quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A Teoria do Conhecimento de São Isaque, o Sírio (São Justino Popovich) [Parte 2/2]

O Mistério do Conhecimento

A cura e purificação dos órgãos do conhecimento humano é provocada pela ação comum de Deus e do homem - pela graça de Deus e pela vontade do homem. No longo caminho de purificação e cura, o próprio conhecimento se torna mais puro e saudável. Em cada etapa do seu desenvolvimento, o conhecimento depende da estrutura ontológica e do estado ético de seus órgãos. Purificados e curados pelo esforço de um homem nas virtudes evangélicas, os próprios órgãos do conhecimento adquirem santidade e pureza. Um coração puro e mente pura geram conhecimento puro. Os órgãos do conhecimento, quando purificados, curados e voltados para Deus, dão um conhecimento puro e saudável de Deus e, quando voltados para a criação, dão um conhecimento puro e saudável da criação.

De acordo com o ensinamento de São Isaque, o Sírio, há dois tipos de conhecimento: aquele que precede a fé e aquele que nasce da fé. O primeiro é o conhecimento natural, e envolve o discernimento do bem e do mal. O último é o conhecimento espiritual, e é "a percepção dos mistérios", "a percepção do que está escondido", "a contemplação do invisível". 

Há também dois tipos de fé: a primeira vem através da audição e é confirmada e comprovada pela segunda, "a fé da contemplação", "a fé que se baseia no que foi visto". Para adquirir conhecimento espiritual, o homem deve primeiro libertar-se do conhecimento natural. Este é o trabalho da fé. É pela ascese da fé que vem ao homem o "poder desconhecido" que o torna capaz do conhecimento espiritual. Se o homem se deixa ser apanhado na teia do conhecimento natural, torna-se mais difícil de se libertar dele do que remover pesadas correntes, e sua vida é vivida "contra a borda de uma espada". 

Quando um homem começa a seguir o caminho da fé, ele deve deixar de lado todo seus velhos métodos de conhecimento, pois a fé tem seus próprios métodos. Então o conhecimento natural cessa e o conhecimento espiritual toma seu lugar. O conhecimento natural é contrário à fé, pois a fé e tudo o que vem da fé, é "a destruição das leis do conhecimento" - embora não do conhecimento espiritual, mas do conhecimento natural.

A principal característica do conhecimento natural é a sua abordagem por meio do exame e da experimentação. Isso em si mesmo é "um sinal de incerteza sobre a verdade". A fé, ao contrário, segue um modo de pensamento puro e simples, que está longe de todo exame enganador e metódico. Esses dois caminhos levam para direções opostas. A casa da fé é "pensamento como de criança e simplicidade de coração", pois é dito: Glorifique a Deus "em simplicidade de coração" (Col. 3:22), e: " se não vos converterdes e não vos fizerdes como meninos, de modo algum entrareis no reino dos céus"(Mateus 18: 3). O conhecimento natural se opõe à simplicidade do coração e à simplicidade do pensamento. Este conhecimento funciona apenas dentro dos limites da natureza,  “mas a fé tem o seu próprio caminho para além da natureza.”

Quanto mais um homem se dedica aos caminhos do conhecimento natural, mais ele é agarrado pelo medo e menos pode se livrar dele. Mas se ele segue a fé, ele é imediatamente libertado e "como filho de Deus, tem o poder de fazer uso livre de todas as coisas," pois para a fé é dado o poder de "ser como Deus ao fazer uma nova criação". Assim, está escrito: "Tu suplicaste, e todas as coisas são apresentadas diante de ti" (cf. Job 23:13 LXX). A fé geralmente pode "gerar todas as coisas do nada", enquanto o conhecimento não pode fazer nada "sem a ajuda da matéria". O conhecimento não tem poder sobre a natureza, mas a fé tem tal poder. Armados com fé, os homens entraram no fogo e apagaram as chamas, sendo intocados por elas. Outros caminharam sobre as águas como em terra firme. Todas essas coisas estão "além da natureza"; elas vão contra os modos do conhecimento natural e revelam a vaidade de tais modos. A fé "move-se acima da natureza". Os caminhos do conhecimento natural governaram o mundo por mais de cinco mil anos, e o homem não conseguiu "levantar o olhar da terra e entender o poder de seu Criador" até que "nossa fé surgiu e nos livrou das sombras das obras deste mundo" e de uma mente fragmentada. Aquele que tem fé "não faltará nada" e, quando possui nada, "ele possui todas as coisas pela fé", como está escrito: "Tudo o que pedirdes em oração, crendo, receberás" (Mateus 21:22); e também: "O Senhor está próximo; não se preocupe com nada "(Filipenses 4: 5-6) .

As leis naturais não existem para a fé. São Isaque enfatiza decisivamente: "Tudo é possível para aquele que crê" (Marcos 9:23), pois com Deus nada é impossível. O conhecimento natural restringe os discípulos de "aproximar-se do que é estranho à natureza," para aquilo que está acima da natureza.

Este conhecimento natural a que se refere São Isaque aparece na filosofia moderna sob três títulos: realismo baseado nos sentidos, crítica epistemológica e monismo. Essas três abordagens limitam o poder, a realidade, a força, o valor, os critérios e a extensão do conhecimento dentro dos limites da natureza visível - na medida em que estes coincidem com os limites dos sentidos humanos como órgãos do conhecimento. Pisar além dos limites da natureza e entrar no reino do sobrenatural é algo considerado contra a natureza, como algo irracional e impossível, proibido aos seguidores dos três caminhos filosóficos em questão. Diretamente ou indiretamente, o homem está limitado aos seus sentidos e não se atreve a passar além deles.

No entanto, esse conhecimento natural, de acordo com São Isaque, não é culpado. Não deve ser rejeitado. Acontece apenas que a fé é maior. Este conhecimento só deve ser condenado na medida em que, pelos diferentes meios que ele usa, ele se volta contra a fé. Mas quando esse conhecimento "é unido à fé, tornando-se um com ela, se vestindo em seus pensamentos ardentes", quando "adquire asas da despaixão", então, usando outros meios do que os naturais, eleva-se da terra para a "esfera do Criador", para o sobrenatural. Este conhecimento é então realizado pela fé e recebe o poder de "subir às alturas", para perceber Aquele que está além de toda percepção e "ver o brilho que é incompreensível para a mente e o conhecimento dos seres criados". O conhecimento é o nível a partir do qual um homem se eleva às alturas da fé. Quando alcança estas alturas, ele não mais precisará, pois está escrito: "Porque em parte conhecemos, mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado" (1 Coríntios 13:9,10). A fé nos revela agora a verdade da perfeição, como se estivesse diante de nossos olhos. É pela fé que aprendemos o que está além da nossa compreensão - pela fé e não pela pesquisa e pelo poder do conhecimento.

As obras da retidão são: o jejum, a esmola, a vigília, a pureza do corpo, o amor ao próximo, a humildade do coração, o perdão dos pecados, a reflexão sobre as coisas celestiais, o estudo dos mistérios da Sagrada Escritura, o engajamento da mente em as obras mais elevadas - estas e todas as outras virtudes são passos pelos quais a alma se eleva aos mais altos domínios da fé.

Existem três modos espirituais em que o conhecimento aumenta e diminui, e pelo qual se move e muda. Esses são o corpo, a alma e o espírito. Embora o conhecimento seja um todo único por sua natureza, ele muda o modo e a forma de sua ação em relação a cada um desses três. "O conhecimento é um dom de Deus para a natureza dos seres racionais, dado a eles no início, na sua criação. É naturalmente simples e indiviso, como a luz do sol, mas em função do corpo, da alma e do espírito, ele muda e se divide".

No seu nível mais inferior, o conhecimento "segue os desejos da carne", preocupando-se com riquezas, vaidade, vestimentas, repouso do corpo e busca de sabedoria racional. Este conhecimento inventa as artes e as ciências e tudo o que adorna o corpo neste mundo visível. Mas, em tudo isso, esse conhecimento é contrário à fé. É conhecido como "mero conhecimento, pois é privado de todo o pensamento do divino e, por seu caráter carnal, traz à mente uma fraqueza irracional, porque nela a mente é superada pelo corpo e toda a sua preocupação é para a coisas desse mundo". É pomposo e cheio de orgulho, pois remete toda boa obra a si mesmo e não a Deus. O que o apóstolo disse, "conhecimento traz orgulho" (I Cor. 8: 1), obviamente foi dito sobre esse conhecimento, que não está ligado à fé e à esperança em Deus e não ao conhecimento verdadeiro. O verdadeiro conhecimento espiritual, ligado à humildade, traz à perfeição a alma daqueles que o adquirem, como se vê em Moisés, Davi, Isaías, Pedro, Paulo e todos aqueles que, dentro dos limites da natureza humana, foram considerados dignos deste conhecimento perfeito.

"Com eles, o conhecimento sempre está imerso em refletir coisas estranhas a este mundo, em revelações divinas e na contemplação elevada de coisas espirituais e mistérios inefáveis. Em seus olhos, suas próprias almas são apenas pó e cinzas." O conhecimento que vem da carne é criticado pelos cristãos, que o vêem em oposição não somente à fé, mas a qualquer ato de virtude.

Não é difícil ver que, neste primeiro e grau mais inferior de conhecimento do qual o Santo Isaque fala, está incluído praticamente toda a filosofia européia, do realismo ingénuo ao idealismo - e toda a ciência do atomismo de Democrates à relatividade de Einstein.

Do primeiro e mais inferior grau de conhecimento, o homem passa para o segundo, quando ele começa tanto no corpo quanto na alma a praticar as virtudes: jejum, oração, esmola, a leitura da Sagrada Escritura, a luta com as paixões e assim por diante . Todo bom trabalho, toda boa disposição da alma neste segundo grau de conhecimento, é iniciado e realizado pelo Espírito Santo através do funcionamento desse conhecimento particular. Ao coração é mostrado os caminhos que levam à fé, mesmo que esse conhecimento permaneça "corporal e composto".

