos mártires Agaune, membros das legiões tebanas enviadas a Gália em 287  para esmagar uma revolta. Gregório escreve que as “relíquias mesmas estavam em terrível estado de putrefação” (8) É claro que Gregório não sabia como reconhecer tais sagradas relíquias. Cadáveres mesmo em estado de putrefação leve não são relíquias santas, menos ainda em estado de terrível putrefação.
Gregório termina sua História dos Francos com os milagres e a morte de São Aredius abade de Limoges. Ele escreve que, “um dia quando o clero estava cantando salmos na Catedral, uma pomba voou para baixo do teto, flutuou suavemente ao redor de Aredius e depois pousou em sua cabeça. Isto foi, em minha opinião, um claro sinal de que ele estava cheio da graça do Espírito Santo. Ele ficou embaraçado com o que aconteceu e tentou afastar a pomba. Ela voou por um tempo e depois se instalou novamente, primeiro em sua cabeça e depois em seu ombro. Isso não aconteceu só na Catedral, mas quando Aredius estava na cela do bispo a pomba o acompanhou. Isto foi repetido dia após dia...” (9)
Aredius claramente tinha alcançado o estado de glorificação de longa duração. Porém, a ignorância de Gregório desta tradição levou-o a confundir e a substituir o símbolo linguístico da pomba usada para descrever esta experiência, com um pássaro real. A tentativa de afastar a pomba no entendimento de Gregório é o teste da visão de Aredius, que queria se certificar de não ser nem uma alucinação, nem algo demoníaco. Que a pomba se foi, e depois retornou, e então permaneceu nele dia após dia significa que ele estava em estado de glória, primeiro de curta duração e depois de longa duração. Que ele seguiu com seus afazeres de costume neste estado, que tal estado era perceptível àqueles que o rodeavam, os quais estavam em estado de iluminação, era também evidência deste estado de glória.
O mau entendimento de Gregório também é visível em sua descrição da vida de Patroklos, o Recluso. Gregório escreve que sua “dieta era pão embebido em água e polvilhado com sal. Que seus olhos nunca fechavam no sono. Ele rezava incessantemente, ou se ele parava de rezar por algum momento, ele gastava este tempo para ler ou escrever”. (10)
Gregório acreditava que para se rezar incessantemente, alguém teria que ficar indefinidamente acordado. Também desde que Patroklos era conhecido por gastar seu tempo lendo ou escrevendo, isto significava para Gregório que ele havia parado de rezar. Gregório estava inconsciente de que a oração incessante continua sem intervalo, estando em vigília, estando acordado, lendo, escrevendo, caminhando, falando, trabalhando, etc.
Em adição à afirmação de Gregório de que os “olhos de Pátroklos nunca fechavam” seria um milagre inédito. Quando Pátroklos estava em estado de glorificação, ele não apenas não dormia, como não bebia água ou comia pão. Mas ele não estava em tal estado de vida de forma ininterrupta. Durante este estado ele parou para rezar. Quando ele não estava em estado de glória, ele tanto dormiu três ou quatro horas por dia e rezou sem qualquer interrupção. Porém, quando estes desentendimentos estavam sendo recordados, havia muitos bispos na França que entendiam ainda menos do que Gregório.
Isto pode ser visto no caso onde certos bispos ordenaram o Lombardo asceta Vulfolaic a descer de sua coluna, afirmando que “não é certo o que estás a fazer. Tal pessoa esquisita não pode nunca ser comparada a São Simeão Estilita de Antioquia. O clima da região torna impossível que continueis a se atormentar deste jeito” (11) Evidentemente que a vida de São Daniel o Estilita de Constantinopla era ainda desconhecida na França.
Enquanto se está no estado de oração noética ou glória, quando se avança ou se retrocede entre estes dois estágios, obtém-se as forças físicas para que se resista aos efeitos do meio ambiente. Isto não significa auto-tormento ou tentativa de se apaziguar com Deus. A oração noética é também a chave para o entendimento do poder espiritual pelo qual os cristãos ortodoxos perseveram em seu martírio, e também porque aqueles que renunciaram a Cristo sob tortura fossem considerados em estado de queda na Graça, i.e, de iluminação ou oração noética.
O que é importante para Gregório é que ele apresenta Vulfolaic dizendo “agora ele é considerado um pecador por não obedecer aos bispos, ... eu nunca ousaria me atar a uFma coluna... pois isto seria desobedecer aos bispos” (12)
Temos aqui uma importante distorção do significado da obediência. É claro que nem Gregório, nem seus colegas sabiam o que Vulfolaic estava fazendo. Porém, o que eles sabiam é que ele tinha de assegurar a obediência dos fiéis de modo a preservar, tanto quanto possível, a lei e a ordem de seu mestre, o Rei Franco, que os nomeou. Logo, a desobediência a um bispo é um pecado de importância relevante.
A efetividade de bispos como oficiais da lei também foi reforçada pela distinção pagã entre céu e inferno que encontramos em Agostinho e Gregório de Tours. Ambos estão inconscientes de que o clero supostamente deve preparar o povo para a visão de Deus, que será experimentado por todos ou como um céu ou como um fogo ardente. Esta inconsciência é unida à mudança peculiar a tornar o homem um Deus. Para Gregório, Deus deve ser satisfeito pela obediência ao clero e pela participação nos sacramentos como condição para que o homem entre no paraíso.
A posição de Agostinho foi mais consistente com a ideia de que Deus predestinou alguns a ir ao céu e outros a permanecer no inferno. Por conta da culpa herdada de Adão e Eva, todos são dignos do inferno, assim que aqueles que escolherem o céu não possuem qualquer mérito em tal escolha já que seguem a escolha divina, que é consequentemente supostamente livre e incondicionada. Estas ideias de Agostinho seriam quase que hilárias se não fosse o fato de que milhões de europeus e americanos as tenha abraçado, e muitos ainda o façam.