O terceiro grau de conhecimento é o da perfeição. "Quando o conhecimento eleva-se acima da terra e do cuidado com as coisas terrenas e começa a examinar seus próprios pensamentos interiores e ocultos, desprezando aqueles dos quais o mal das paixões brotam e se eleva para seguir o caminho da fé no que concerne a vida por vir... e na busca de mistérios ocultos - então a fé toma esse conhecimento em si mesma e absorve-o, retornando e dando à luz desde o início, de modo a se tornar "desde o início", inteiramente espírito". Então, pode "tomar asas e voar para o reino dos espíritos incorpóreos e aprofundar as profundezas do oceano insondável, ponderando sobre as coisas divinas e maravilhosas que regem a natureza dos seres espirituais e físicos, penetrando os mistérios espirituais que só podem ser apreendidos por uma mente simples e flexível. Em seguida, os sentidos internos despertam para a obra do espírito nas coisas que pertencem a esse outro reino, imortal e incorruptível. Este conhecimento, de forma oculta, aqui neste mundo, já recebeu ressurreição espiritual para dar testemunho verdadeiro da renovação de todas as coisas".

Estes, de acordo com São Isaque, são os três graus de conhecimento com que toda a vida do homem está ligada em corpo, alma e espírito. A partir do momento em que ele "começa a discernir entre o bem e o mal até o momento de sua saída deste mundo", o conhecimento da alma é composto de um ou todos esses três graus.

O primeiro grau de conhecimento "esfria o ardor da alma por empreendimentos no caminho de Deus". O segundo "re-acende para o caminho rápido que leva à fé". O terceiro é um "descanso do trabalho", quando a mente "regojiza nos mistérios da vida por vir ". "Mas, como a natureza não pode, ainda, ascender completamente ao nível da imortalidade e superar o peso da carne e se aperfeiçoar no conhecimento espiritual, nem mesmo esse terceiro grau de conhecimento é capaz de se mover para a perfeição total, de modo a viver na mundo da morte e ainda deixa para trás a natureza completamente carnal ". Enquanto o homem está na carne, portanto, ele passa de um grau de conhecimento para outro. Ele tem a ajuda da graça, mas é impedido pelos demônios, "porque ele não é totalmente livre neste mundo imperfeito." Todo trabalho do conhecimento consiste em "esforço e prática constante", mas o trabalho de fé "não consiste em atos", mas em pensamentos espirituais e na  pureza de alma, e isso está acima dos sentidos. Pois a fé é mais sutil que o conhecimento, assim como o conhecimento é mais sutil do que os sentidos. Todos os santos que alcançaram tal vida "habitam, por fé, nas delícias de uma vida acima da natureza". Essa fé nasce na alma através da luz da graça que, "pelo testemunho da mente, ampara o coração que pode estar incerto em esperança - numa esperança que está longe de qualquer presunção". Esta fé tem "olhos espirituais" que percebem "os mistérios escondidos na alma, riquezas escondidas que estão ocultas dos olhos dos filhos da carne", mas são reveladas pelo Espírito Santo, que é recebido pelos discípulos de Cristo (cf. João 14: 15-17). O Espírito Santo é "o poder santo" que permanece dentro do homem de Cristo, preservando e defendendo sua alma e corpo do mal. Este poder invisível é percebido com os olhos da fé por aqueles cujas mentes estão iluminadas e santificadas. É sabido pelos santos "através da experiência".

Para explicar ainda mais claramente o mistério do conhecimento, São Isaque apresenta mais definições de conhecimento e fé. "O conhecimento que se preocupa com o visível e o sensual é chamado de natural; o conhecimento que se preocupa com o espiritual e o incorpóreo é chamado de espiritual, pois recebe sua percepção através do espírito e não através dos sentidos. O conhecimento que vem pelo poder divino, no entanto, é conhecido como sobrenatural. É incognoscível e é superior ao conhecimento." "A alma não recebe essa contemplação da matéria que está fora dela", como é o caso dos dois primeiros tipos de conhecimento, "mas vem inesperadamente por si só como um dom imaterial contido dentro de si, de acordo com as palavras de Cristo: 'O reino de Deus está dentro de vós' (Lucas 17:21). Não há razão para aguardar seu aparecimento em alguma forma externa, pois não vem 'com observação' (Lucas 17:20)".

O primeiro conhecimento vem "do estudo contínuo e do desejo de aprender. O segundo vem de uma maneira correta de vida e uma fé claramente mantida. O terceiro vem somente da fé, pois nela o conhecimento é extinto, a atividade cessa, e os sentidos tornam-se supérfluos." Pois os mistérios do Espírito, "que estão além do conhecimento e não são apreendidos nem pelos sentidos corporais nem pelos poderes racionais da mente, Deus nos deu uma fé pela qual só sabemos que esses mistérios existem". O Salvador chama a chegada do Consolador "os dons da revelação dos mistérios do Espírito" (ver João 14:16, 26), e, portanto, vê-se que a perfeição do conhecimento espiritual consiste "no recebimento do Espírito, assim ocorreu com os apóstolos." "A fé é a porta de entrada para os mistérios. Assim como os olhos corporais vêem as coisas materiais, a fé vê com os olhos espirituais o que está escondido." Quando o homem atravessa o portão da fé, Deus o leva "aos mistérios espirituais e abre o mar da fé ao seu entendimento".

Todas as virtudes têm um papel a desempenhar neste conhecimento espiritual, pois é fruto da prática das virtudes.A fé "engendra o temor de Deus" e, a partir desse temor de Deus, segue o arrependimento e a prática das virtudes, que dá origem ao conhecimento espiritual. Este conhecimento, "vindo de uma longa experiência e prática das virtudes, é agradável" e dá ao homem um grande poder. A primeira e principal base do conhecimento espiritual é uma alma saudável, um órgão de conhecimento saudável. "O conhecimento é o fruto de uma alma saudável", enquanto uma alma saudável é o resultado de uma longa prática das virtudes evangélicas. Os que "tem a alma saudável" são os perfeitos, e é para eles que o conhecimento é dado.

É muito difícil, e muitas vezes impossível, expressar em palavras o mistério e a natureza do conhecimento. No reino do pensamento humano, não existe uma definição pronta que possa explicá-lo completamente. São Isaque, portanto, dá muitas definições diferentes de conhecimento. Ele é continuamente ocupado neste assunto, e o problema é como um ponto de interrogação incerto diante dos olhos deste santo asceta. O santo apresenta as respostas de sua experiência rica e abençoada, alcançada através de uma longa e dura ascese. Mas a resposta mais profunda e, na minha opinião, mais exaustiva que o homem pode dar a esta questão é a de São Isaque, sob a forma de um diálogo:

"Pergunta: o que é conhecimento?
"Resposta: A percepção da vida eterna.
"Pergunta: E o que é a vida eterna?
"Resposta: perceber todas as coisas em Deus. Pois o amor vem pela compreensão, e o conhecimento de Deus é governante sobre todos os desejos. Para o coração que recebe esse conhecimento, todo prazer que existe na terra é supérfluo, pois não há nada que possa comparar com o deleite do conhecimento de Deus".

O conhecimento é, portanto, a vitória sobre a morte, a ligação desta vida com a vida imortal e a união do homem com Deus. O próprio ato de conhecimento toca o imortal, pois é pelo conhecimento que o homem ultrapassa os limites do subjetivo e entra no reino do trans-subjetivo. E quando o objeto trans-subjetivo é Deus, o mistério do conhecimento torna-se o mistério dos mistérios e o enigma dos enigmas. Esse conhecimento é um tecido místico tecido no tear da alma pelo homem que está unido com Deus.

Para o conhecimento humano, o problema mais importante é o da verdade. O conhecimento traz em si uma atração irresistível para o mistério infinito, e essa fome de verdade que é instintiva para o conhecimento humano nunca é satisfeita até que a verdade eterna e absoluta se torne a substância do conhecimento humano - até que o conhecimento, em sua própria autopercepção, adquira a percepção de Deus, e em seu auto-conhecimento, vem ao conhecimento de Deus. Mas isso é dado ao homem apenas por Cristo, o Deus-homem, Ele que é a única encarnação e personificação da verdade eterna no mundo das realidades humanas. Quando o homem recebe o Deus-homem em si mesmo como a alma de sua alma e a vida de sua vida, este o homem é constantemente preenchido com o conhecimento da verdade eterna.

O que é verdade? São Isaque responde assim: "A verdade é a percepção das coisas que é dada por Deus". Em outras palavras: a percepção de Deus é a verdade. Se essa percepção existe no homem, ele tem e conhece a verdade. Se ele não tem essa percepção, então a verdade não existe para ele. Tal homem sempre pode estar buscando a verdade, mas nunca a encontrará até chegar à percepção de Deus, onde se encontra tanto a percepção quanto o conhecimento da verdade.

É o homem que restaura e transforma seus órgãos de conhecimento pela prática das virtudes que vem à percepção e ao conhecimento da verdade. Para ele fé e conhecimento, e tudo o que acompanha, são um todo indivisível e orgânico. Eles preenchem e são preenchidos um pelo outro, e cada um confirma e apoia o outro. "A luz da mente dá à luz a fé", diz São Isaque, "e a fé dá à luz a consolação de esperança, enquanto a esperança fortalece o coração. A fé é a iluminação do entendimento. Quando o entendimento é escurecido, a fé se esconde e o medo mantém a influência, cortando a esperança. A fé, que banha o entendimento na luz, liberta o homem do orgulho e da dúvida, e é conhecida como "o conhecimento e a manifestação da verdade".

O conhecimento sagrado vem de uma vida santa, mas o orgulho escurece esse conhecimento sagrado. A luz da verdade aumenta e diminui de acordo com o modo de vida do homem. Terríveis tentações caem sobre aqueles que procuram viver uma vida espiritual. O asceta da fé deve, portanto, passar por grandes sofrimentos e infortúnios para chegar ao conhecimento da verdade.

Uma mente perturbada e pensamentos caóticos são fruto de uma vida desordenada, e estes escurecem a alma. Quando as paixões são expulsas da alma com a ajuda das virtudes, quando "a cortina das paixões é retirada dos olhos de a mente", então o intelecto pode perceber a glória do outro mundo. A alma cresce por meio das virtudes, a mente é confirmada na verdade e torna-se inabalável, "cingido por encontrar e matar todas as paixões". Libertação das paixões é provocada pela crucificação do intelecto e da carne. Isso torna o homem capaz de contemplar Deus. O intelecto é crucificado quando os pensamentos impuros são expulsos dele, e o corpo quando as paixões são desenraizadas. "Um corpo entregue ao prazer não pode ser a morada do conhecimento de Deus".

O verdadeiro conhecimento - "a revelação dos mistérios" - é alcançado por meio das virtudes, e este é "o conhecimento que salva". A característica principal - e a "prova" - deste conhecimento é a humildade. Quando o intelecto "habita no domínio do conhecimento da verdade", então todos os questionamentos cessam, e uma grande calma e paz descem sobre ele. Essa paz mental é chamada de "saúde perfeita". Quando o poder do Espírito Santo entra na alma, a alma "aprende através do Espírito".

Na filosofia de São Isaque, o problema da natureza do conhecimento torna-se um problema ontológico e ético que, em última instância, é visto como o problema da personalidade humana. A natureza e o caráter do conhecimento dependem ontologicamente, moralmente e gnoseologicamente da constituição da pessoa humana, e especialmente da constituição e do estado de seus órgãos de conhecimento. Na pessoa do asceta da fé, o conhecimento, por sua própria natureza, se transforma em contemplação.


Contemplação

Na filosofia dos santos pais, a contemplação tem um significado ontológico, ético e gnoseológico. Significa a concentração da alma na oração, através da ação da graça, nos mistérios que superam nosso entendimento e estão abundantemente presentes não só na Santíssima Trindade, mas na pessoa do próprio homem e em toda a criação de Deus. Na contemplação, a pessoa do asceta da fé vive acima dos sentidos, acima das categorias de tempo e espaço. Ele tem uma consciência vívida dos laços que o vinculam ao mundo superior e é alimentado por revelações que contêm as coisas que "o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao coração do homem" (I Cor.2: 9 ).

São Isaque se esforça para colocar em palavras a sua grande experiência, adquirida através da graça que o levou à contemplação. Na medida em que a linguagem humana permite a compreensão e a tradução das verdades da experiência religiosa, ele procura explicar o mais claramente possível o que é a contemplação. Segundo ele, a contemplação é o senso dos mistérios divinos escondidos nas coisas e nos eventos. A contemplação é encontrada nos melhores trabalhos da mente e em contínua reflexão sobre Deus. Sua morada é a oração incessante, e assim ilumina a parte espiritual da alma, o intelecto.

"Às vezes, a contemplação brota da oração, silenciando a oração dos lábios. Então o homem em oração se torna através da contemplação um corpo sem respiração, fora de si mesmo. Este estado é conhecido como a contemplação da oração." "Nesta contemplação orante existem vários graus e uma diversidade de dons", porque "a mente ainda não passou" para aquele reino onde não há mais oração (onde "a oração não existe"), pois naquele reino há algo maior do que a oração.

Com a ajuda de uma boa vida vivida na graça, o asceta da fé ascende à contemplação. "Para começar, ele se torna confiante na providência de Deus para com os homens e é iluminado pelo amor por seu Criador e se maravilha com o cuidado dele pelos seres racionais que Ele criou. Depois disso, surge nele a doçura de Deus e um amor ardente por Deus em seu coração, um amor que queima as paixões da alma e do corpo". Ele torna-se então "embriagado com o vinho do amor divino ... e seus pensamentos são atraídos para além de si mesmos e seu coração feito cativo por Deus." "Às vezes parece que ele não está no corpo nem mesmo neste mundo. Tal é o começo da contemplação espiritual em um homem - da contemplação e ao mesmo tempo de toda revelação para a mente. "A mente" cresce "com a ajuda da contemplação e se levanta às revelações" que estão além da natureza humana ". Parece-lhe às vezes que ele não está no corpo ou mesmo neste mundo. Tal é o começo da contemplação espiritual em um homem - de contemplação e ao mesmo tempo de toda revelação para a mente." A mente "cresce" com a ajuda da contemplação e se eleva às revelações "que estão além da natureza humana". Em resumo: na contemplação "são trazidos ao homem todas as contemplações divinas e revelações espirituais que os santos recebem neste mundo, e todos os dons e revelações que a própria natureza é capaz de conhecer neste mundo". 

A virtude do entendimento "torna a alma humilde e purifica-a de pensamentos nublados, para que não se perca entre as paixões, avançando para a contemplação". Essa contemplação aproxima a mente da sua natureza primitiva e é chamada de "contemplação imaterial". É uma "virtude espiritual", porque "eleva a alma acima da terra, aproximando-a da contemplação primitiva do Espírito, introduzindo a mente a Deus e a contemplação de Sua inefável glória ... mantendo a mente para além desse mundo e a percepção dele." A vida do Espírito é uma atividade na qual os sentidos não têm parte. Os santos pais escreveram sobre isso: "Assim que os intelectos dos santos alcançam essa vida, a contemplação material e a opacidade da carne recuam e a contemplação espiritual toma seu lugar". 

"As modalidades de oração" são múltiplas, diz São Isaque, mas todas têm um único objetivo: a oração pura. Nas profundezas desta oração pura, encontra-se "um arrebatamento que não é oração, pois tudo o que pode ser chamado de oração cessa, e permanece uma contemplação na qual a mente não consegue orar." "A oração é uma coisa, mas essa contemplação-em-oração é outra, embora uma surge da outra. A oração é a semeadura, e a contemplação a coleta, em que o colhedor fica espantado com a maravilhosa abundância que cresceram dos pequenos grãos que semeou." Neste estado de contemplação, o intelecto passa além de seus próprios limites e entra "naquele outro mundo".

Transformada pela oração e outras práticas ascéticas, a mente se purifica e aprende "a contemplar Deus com os olhos divinos e não humanos".

Aquele que guarda o coração das paixões contempla Deus a cada instante. Aquele que mantém uma vigilância constante sobre sua alma "a cada hora contempla o Senhor". "Aquele que vigia a própria alma a cada hora verá seu coração se alegrar com as revelações. Aquele que obtém a contemplação de seu intelecto dentro de si mesmo contemplará o alvorecer do Espírito. Aquele que se afasta da dispersão de sua mente contemplará o Senhor nos recessos internos do seu coração ... Eis que o céu está dentro de você, se você é puro, você verá os anjos em seu esplendor e, com eles e dentro deles, o próprio Senhor ... A alma do homem justo brilha mais do que o sol e se alegra a cada hora na contemplação das coisas reveladas."

Quando, após a ascese rigorosa do Evangelho, o homem encontra em si o centro divino de seu ser - e encontra também o centro da divindade transcendente neste mundo visível -, então, ele se eleva acima do tempo e contempla-se a partir de eternidade. Ele se vê acima do tempo e espaço, imortal e eterno.  Na sua raiz, o verdadeiro autoconhecimento também é verdadeiro conhecimento de Deus, pois o homem traz o caminho mais curto entre ele e Deus na imagem divina de sua própria alma. Aqui está a distância mais curta entre o homem e Deus. Todos os caminhos do homem para Deus podem encontrar um beco sem saída; somente este leva certamente a Deus em Cristo. Em sua filosofia, São Isaque dá grande ênfase ao autoconhecimento.

"Aquele que foi considerado digno de ver a si mesmo", diz ele, "é maior que aquele que foi considerado digno de ver anjos".

Para adquirir a capacidade de ver em sua própria alma, o homem deve primeiro abrir o coração para a graça. "Na medida em que as almas são impuras ou escurecidas, elas não podem ver nem a si mesmas nem a outras pessoas". A visão virá "se o homem purificar sua alma e trazê-la de volta ao seu estado original". "Quem desejar ver Deus dentro de si mesmo deve esforçar-se pela constante lembrança de Deus para purificar seu coração; e assim, com a luz dos olhos de sua mente, ele verá Deus a cada hora. Assim como é um peixe fora da água, assim é um intelecto que se desviou da lembrança de Deus ... Para o homem com uma mente pura, o reino do Espírito está dentro de si mesmo; o sol que brilha dentro dele é a luz da Santíssima Trindade e o ar respirado pelos habitantes deste reino é o Espírito Santo, o Consolador ... Sua vida, sua alegria e felicidade é Cristo, o resplendor da luz do Pai. Tal homem sempre se alegra com a contemplação de sua alma, maravilhando-se com a beleza que é mais brilhante do que mil sóis. Esta é Jerusalém, o Reino de Deus, escondido, como o Senhor diz, dentro de nós (Lucas 17:21). Este reino é a nuvem da glória de Deus, na qual somente o puro coração pode entrar para contemplar o rosto de seu Mestre e preencher seus intelectos com o brilho de Sua luz ... Um homem não pode ver a beleza que está dentro de si mesmo até que ele tenha rejeitado e desprezado toda a beleza que está fora dele ... Um homem que é saudável de alma, que é humilde e manso, tal homem, assim que ele se volta para a oração, vê a luz do Espírito Santo dentro de sua alma e se alegra em contemplar os raios de Sua luz, deliciando-se na contemplação de sua glória ".

Um homem pode entender a natureza de sua alma pela luz do Espírito Santo. "Por natureza, a alma está livre das paixões. Quando, na Sagrada Escritura, falam das paixões da alma e da carne, isso se refere às suas causas, pois a alma é por natureza sem paixão. Isso não é aceito pelos adeptos da filosofia profana" - ou, como diriamos hoje, os adeptos da filosofia materialista, realista e fenomenalista. Pelo contrário, Deus criou a alma à Sua imagem e, portanto, sem paixão.

Existem três estados de alma: natural, não natural e sobrenatural. "O estado natural da alma é o conhecimento da criação de Deus, tanto visível quanto espiritual. O estado sobrenatural da alma é a contemplação da Divindade super-essencial. O estado não natural da alma é o envolvimento nas paixões", pois as paixões não pertencem à sua natureza. A paixão é um estado não natural da alma, mas a virtude é seu estado natural. Quando a mente é alimentada pelas virtudes, especialmente a da compaixão, a alma é então "adornada com a beleza santa" através da qual o homem torna-se realmente semelhante à de Deus.

A "santa beleza" do ser do homem é revelada em um coração puro, e quanto mais o homem desenvolve esta santa beleza dentro de si mesmo, mais ele verá a beleza da criação de Deus.

Isso mostra que o autoconhecimento é a melhor maneira de chegar a um verdadeiro conhecimento da natureza e do mundo material em geral. "Aquele que se submete a Deus", diz São Isaque, "está próximo de ser capaz de submeter todas as coisas a si mesmo. Para quem conhece a si mesmo é dado conhecer todas as coisas, pois o conhecimento de si mesmo é a plenitude do conhecimento de todas as coisas." Se um homem se humilha diante de Deus, toda a criação se humilha diante dele. "A verdadeira humildade nasce do conhecimento, e o verdadeiro conhecimento é fruto da tentação" - isto é, vem pela batalha com as tentações.