Critério para uma nova União
O critério para reunir a Cristandade dividida não pode ser diferente daqueles usados para uma associação de cientistas. Os astrônomos ficariam chocados se tivessem que se associar a astrólogos. Membros de uma moderna associação médica ficariam chocados diante da suposição de terem de se reunir com aqueles que possuem curiosidades médicas ou com médicos tribais. Do mesmo modo, os Pais ficariam chocados com a ideia de uma união entre Ortodoxos e supersticiosos religiosos que não tem a mínima ideia do que é uma relíquia sagrada. Rejeitar este assunto com a desculpa de que tal teologia é apenas para monges, é o mesmo que afirmar que a cura do câncer só serve para os médicos.
A correta interação entre a Teologia e a Sociedade não é muito diversa da interação entre a ciência e a sociedade. Deste modo, a questão da estrutura organizacional ou administrativa, como nas ciências, é resolvida mediante o critério da eficácia da teologia em produzir os resultados que justifiquem a sua existência.
“Bem aventurados os puros de coração porque verão a Deus”.



Notas:
[ 1 ] As partes Europeias e do Oriente Médio que faziam parte do Império Romano foram esculpidas em áreas que, entre outros elementos linguísticos, continham  duas influências, a Celta e a Grega, que correram em paralelo uma para cada lado, para o Atlântico e o Oriente Médio. O lado Celta estava ao norte do lado Grego, exceto na Ásia Menor, onde a Galatia teve a banda Grega para o leste, o norte e o sul. O próprio norte da Itália era parte de um lado Celta e o Sul da Itália de um lado Grego, chamado aqui de Magna Grécia, que no Ocidente cobria o Sul da Espanha, a Gália e outras ilhas Mediterrâneas. Deve ser dada a devida consideração de que tanto os lados Celta e Grego fossem o oeste e o leste da Itália Romana. Os Romanos primeiro assumiram as partes Gregas e Celta e depois os povos falantes destas duas bandas. A parte Celta era quase toda ela completamente latinizada, e a parte Grega, não apenas permaneceu intacta, mas mesmo se expandiu devido à política romana de completar a Helenização das províncias orientais iniciada pelos macedônios. As razões de porque o lado Celta, mas não o Grego, tenha sido latinizado era que os Romanos eram eles próprios bilíngues de fato e em sentimento, já que nos tempos de sua expansão explosiva falavam tanto o Grego quanto o Latim, com uma forte preferência pelo último. Assim, se alguém está obrigado a falar tanto a língua das partes Ocidental quanto Oriental do Império, como o Latim ao Norte e o Grego ao sul da România Europeia, isto não é certamente a mesma coisa que chamar os Ocidentais de Latinos e os Orientais de Gregos, o mito franco, fabricado por razões que já aventamos na parte 1, mito que sobrevive até hoje. De fato, os Galatianos da Ásia Menor estavam ainda no quarto século falando o mesmo dialeto como os Treveri da província da Bélgica, na diocese romana da Gália. (Albert Grenier, Les Galois [Paris, 1970], p. 115.) A divisão entre o Latim Ocidental e o Grego Oriental é um mito franco, ainda hoje testemunhado por alguns dos 25 milhões de Romanos dos Bálcãs, que falam dialetos românicos e pelos falantes do Grego habitantes dos Balcãs e do Oriente Médio, que se chamavam de Romanos. Deve ser notado que é bem possível que os Galatianos da Ásia Menor falassem a mesma língua que seus ancestrais de Wallons na área dos Ardenas quando o legado do Papa João XV, o abade Leão, estava em Mouzon pronunciando a condenação de Gerbert d’Aurillac em 995.  
2 ] Para maior detalhe desta questão pode-se consultar meus estudos: "Critical Examination of the Applications of Theology," Proces - Verbaux du Deuxieme Congres de Theologie Orthodoxe. (Athens, 1978), pp. 413-41, and the various works quoted therein.
3 ] Matthew 5.8.
4 ] Epistle 2.
5 ] Theological Oration 1.5.
6 ] Ibid. 1.3
7 ] Sobre as relações entre o Evangelho de João e os Evangelhos Sinóticos ver o meu estudo "Justin Martyr and the Fourth Gospel," The Greek Orthodox Theological Review, 4 (1958-59), pp. 115-39.
8 ] The History of the Franks 10.31, trans. Lewis Thorpe (London, 1977), p. 601.
9 ] Ibid. 10.20, p. 589.
10 ] Ibid. 5.10, p. 265
11 ] Ibid.8.15, p. 447.
12 ] Ibid.


Tradução:  Rochelle Cysne

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