A natureza humana é capaz da verdadeira contemplação quando é purificada das paixões pelo exercício das virtudes. A verdadeira contemplação do mundo material e imaterial, e da própria Santíssima Trindade, é o dom de Cristo. Ele revelou essa contemplação aos homens e instruiu-os nela "quando Ele, em Sua própria Pessoa Divina, completou a renovação da natureza humana e, através de Seus mandamentos vivificantes, abriu um caminho para a verdade. A natureza humana só se torna capaz de uma verdadeira contemplação quando o homem primeiro expõe o velho Adão ao suportar as paixões, cumprindo os mandamentos e sofrendo o infortúnio ... Nessas circunstâncias, o intelecto se torna capaz de nascimento espiritual e de contemplação do mundo espiritual, sua verdadeira pátria ... A contemplação do novo mundo revelado pelo Espírito, no qual o intelecto tem deleite espiritual, ocorre sob a ação da graça ... Essa contemplação torna-se um alimento que nutre o intelecto, preparando-o para receber uma contemplação ainda mais perfeita. Pois uma contemplação conduz a outra, até que o intelecto seja trazido para o reino do amor perfeito. O próprio amor é a morada, o "lugar" do homem espiritual; ele habita na pureza da alma. Quando o intelecto alcança o reino do amor, a graça trabalha nele e o intelecto recebe contemplação espiritual e torna-se um espectador de coisas ocultas".

A contemplação mística "é revelada ao intelecto quando a alma foi curada". Aqueles que purificaram suas almas pela prática das virtudes tornam-se dignos da contemplação espiritual. "A pureza vê Deus". Os que se purificaram do pecado e que refletem de forma incessante sobre Deus O contemplam. "O reino dos céus é chamado de contemplação espiritual, pois é isso o que é", diz São Isaque. "Não é encontrado através da atividade do pensamento, mas pode ser provado pela graça. Até que um homem se purifique, ele não tem condições de ouvir o Reino, pois ninguém pode adquiri-lo através de ensinamentos", somente pela pureza de coração. Deus dá pensamentos puros aos que vivem vidas puras." Pureza de pensamento brota da luta e da guarda do coração, e da pureza do pensamento vem a iluminação do entendimento. A partir daí, a graça conduz o intelecto ao reino onde os sentidos não têm poder, onde eles não instruem nem são instruídos".

Por meio da vigilância na oração, "a mente toma asas e ascende", "para as delícias de Deus". "Ela nada em um conhecimento que supera o pensamento humano." "A alma que se esforça para se perseverar nesta vigilância recebe os olhos dos querubins com o qual habita em contemplação constante e celestial". A alma do homem vê a verdade de Deus através do poder de seu modo de vida, isto é, através da vida de fé. "Se a sua contemplação é verdadeira, ele encontrará a luz e o que ele contempla estará no reino da verdade". "A visão de Deus vem do conhecimento de Deus e não pode preceder esse conhecimento" .

O objetivo de um cristão é a vida na contemplação da Santíssima Trindade. De acordo com São Isaque, o amor é "a contemplação primordial da Santíssima Trindade". "O primeiro dos mistérios é chamado de pureza, e é alcançado através da realização dos mandamentos. Mas a contemplação é a contemplação espiritual do intelecto." Ela vem da "mente entrando em êxtase e compreendendo tanto o que era como o que será. A contemplação é a visão do intelecto. Nela, o coração é corrigido, renovado e purificado do mal, familiarizando-se com os mistérios do Espírito e as revelações do conhecimento, elevando-se de conhecimento em conhecimento, da contemplação à contemplação, e do entendimento ao entendimento, aprendendo e crescendo secretamente até que é tomado pelo amor, incorporado na esperança, até que a alegria habite em suas partes mais internas, até que seja levada a Deus e coroada com a glória natural de seu próprio ser criado." Assim, a mente "é purificada e dotada de misericórdia, sendo realmente considerada digno de contemplar a Santíssima Trindade". Pois há três tipos de contemplação natural em que a mente "é edificada, ativa e engajada": "duas são do mundo criado - do racional e do não-racional, espiritual e corporal; e a terceira é a contemplação da Santíssima Trindade ".

Se o asceta da fé, enriquecido pelas riquezas indescritíveis da contemplação, se volta para a criação, todo o seu ser é cheio de amor e compaixão. "Ele ama o pecador", diz São Isaque, "ao passo que odeia suas obras". Ele é entrelaçado com humildade e misericórdia, com arrependimento e amor. Ele tem um coração cheio de amor para toda criatura. "O que é um coração misericordioso?" "É", responde São Isaque, "um coração ardente de amor em relação a toda a criação: para homens, pássaros, animais, demônios e toda criatura. Seus olhos transbordam de lágrimas ao pensar e vê-los. Da grande e poderosa tristeza que aperta seu coração e da sua grande paciência, seu coração se contrai, e ele não pode suportar ouvir ou ver o menor mal causado ou infortúnio sofrido pela criação. Portanto, ele também ora com lágrimas incessantemente pelas bestas irracionais, pelos adversários da verdade e por aqueles que o fazem mal, para que sejam preservados e recebam misericórdia. Ele também ora pelos répteis com grande tristeza, uma tristeza sem medida em seu coração e que o assemelha a Deus".

Quando, por um ascetismo evangélico, alguém se move do temporal para o eterno, quando vive em Deus e pensa nEle, quando fala "como de Deus" (II Cor. 2:17), quando ele olha para o mundo sub specie Christi, então o mundo é mostrado a ele em sua beleza primordial. Com o olhar de um coração purificado, ele penetra na crosta do pecado e vê o núcleo divinamente criado da criação. A contemplação da Santíssima Trindade, essencialmente misteriosa e incognoscível, é manifestada pelo asceta da fé neste mundo de realidades transitórias e limitadas através do amor e da misericórdia, através da mansidão e humildade, através da oração e do trabalho para todos, através da alegria com aqueles que se alegram e choro com aqueles que choram, sofrendo com os que sofrem e se arrependendo com o penitente. Sua vida neste mundo reflete sua vida no outro mundo de valores misteriosos e invisíveis. Seus pensamentos e atos neste mundo têm suas raízes no outro mundo, e é do outro mundo que eles extraem sua miraculosa e vivificante força e poder. Se alguém rastreasse algum de seus pensamentos, sentimentos, atos ou práticas ascéticas, seria levado para a Santíssima Trindade como a principal fonte de todos. Todas as coisas vêm dele do Pai através do Filho no Espírito Santo. Temos o mais belo exemplo disso no próprio São Isaque, o grande asceta da Santíssima Trindade que, com São Simeão, o Novo Teólogo, conseguiu, com a ajuda da graça e da experiência ascética, dar-nos a justificativa mais convincente da verdade da divindade trinitária e da imagem trinitária divina  do ser pessoal do homem.

Conclusão

A teoria do conhecimento de São Isaque é dominada pela convicção de que o problema do conhecimento é fundamentalmente um problema religioso e ético. Desde o seu início até a sua plenitude infinita na graça, o conhecimento depende do conteúdo ético e da qualidade religiosa da pessoa e, sobretudo, da cultura religiosa e ética e do desenvolvimento dos órgãos do conhecimento do homem. Uma coisa é certa: esse conhecimento, em todos os níveis, depende do estado religioso e moral do homem. Quanto mais um homem é perfeito do ponto de vista religioso e moral, mais perfeito é o seu conhecimento. O homem foi feito de tal maneira que o conhecimento e a moral estão sempre equilibrados dentro dele.

Não há dúvida de que o conhecimento progride através das virtudes do homem e regride através das paixões. O conhecimento é como um tecido tecido pelas virtudes sobre o tear da alma humana. O tear da alma se estende através de todos os mundos visíveis e invisíveis. As virtudes não são apenas poderes criando conhecimento; elas são os princípios e a fonte do conhecimento. Ao transformar as virtudes em elementos constituintes de seu ser através de um esforço ascético, o homem avança de conhecimento em conhecimento. Poderia até mesmo ser possível dizer que as virtudes são os órgãos sensoriais do conhecimento. Avançando de uma virtude para outra, o homem se move de uma forma de compreensão para outra.

Da primeira virtude, a fé, até a última, que é o amor por todos, existe um caminho ininterrupto: o ascetismo. Neste longo caminho, homem se forma, transforma e se transfigura através da graça de seus esforços ascéticos. Desta forma ele cura seu ser das enfermidades do pecado e da ignorância, restaurando a integridade de sua pessoa, unificando e curando seu espírito.

Curado e feito íntegro pelo poder religioso e moral das virtudes, o homem expressa a pureza e a integridade de sua pessoa particularmente através da pureza e integridade de seu conhecimento. De acordo com o entendimento ortodoxo evangélico encontrado em São Isaque, o conhecimento é uma ação, uma ascese, de toda a pessoa humana e não de uma parte de seu ser - seja ele o intelecto, o entendimento, a vontade, o corpo ou os sentidos. Em todo ato de conhecimento, em todo pensamento, sentimento e desejo, todo o homem está envolvido com todo o seu ser.

Curado pela graça do esforço ascético, os órgãos do conhecimento produzem conhecimento puro e saudável, a "sã (literalmente saudável) doutrina" do Apóstolo (I Tim. 1:10; II Tim. 4: 3; Tito 1: 9 ; 2: 1). Em todos os estágios de seu desenvolvimento, esse conhecimento é "cheio de graça", pois é um produto do trabalho conjunto da ascese voluntária do homem e do poder cheio de graça de Deus. Todo o homem compartilha nele com o todo de Deus. Por esta razão, São Isaque fala continuamente da lembrança, a "reunião" da alma, da mente e dos pensamentos, uma lembrança que é alcançada pela prática das virtudes evangélicas.

Mas essas virtudes diferem das de outras éticas religiosas e filosóficas, não apenas em seu conteúdo, mas também em seu método. As virtudes evangélicas têm um conteúdo específico que liga Deus e homem, e seu próprio método específico de trabalho. Em sua pessoa divino-humana, ou "teantrópica" incomparavelmente perfeita, o Deus-homem, Jesus Cristo, mostrou e provou que esse método, esse modo de vida divino-humano, é o único meio natural e normal de vida e de conhecimento. O homem que toma esse caminho de fé para si, também encontra nele um caminho de conhecimento.  O que é válido para a fé é válido também para as outras virtudes divinas: amor, esperança, oração, jejum, mansidão, humildade, e assim por diante; pois cada uma dessas virtudes se torna, no homem que vive em Cristo, uma força viva e criativa de vida e conhecimento.

Neste modo de vida e conhecimento teantrópico, não há nada que seja irreal, abstrato ou hipotético. Aqui tudo é real com uma realidade irresistível, pois tudo é baseado na experiência. Na pessoa de Cristo, o Deus-homem, transcendente, a realidade divina é mostrada e definida de forma totalmente empírica. Por Sua encarnação Cristo deu à carne humana a realidade mais sutil, a mais transcendente, a mais perfeita. Esta realidade não tem limites, pois a pessoa de Cristo é ilimitada. Segue-se que a personalidade humana não tem limites, nem o conhecimento dos homens, pois é dito e comandado: " Sede vós pois perfeitos, como é perfeito o vosso Pai que está nos céus" (Mateus 5:48). Isso significa que os únicos limites da personalidade e do conhecimento humano são os limites ilimitados de Deus.

A pessoa de Cristo, o Deus-homem, apresenta em si a perfeita e ideal realidade do monismo teantrópico: uma passagem natural de Deus ao homem, do sobrenatural ao natural, da vida imortal à vida humana. Tal passagem também é natural para o conhecimento quando, pela ponte da fé, da esperança e do amor, passa do homem para Deus, do natural ao sobrenatural, do mortal ao imortal e do temporal ao eterno, revelando assim a unidade orgânica desta vida e da vida futura, deste mundo e do outro, do natural e do sobrenatural.

Este conhecimento é um conhecimento integral, pois ele eleva-se nas asas das virtudes divinas e humanas e passa sem obstáculos através das barreiras do tempo e do espaço, entrando no eterno. É desse conhecimento integral que São Isaque está pensando quando, ao definir o conhecimento, ele diz que é "a percepção da vida eterna", e quando, definindo a verdade, ele a chama de "percepção de Deus". Aquilo que é verdadeiro para as virtudes é verdadeiro também para o conhecimento. Como cada virtude engendra outras virtudes e gera conhecimento, então cada tipo de conhecimento engendra outro. Uma virtude produz outra e sustenta-a, e o mesmo vale para o conhecimento.

Quanto mais o homem se exercita nas virtudes, maior se torna seu conhecimento de Deus. Quanto mais conhece Deus, maior é o seu ascetismo. Este é um caminho empírico e pragmático. "Se alguém quiser fazer a vontade dele, pela mesma doutrina conhecerá se ela é de Deus" (João 7:17). Em outras palavras: é vivendo a verdade de Cristo que se conhece a sua veracidade e singularidade. Este é realmente um caminho empírico, experimental e pragmático. O conhecimento da verdade não é dado aos curiosos, mas aos que seguem o caminho ascético. O conhecimento é um fruto na árvore das virtudes, que é a árvore da vida. O conhecimento vem do ascetismo. Para o verdadeiro cristão, a filosofia ortodoxa é de fato a ascese teantrópica do intelecto e da pessoa inteira. Aqui, as fortes palavras do Salvador são especialmente significativas: "A quem tiver, mais lhe será dado; de quem não tiver, até o que pensa que tem lhe será tirado" (Lucas 8:18).

Observado à luz da teoria do conhecimento de São Isaque, o realismo ingênuo é trágico e letalmente simplista. Não pode dar um conhecimento real do mundo, pois faz uso de órgãos do conhecimento doentios e corruptos. Em contraste, o realismo teantrópico dá um conhecimento real do mundo e da verdade que nele existe, pois usa órgãos de conhecimento que foram purificados, curados e renovados e podem ver o coração de tudo o que é criado.

O racionalismo considera que o entendimento é um órgão infalível do conhecimento. Portanto, em relação a toda a pessoa humana, ele aparece como um apóstata anárquico. É como um ramo que se cortou da videira, que não pode ter vida plena ou realidade criativa por conta própria. Ele não está em condições para conhecer a verdade, pois em seu isolamento egocêntrico ele está dividido, espalhado e cheio de lacunas. A verdade, ao contrário, é dada a um intelecto purificado, iluminado, transfigurado e deificado pela ação das virtudes.

O criticismo filosófico é quase que exclusivamente ocupado com o estudo dos órgãos do conhecimento em seu estado psíquico e físico, tal como se encontra no domínio meramente humano. A isso acrescenta o estudo das categorias e condições que são as premissas do conhecimento. Mas não dá atenção à necessidade de cura e purificação dos órgãos do conhecimento. Portanto, a crítica filosófica não pode, por si só, ter conhecimento da verdade, pois não passa de um racionalismo e sensualismo cautelosos.

O idealismo filosófico baseia-se em realidades e critérios transcendentais, mas não está em condições de provar a existência deles. Fundado em idéias transcendentais, é, no entanto, incapaz de alcançar o conhecimento da verdade tão necessário para a natureza humana ou para atenuar, mesmo em parte, a sede de verdade eterna e de realidades duradouras.

Tudo o que esses vários sistemas epistemológicos são incapazes de dar ao homem é dado pela filosofia ortodoxa com sua teoria ascética cheia de graça do conhecimento. Aqui, a própria Verdade eterna está diante do conhecimento humano na plenitude da Sua perfeição infinita, entregando a Si mesmo ao homem iluminado e dotado de graça. Pois é na pessoa de Cristo o Deus-homem que a verdade divina e transcendental vem ao homem. Nele, a verdade torna-se objetivamente imanente e apresenta uma realidade histórica imediata e eternamente vital. Para tornar este conhecimento seu, para torná-lo uma imanência subjetiva, é essencial que o homem, pela prática das virtudes, faça do Senhor Jesus Cristo a alma de sua alma, o coração de seu coração e a vida de sua vida.

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

A Teoria do Conhecimento de São Isaque, o Sírio (São Justino Popovich) [Parte 1/2]

Introdução

Na filosofia europeia, o homem sempre aparece, em maior ou menor grau, fragmentado. Em nenhum lugar ele é visto em sua totalidade, em sua plenitude e integridade; está sempre dividido ou em fragmentos. Não há qualquer sistema filosófico no qual o homem não esteja dividido em partes; nenhum pensador jamais foi capaz de levar em conta sua totalidade. Por um lado, o realismo ingênuo reduz o homem aos sentidos, e então, dos sentidos para as coisas, para matéria, de modo que o homem não mais pertence a si mesmo, disperso entre as coisas. Por outro lado, o racionalismo separa o homem de sua compreensão, considera-se a razão  a principal fonte da verdade e o critério supremo de tudo o que é, atribuindo-lhe todo o mérito, tornando-a um absoluto e transformando-a em um ídolo, enquanto, ao mesmo tempo, subestima-se e despreza-se todas as outras faculdades psíquicas e físicas do homem. O pensamento crítico, por sua vez, não é mais do que uma apologia ao racionalismo e ao sensualismo que, em última análise, reduz o intelecto - e com isso o homem em sua integridade - ao nível dos sentidos. Quanto ao panteísmo, como todos os sistemas monistas, consideram o mundo e o homem como uma totalidade de opostos contraditórios que nunca poderão constituir uma única unidade lógica. Todos esses sistemas filosóficos têm o mesmo resultado: uma compreensão superficial e fenomenalista do homem e do mundo.

Na filosofia fenomenalista - filosofia que sempre é relativista - o homem permanece privado de um eixo, de um centro. Onde o mundo se fundamenta? E o homem? Qual é o fundamento do intelecto e do conhecimento? O homem tenta explicar-se em termos das coisas, mas não consegue; explicando-se em termos das coisas, o próprio homem, por fim, é reduzido a uma coisa, a matéria. Por mais que se esforce, o homem da filosofia fenomenalista não está em posição de atestar a realidade objetiva das coisas. Ainda menos é capaz de mostrar que as coisas possuem verdade. Ao tentar explicar o homem pelo homem, a filosofia alcança um resultado bizarro: apresenta uma imagem espelhada de uma imagem espelhada. Em última análise, essa filosofia, seja qual for o seu caminho, é centrada na matéria e no homem. E uma coisa resulta de tudo isso: a impossibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro do homem ou do mundo.

Este resultado compele o espírito filosófico do homem a fazer conjecturas que transcendem o homem e a matéria. Através do idealismo, ele dá um salto para o sobrenatural. Mas esse salto, por sua vez, lhe conduz ao ceticismo, pois o idealismo filosófico considera o homem como uma realidade metafísica, que não pode ser nem descrita nem comprovada.

O homem, conforme compreendido na filosofia relativista, está sujeito a um destino trágico: demonstra-se que a verdade transcende tanto o homem quanto a matéria. Há um abismo intransponível entre o homem e a verdade. O homem está de um lado do abismo e não consegue chegar ao outro lado, onde a Verdade transcendente pode ser encontrada. Mas o poder da Verdade, do outro lado, responde à impotência do homem em seu lado. A Verdade transcendente atravessa o abismo, chega ao nosso lado e revela a Si mesma - na pessoa de Cristo, o Deus-homem. Nele a Verdade transcendente torna-se imanente no homem. Ele prova a Verdade revelando a Si mesmo. Ele a revela, não pelo pensamento ou razão, mas pela vida que é Sua. Ele não só possui a verdade, Ele mesmo é a Verdade. Nele, Ser e Verdade são um. Portanto, Ele, em Sua pessoa, não só define a Verdade, mas mostra o caminho para ela: aquele que permanece Nele conhecerá a Verdade, e a Verdade o libertará (cf. João 8:32) do pecado, da mentira e da morte .

Na pessoa do Deus-homem, Deus e o homem estão indissoluvelmente unidos. A razão do homem não é rejeitada, mas é renovada, purificada e santificada. É aprofundada e divinizada, tornando-se capaz de compreender as verdades da vida à luz do Deus-feito-homem. No Deus-homem, a Verdade absoluta foi, em sua totalidade, transmitida de forma real e pessoal. É por isso que Ele, sozinho, entre os que nasceram na terra, possui o conhecimento integral da Verdade e pode transmiti-lo. O homem que anseia conhecer a Verdade precisa apenas de uma coisa: tornar-se um com o Deus-homem, tornar-se uma só carne com Ele, tornar-se membro do Seu Corpo divino e humano, a Igreja (cf. Ef. 5:30, 3:6). Tornando-se tal, o homem adquire "a mente de Cristo" (I Cor. 2:16), pensando, vivendo, sentindo em Cristo, e assim alcançando o conhecimento integral da Verdade. Para o homem em Cristo, as antinomias da razão não irreconciliáveis; são simplesmente rupturas causadas pela revolta do pecado original no homem. Unindo-se a Cristo, o homem sente em si mesmo a reunião das partes fragmentadas, à medida que a mente se cura, torna-se inteiro, completo e, portanto, se qualifica para o conhecimento integral.

A verdade é objetivamente transmitida na pessoa de Cristo, o Deus-homem. Mas a maneira pela qual isso se torna subjetivo - isto é, o lado prático da teoria cristã do conhecimento - foi plenamente desenvolvida pelos Pais, filósofos experientes, santos e evangélicos. Entre os mais notáveis desses santos filósofos se encontra o grande asceta, São Isaque, o Sírio. Em seus escritos, com uma rara compreensão baseada na experiência, ele traça o processo de cura e purificação dos órgãos do conhecimento do homem, seu desenvolvimento na compreensão e seu caminho progressivo através da experiência para a aquisição da Verdade eterna. Na filosofia de São Isaque, o Sírio, baseada na experiência da graça, os princípios e a metodologia da teoria Ortodoxa do conhecimento encontra uma das suas expressões mais perfeitas. Agora tentarei esboçar essa teoria do conhecimento, ou gnosiologia.

São Isaque, o Sírio

A Doença dos Órgãos do Conhecimento 

O caráter do conhecimento é condicionado pela disposição, natureza e estado de seus órgãos do conhecimento. Em todos os níveis, o conhecimento depende intrinsecamente dos meios de compreensão. O homem não cria a verdade; o ato de compreender é um ato de tornar própria uma verdade que já é objetivamente dada. Essa integração tem um caráter orgânico: é semelhante a um enxerto feito numa videira (cf. João 15: 1-6). A compreensão é, portanto, um fruto na árvore da pessoa humana. Assim como é a árvore, assim são seus frutos; assim como são os órgãos do conhecimento, assim é o conhecimento que engendram.

Analisando o homem através de seus dons empíricos, São Isaque, o Sírio, descobre que seus órgãos do conhecimento estão doentes. O mal é uma doença que afeta a alma e, portanto, todos os órgãos do conhecimento. O mal tem seus próprios sentidos - as paixões - e essas são "as doenças da alma". O mal e as paixões não pertencem à natureza da alma; são acidentes, adições não naturais à alma.

O que são as paixões em si mesmas? Elas são "uma certa rigidez ou insensibilidade do ser". Suas causas são encontradas nas coisas da própria vida. As paixões são o desejo de riqueza e acumulação de bens, de bem-estar e conforto corporal; são sedentas pela honra e exercício de poder; são luxo e frivolidade; são o desejo de glória dos homens e o medo do próprio corpo. Todas essas paixões têm um nome comum - "o mundo". "O mundo significa conduta e mente carnal". As paixões são os ataques do mundo contra o homem por meio das coisas do mundo. A graça divina é o único poder capaz de afastá-las. Quando as paixões fazem seu lar no homem, elas desenraízam sua alma. Elas confundem a mente, enchendo-a de formas fantásticas, imagens e desejos, a fim de que os pensamentos sejam confusos, cheios de fantasia. "O mundo é uma prostituta", que, por meio de seus desejos destruidores, seduz a alma, enfraquece suas virtudes e destrói sua castidade dada por Deus. Assim, a alma, tornando-se impura e uma prostituta, dá à luz ao conhecimento impuro.

Uma alma debilitada, um intelecto enfermo, um coração e uma vontade enfraquecida - em suma, órgãos  do conhecimento doentes - só podem gerar, moldar e produzir pensamentos, sentimentos, desejos e conhecimento doentes.

A Cura dos Órgãos do Conhecimento

São Isaque dá um diagnóstico preciso da doença da alma e dos seus órgãos do conhecimento, e claramente conhece o remédio, oferecendo-o categoricamente e com convicção. Uma vez que as paixões são uma doença da alma, a alma só pode ser curada pela purificação das paixões e do mal. As virtudes são a saúde da alma, assim como as paixões são a sua doença. As virtudes são os remédios que progressivamente eliminam a doença da alma e dos órgãos do conhecimento. Este é um processo lento que exige muito esforço e grande paciência.

A alma torna-se desregrada pelas paixões, mas pode recuperar sua saúde se fizer uso das virtudes como o caminho para a sobriedade. As virtudes, no entanto, estão inteiramente entrelaçadas com tristezas e aflições. São Isaque diz que toda virtude é uma cruz, e até mesmo que as dores e aflições são a fonte das virtudes. Ele, portanto, defende expressamente o amor à opressão e à tristeza, para que, através disso, o homem possa ser libertado das coisas deste mundo e ter uma mente desapegada da confusão do mundo. Pois o homem deve primeiramente libertar-se do mundo material para nascer de Deus. Tal é a economia da graça e, portanto, a economia do conhecimento. 

Se o homem resolve tratar e curar sua alma, primeiro ele deve se submeter a um exame cuidadoso de todo o seu ser. Ele deve aprender a distinguir o bem do mal, as coisas de Deus daquelas do diabo, pois "o discernimento é a maior das virtudes".  A aquisição das virtudes é um processo progressivo e orgânico: uma virtude segue outra.  Uma depende da outra; uma nasce da outra: "Toda virtude é a mãe da próxima".  Entre as virtudes, não há apenas uma ordem ontológica, mas também cronológica. A primeira delas é a fé.


É pela ascese da fé que o tratamento e a cura da alma enferma pelas paixões é iniciado. Uma vez que a fé começa a viver no homem, as paixões começam a ser desenraizadas da alma. Mas "até que a alma se torne intoxicada com fé em Deus, até que sinta o poder da fé", ela não pode ser curada das paixões nem superar o mundo material. O lado negativo da fé consiste na libertação da matéria pecaminosa e o lado positivo,  a união com Deus.

A alma, que estava dispersa pelos sentidos entre as coisas deste mundo, é recolhida em si mesma pela ascese da fé, pelo jejum das coisas materiais e pela dedicação constante a lembrança de Deus. Este é o fundamento de todas as coisas boas. Libertação da escravização à matéria pecaminosa é essencial para o avanço na vida espiritual. O início deste novo modo de vida constitui-se na concentração dos pensamentos em Deus, em uma reflexão incessante sobre o palavras de Deus e em uma vida de pobreza.

Através da fé, a mente, que antes estava dispersa entre as paixões, é concentrada, liberta da sensualidade e dotada de paz e humildade de pensamento. Vivendo pelos sentidos em um mundo sensível, a mente está doente. Com a ajuda da fé, no entanto, a mente é liberta da prisão deste mundo, onde esteve sufocada pelo pecado, e entra na nova era, onde respira um novo ar maravilhoso. "O sono da mente" é perigoso como a morte e, portanto, é essencial despertar a mente pela fé através da realização das obras espirituais, pelas quais o homem se superará e expulsará as paixões. "Afaste-se de si mesmo, e o inimigo será expulso de seu lado."

Na ascese da fé, o homem é convidado a agir de acordo com uma antinomia que ultrapassa o entendimento: "Esteja morto para sua vida e você viverá após a morte". Pela fé, a mente é curada e adquire sabedoria. A alma torna-se sábia quando pára de "se envolver descaradamente com pensamentos promíscuos". "O amor pelo corpo é um sinal de incredulidade". A fé liberta o intelecto das categorias dos sentidos e o torna sóbrio através do jejum, pela reflexão em Deus e pelas vigílias.

A intemperança e o estômago cheio obscurecem a mente, distraí-a e a dispersa entre fantasias e paixões. O conhecimento de Deus não pode ser encontrado em um corpo que ama o prazer. É da semente do jejum que a grama de um conhecimento saudável cresce - e é da saciedade que a devassidão provém e a impureza do excesso.

Os pensamentos e desejos da carne são como uma chama inquieta no homem, e o caminho para a cura é mergulhar o intelecto no oceano dos mistérios da Sagrada Escritura. A menos que seja liberta das possessões terrenas, a alma não pode ser liberta de pensamentos inquietantes, nem sentir a paz de espírito sem antes morrer para os sentidos. As paixões escurecem os pensamentos e cegam a mente. Os pensamentos agitados e caóticos surgem de um abuso do estômago.

O pudor e o temor de Deus estabilizam o tumulto da mente; a ausência dessa vergonha e temor perturba o equilíbrio do conhecimento, tornando-o inconstante e instável. A mente encontra-se numa base firme somente se mantiver os mandamentos do Senhor, tornando-se pronta para suportar sofrimento e aflição. Se for escravizada pelas coisas da vida, torna-se escurecida. Recolhendo-se pela fé, o homem desperta seu intelecto em relação a Deus e, pelo silêncio orante, purifica  sua mente e vence as paixões. A alma é restaurada à saúde pelo silêncio. Portanto, é necessário treinar-se no silêncio - e este é um labor que traz doçura ao coração. É através do silêncio que o homem alcança a paz de pensamentos indesejados.

A fé traz a paz ao intelecto e, ao trazê-la, elimina os pensamentos rebeldes. O pecado é a fonte de inquietação e conflito nos pensamentos, e também é a fonte da luta do homem contra o céu e contra outros homens. "Esteja em paz consigo mesmo, e você trará paz para o céu e para a terra".  Até que a fé apareça, o intelecto estará disperso entre as coisas deste mundo; é pela fé que esta fragmentação do intelecto é superada. A errância dos pensamentos é provocado pelo demônio da prostituição, assim como a errância dos olhos é causado pelo espírito da impureza.

Pela fé, o intelecto é estabelecido no pensamento de Deus. O caminho da salvação é o da constante lembrança de Deus. O intelecto separado da lembrança de Deus é como um peixe fora da água. A liberdade do homem verdadeiro consiste na sua liberdade das paixões, na sua ressurreição com Cristo e na alegria da alma.

As paixões só podem ser vencidas pela prática das virtudes, e toda paixão deve ser combatida até a morte. A fé é a primeira e principal arma na luta contra as paixões, pois a fé é a luz da mente que afasta a escuridão das paixões e a força do intelecto que expulsa a doença da alma.

A fé contém dentro de si não só seu próprio princípio e substância, mas o princípio e a substância de todas as outras virtudes - desenvolvendo como fazem uma a partir da outra, organicamente, como os anéis do tronco de uma árvore. Se pode se dizer que a fé tem uma linguagem, essa linguagem é a oração.

Oração

É pela ascese da fé que o homem supera o egoísmo, ultrapassa os limites de si mesmo e entra em uma nova realidade transubjetiva e transcendente. Nesta nova realidade, novas leis governam; as coisas velhas passam e tudo se faz novo. Submerso nas profundezas desconhecidas desta nova realidade, o asceta da fé é conduzido e guiado pela oração; ele sente, pensa e vive pela oração.

Traçando esse caminho da fé no intelecto do homem, São Isaque observa que o intelecto é guardado e guiado pela oração, todo bom pensamento é transformado pela oração em uma reflexão sobre Deus. Mas a oração também é uma luta difícil, ela põe em movimento toda personalidade do homem. O homem crucifica-se na oração, 69 crucificando as paixões e pensamentos pecaminosos que se apegam à sua alma. "A oração é a destruição dos pensamentos carnais da vida carnal do homem".

A perseverança na oração é para o homem uma ascese muito difícil, a negação de si mesmo. Isso é fundamental para a obra da salvação. A oração é a fonte da salvação, e é pela oração que todas as outras virtudes - e todas as coisas boas - são adquiridas. É por isso que o homem de oração é atacado por tentações monstruosas, das quais se defende por meio da oração.

O mais seguro guardião do intelecto é a oração. Ela afasta as névoas das paixões e ilumina o intelecto trazendo sabedoria para a mente. A permanência contínua na oração é o sinal da perfeição. 

A oração espiritual se transforma em êxtase, no qual são revelados os mistérios da Santíssima Trindade, e o intelecto entra na esfera do não-saber sagrado que é mais elevado que o conhecimento.

Começando pela fé, a cura dos órgãos do conhecimento continua por meio da oração. Os limites da personalidade humana se expandem cada vez mais, e o egocentrismo gradualmente dá lugar ao teocentrismo.


Amor


"O amor nasce da oração" 78, assim como a oração nasce da fé. As virtudes provém de uma só substância e, portanto, nascem uma da outra. O amor a Deus é um sinal de que a nova realidade, na qual o homem é levado pela fé e oração, é muito maior do que a realidade anterior. O amor a Deus e pelo homem é obra da oração e da fé; verdadeiramente, o verdadeiro amor pelo homem é impossível sem a fé e oração.

Pela fé, o homem transforma o mundo: ele se move do mundo limitado para o ilimitado, onde ele não mais vive pelas leis dos sentidos, mas pelas leis da oração e do amor. São Isaque dá grande ênfase à convicção de que ele alcançou por meio de sua experiência ascética: o amor a Deus vem da oração:

"O amor é fruto da oração". É possível que se receba o amor de Deus através da oração, mas não é possível, de modo algum, adquiri-lo sem a luta da oração. Uma vez que o homem alcança o conhecimento de Deus através da fé e da oração, torna-se estritamente verdade que "o amor nasce do conhecimento".

Através da fé, o homem renuncia à lei do egoísmo; renuncia à sua alma pecaminosa. Embora ame sua alma, ele abomina o pecado que está nela. Através da oração, ele se esforça para substituir a lei do egoísmo pela lei de Deus, para substituir as paixões pelas virtudes, para substituir a vida humana pela vida divina e assim curar a alma do pecado. É por isso que São Isaque ensina que "o amor de Deus encontra-se no auto-controle da alma".

A impureza e a doença da alma são adições não naturais à alma; não fazem parte de sua natureza criada, pois "a pureza e a saúde são o reino da alma".Uma alma debilitada pelas paixões é um terreno apropriado para o cultivo do ódio e "o amor só é adquirido pela cura da alma."

O amor é de Deus, "porque Deus é amor" (I João 4: 8). "Aquele que adquire o amor, veste-se do próprio Deus". Deus não tem limites, e o amor é, portanto, infinito e ilimitado, de modo que "aquele que ama a Deus e em Deus ama todas as coisas igualmente, sem distinções", São Isaque diz sobre o homem que alcançou a perfeição. Como exemplo do amor perfeito, São Isaque cita o desejo do santo Abba Agathon de "encontrar um leproso e trocar de corpo com ele".

No reino do amor, as antinomias da razão desaparecem. O homem que se esforça no amor goza de uma antecipação da harmonia do Paraíso em si mesmo e no mundo de Deus ao seu redor, pois ele saiu de seu inferno egoísta e solipsista e entrou no paraíso dos valores divinos e da perfeição. Nas palavras de São Isaque: "O paraíso é o amor de Deus, onde está a doçura de todas as bênçãos". O inferno é a ausência do amor de Deus e "aqueles torturados no inferno são torturados pelo flagelo do amor". Quando um homem adquire perfeitamente o amor de Deus, ele adquire a perfeição. Portanto, São Isaque recomenda: "É necessário primeiro adquirir amor, que é a forma original da contemplação do homem da Santíssima Trindade".

Libertando-se das paixões, o homem se desprende gradualmente da auto-absorção que caracteriza o humanismo. Ele abandona a esfera do antropocentrismo perverso e entra na esfera da Santíssima Trindade. Aqui ele recebe a paz divina em sua alma, onde as oposições e as contradições que surgem das categorias de tempo e espaço perdem seu poder de morte e onde ele pode perceber claramente sua vitória sobre o pecado e a morte.

Humildade 

A fé tem sua própria maneira de pensar, porque tem seu próprio modo de vida. O cristão não apenas vive pela fé (II Cor. 5: 7), mas também pensa pela fé. A fé apresenta uma nova categoria de pensamento, através da qual toda a atividade gnoseológica do homem que crê é revelada. Essa nova categoria de pensamento é a humildade. Dentro da infinita realidade da fé, o intelecto humilha-se diante dos inefáveis mistérios da nova vida no Espírito Santo. O orgulho do intelecto dá lugar à humildade, e a modéstia substitui a presunção. O asceta da fé, protege todos os seus pensamentos por meio da humildade, assegurando assim o conhecimento da Verdade eterna.

Extraindo sua força da oração, a humildade continua crescendo e avançando sem fim.  São Isaque ensina que a oração e a humildade estão sempre equilibradas, e que o progresso na oração significa também progresso na humildade e vice-versa. A humildade é uma força que complementa o coração e impede que ele se dissipe em pensamentos orgulhosos e desejos libidinosos. A humildade é sustentada e protegida pelo Espírito Santo, e não só atrai o homem para Deus, mas também Deus para o homem. Além disso, a humildade foi a causa da encarnação do Filho de Deus, a união mais íntima de Deus com o homem: "A humildade fez de Deus um homem na terra".  A humildade é "o adorno da divindade, pois o Verbo encarnado falou conosco através do corpo humano com o qual ele mesmo assumiu."

A humildade é um poder misterioso e divino que é dado apenas aos santos, aos que são aperfeiçoados nas virtudes, e é dado pela graça. "Contém todas as coisas dentro de si". Pela graça do Espírito Santo "os mistérios são revelados aos humildes" e são aperfeiçoados na sabedoria. "A humilde é a fonte dos mistérios da nova era".

A humildade é temperança, e "as duas preparam na alma uma promessa  para a Santíssima Trindade".

A temperança deriva da humildade, e é pela humildade que o intelecto é curado e feito pleno. "Da humildade fluem uma mansidão e lembrança que é a temperança dos sentidos". "A humildade adorna a alma com temperança".

Voltando-se ao mundo, o homem humilde revela toda a sua personalidade através da humildade, imitando assim Deus encarnado. "Assim como a alma é desconhecida e invisível aos olhos do corpo, assim o homem humilde é desconhecido entre os homens". Ele não só busca passar despercebido pelos homens, mas também recolher-se em si mesmo quanto possível, tornando-se "como alguém que não existe na terra, que ainda não veio a ser, e que é completamente desconhecido até pela sua própria alma." Um homem humilde se despreza diante de todos os homens, mas Deus, por esse motivo, o glorifica, pois "onde a humildade floresce, lá a glória de Deus brota abundantemente", e a planta da alma produz uma flor imperecível.


Graça e Liberdade

A pessoa de Cristo, o Deus-homem, apresenta em si a imagem ideal da personalidade e do conhecimento humano. A pessoa de Cristo em si mesma traça e define o caminho da vida de um cristão em todos os sentidos. Nele encontra-se a realização mais perfeita da união mística de Deus e do homem, ao mesmo tempo em que revela a obra de Deus no homem e do homem em Deus.

A sinergia Deus-homem é uma característica essencial da atividade do cristão no mundo. O homem trabalha com Deus e Deus com os homens (cf. I Cor. 3: 9). Trabalhando interiormente e ao redor de si mesmo, o cristão se entrega inteiramente à ascese, mas ele faz isso, e é capaz de fazê-lo, somente através da incessante atividade do poder divino que é a graça.  Para o cristão nenhum pensamento, nenhum sentimento, nenhuma ação pode vir do Evangelho sem a ajuda da graça de Deus. O homem, por sua vez, traz o desejo, mas Deus dá a graça, e é dessa atividade mútua, ou sinergia, que a personalidade cristã nasce.

Em cada degrau da escada da perfeição, a graça é essencial para o cristão. O homem não pode realizar nenhuma virtude evangélica sem a ajuda e o apoio da graça de Deus. Tudo no cristianismo se dá por meio da graça e do livre arbítrio, pois tudo é a obra comum de Deus e do homem. São Isaque enfatiza particularmente este trabalho comum da vontade do homem e da graça de Deus em toda a vida do cristão. A graça abre os olhos do homem para o discernimento do bem e do mal. Isso fortalece o sentimento de Deus dentro dele, abre-lhe o futuro e o preenche de luz mística.

Quanto mais graça Deus dá ao homem de fé, mais Ele revela a ele os abismos do mal no mundo e no homem. Ao mesmo tempo, Ele permite que haja maiores tentações para atacá-lo, para que possa testar o poder da graça dada por Deus e que possa sentir e aprender que é somente com a ajuda da graça que ele pode superar as tentações cada vez mais temíveis e escandalosas. Pois, assim que a graça percebe que a alma do homem está se tornando auto-suficiente, deixando-o bem aos seus próprios olhos, ela lhe abandona e permite que as tentações o ataquem até que ele tome consciência de sua enfermidade e humildemente se refugie em Deus.

Pelo trabalho conjunto da graça de Deus e de sua vontade, o homem por meio da fé se aperfeiçoa. Isso acontece gradualmente, pois a graça entra na alma "pouco a pouco", sendo dada antes de tudo aos humildes. Quanto maior a humildade, maior a graça, e sabedoria que está contida dentro da graça. "Os humildes são dotados de sabedoria pela graça"

A sabedoria cheia de graça revela gradualmente os mistérios aos humildes, um após o outro, culminando no mistério do sofrimento. Os humildes sabem por que o homem sofre, pois a graça revela-lhes o significado do sofrimento. Quanto maior a graça que o homem possui, maior é a compreensão do significado e propósito do sofrimento e da tentação. Se ele afasta a graça dele devido a indolência e o pecado, o homem expulsa de si mesmo o único meio que ele possui de encontrar o significado e a justificação para seus sofrimentos e tentações.

A Purificação do Intelecto

Por uma renovação incessante de si mesmo através de um ascetismo cheio de graça, o homem gradualmente afasta o pecado e as paixões de todo o seu ser e de seus órgãos do conhecimento, de modo a curá-los dessas doenças mortais. A cura dos órgãos do conhecimento do pecado e das paixões é ao mesmo tempo sua purificação. Especial cuidado deve ser tomado com o principal órgão do conhecimento, o intelecto, pois ele tem um papel particularmente importante no domínio da personalidade humana.

Em nada mais a vigilância é tão vital como no trabalho de purificação do intelecto. Para essa tarefa, o asceta da fé deve lutar com todas as suas forças, de modo que, com a ajuda das virtudes evangélicas cheias de graça, ele possa renovar e transformar seu intelecto. São Isaque nos oferece sua rica experiência nisso.

Segundo ele, a impureza e o caráter grosseiro do intelecto vêm de um estômago cheio. O jejum é, portanto, o principal meio de purificar o intelecto. O intelecto é, por natureza, fino e delicado, enquanto que a grosseria é uma adição não natural introduzida pelo pecado. É através da oração que o intelecto torna-se refinado e claro, transparente. Trabalhando sobre si mesmo, o homem rompe a crosta rígida de pecado de seu intelecto, o refina e o torna capaz de discernimento.

Transformando-se com a ajuda do esforço ascético cheio de graça, o homem adquire a pureza do intelecto, e com este intelecto purificado "passa a ver os mistérios de Deus". "A purificação do corpo produz um estado que rejeita a mácula da impureza da carne. A purificação da alma liberta-a das paixões secretas que surgem na mente. A purificação do intelecto ocorre através da revelação dos mistérios". 

Somente a mente que foi purificada pela graça pode oferecer um conhecimento puro e espiritual. "Até que a mente seja liberta de seus múltiplos pensamentos e se torne completamente pura, ela não pode receber conhecimento espiritual". Os homens deste mundo "não podem purificar suas mentes por causa de seu mau conhecimento e aceitação da perversidade.  Poucos são capazes de retornar à pureza original da mente do homem."

A perseverança na oração purifica o intelecto, ilumina-o e o preenche com a luz da verdade. As virtudes, lideradas pela compaixão, dão ao intelecto paz e luz. A purificação do intelecto não é uma atividade dialética, discursiva e teórica, mas um ato da graça através da experiência e é ética em todos os aspectos. O intelecto é purificado pelo jejum, vigílias, silêncio, oração e outras práticas ascéticas.

"O que é pureza do intelecto? A pureza do intelecto é a realização, através da luta pelas virtudes, da iluminação divina". É fruto do esforço ascético pelas virtudes. A prática das virtudes aumenta a graça no homem, e ao trazer a graça ao intelecto purifica-o dos pensamentos impuros. É através do ascetismo que o intelecto de um santo torna-se puro, claro e discernente. "A pureza da alma era um carisma original de nossa natureza. Até que tenha sido purificada das paixões, a alma não está curada da doença do pecado e não é capaz de alcançar a glória que perdeu devido a sua transgressão. Se o homem se torna digno de purificação - da saúde da alma - seu intelecto verdadeiramente recebe em si a alegria através da consciência espiritual, pois ele se torna um filho de Deus e um irmão de Cristo". 

Se ele supera as paixões, o homem alcança a pureza da alma. O "obscurecimento do intelecto" provém da falta de compaixão e da indolência. As virtudes são "as asas do intelecto", as quais o ajudam a subir aos céus. Cristo enviou o Espírito Santo aos Seus apóstolos, e o Espírito Santo purificou seus intelectos e os fez perfeitos, mortificando neles o velho homem das paixões e trazendo vida ao homem novo e espiritual".

Fragmentado por pensamentos pecaminosos e impuros, o intelecto se recolhe através da oração, do silêncio e das outras práticas ascéticas. Quando o intelecto se liberta através arrependimento de sua estreita ligação com as paixões, no primeiro momento é como um pássaro que teve as suas asas cortadas. Ele se esforça para se elevar acima das coisas terrenas por meio da oração, mas não consegue, estando amarrado à terra. A capacidade de voar só é possível depois de uma longa luta pelas virtudes, pois é então que ele se recolhe e aprende a voar.

O amor de Deus é um poder que conduz o intelecto a si mesmo. A leitura de hinos e salmos, a reflexão sobre a morte e a esperança da vida futura são "coisas que recolhem o intelecto e o protegem da fragmentação". O intelecto é destinado a reinar sobre as paixões, dominar os sentidos, e controlá-los.

O propósito de todas as leis e mandamentos de Deus é a pureza de coração. Deus fez-se carne para purificar nossos corações e almas do mal e trazê-los de volta ao seu estado original. Mas há uma certa diferença entre pureza de coração e pureza do intelecto. São Isaque escreve: "Em que a pureza do intelecto difere da pureza do coração? A pureza do intelecto é uma coisa, mas a pureza do coração é outra. Pois o intelecto é um dos sentidos da alma, mas o coração inclui os sentidos interiores e os governa. Ele é a raiz deles. E se a raiz é santa, então os ramos também são santos. Se, então, o coração é purificado, claramente todos os sentidos são purificados". 

O coração adquire a pureza por meio de muitas provações, tribulações, lágrimas e pela mortificação de tudo o que é do mundo. As lágrimas purificam o coração da impureza. À pergunta: qual é o sinal pelo qual se pode saber se o homem alcançou a pureza de coração, São Isaque responde: "Quando ele vê todos os homens como bons, e ninguém lhe parece ser impuro ou profano". 

A pureza do coração e do intelecto é adquirido através do ascetismo. "O ascetismo é a mãe da santidade". A prática silenciosa da virtude corporal purifica o corpo da matéria que ali se encontra.  Entretanto, o "esforço físico extenuante, sem a pureza do intelecto, é como um útero estéril e seios murchos. De tal maneira não é possível aproximar-se do Conhecimento de Deus, fatiga-se o corpo, mas não erradica-se as paixões do intelecto. Assim, não há proveito". 

O sinal da pureza é: regozijar com aqueles que se regozijam e chorar com os que choram;  sofrer com os doentes e chorar com os pecadores; alegrar-se com o arrependido e participar da agonia daqueles que sofrem; criticar ninguém e, na pureza da própria mente, ver todos os homens como bons e santos.

O intelecto não pode ser purificado nem pode ser glorificado com Cristo se o corpo não sofre com e por Cristo; a glória do corpo é a "submissão comedida diante de Deus, e a glória do intelecto é a verdadeira visão de Deus". A beleza da temperança é alcançada pelo jejum, pela oração e pelas lágrimas. A pureza do coração e do intelecto, a cura do intelecto e dos outros órgãos do conhecimento, tudo isso é fruto de um longo esforço sob a graça, no ascetismo. No intelecto puro do asceta da fé, brota aquela fonte de luz que derrama doçura sobre o mistério da vida e do mundo.


sábado, 25 de novembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Homem (Kallistos Ware) [Parte 5/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade


Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo.
2 Coríntios 5:19

Tenha sede de Jesus, e ele irá satisfazê-lo com seu amor.
São Isaac, o Sírio

Abba Isaac disse: ‘Uma vez eu estava sentado com Abba Poemen, e vi que ele estava em êxtase; e, como eu costumava falar muito abertamente com ele, fiz uma prostração diante dele e perguntei-lhe: "Diga-me, onde você estava?" E ele não quis me contar.  Mas quando o pressionei, ele respondeu: "Meus pensamentos estavam com Santa Maria, a Mãe de Deus, enquanto ela estava de pé e chorava diante da Cruz do Salvador; e eu gostaria de sempre poder chorar tanto quanto ela chorou naquele momento. 
Os Ditos dos Padres do Deserto


Nosso companheiro no Caminho

No final de The Waste Land T. S. Eliot escreve:

Quem é o terceiro que anda sempre ao seu lado?

Quando eu conto, há apenas você e eu juntos

Mas quando olho para a frente na estrada branca

Há sempre outro caminhando ao seu lado ...

Ele explica nas notas que ele tinha em mente a história contada sobre a expedição antártica de Shackleton: como o grupo de exploradores, ao chegarem no extremo de sua força, sentiram repetidamente que havia mais um membro além daqueles que podiam ser contados. Muito antes de Shackleton, rei Nabucodonosor da Babilônia teve uma experiência semelhante: "Não lançamos nós, dentro do fogo, três homens atados? Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem sofrer nenhum dano; e o aspecto do quarto é semelhante ao Filho de Deus." (Daniel 3: 24-25).

Tal é para nós o significado de Jesus nosso Salvador. Ele é aquele que anda sempre junto a nós quando chegamos no extremo da nossa força, que está conosco no gelo ou na fornalha de fogo. A cada um de nós, no momento da nossa maior solidão ou prova, esta frase é dita: você não está sozinho; você tem um companheiro.

Terminamos nosso último capítulo falando sobre a alienação e o exílio do homem. Vimos como o pecado, original e pessoal, estabeleceu entre Deus e o homem um abismo que o homem, por seus próprios esforços, não pode transpor. Cortado de seu Criador, separado de seus semelhantes, interiormente fragmentado, o homem caído não tem o poder de curar-se. Onde, perguntamos, uma cura podia ser encontrada? Vimos também como a Trindade, como um Deus de amor pessoal, não poderia permanecer indiferente ao sofrimento do homem, mas estava envolvido nele. Até que ponto o envolvimento divino tem sido feito?

A resposta é que foi feito até o maior alcance possível.  Como o homem não podia vir a Deus, Deus veio ao homem, identificando-se com o homem de maneira mais direta. O eterno Logos e o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, tornou-se homem verdadeiro, um de nós; Ele curou e restaurou a nossa humanidade, assumindo tudo em si mesmo. Nas palavras do Credo: "Creio em... um só Senhor, Jesus Cristo... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, consubstancial ao Pai...E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria..." Este, então, é nosso companheiro no gelo ou no fogo: o Senhor Jesus que se fez carne no seio da Virgem, um da Trindade e, ainda assim, um de nós, nosso Deus e, ainda assim, nosso irmão. 

Senhor Jesus, tem piedade

Em uma seção anterior, exploramos o significado trinitário da Oração de Jesus, 'Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim, pecador'. Consideremos agora o que ela tem para nos dizer sobre a encarnação de Jesus Cristo, e sobre nossa cura por e nele.

Há na oração de Jesus dois "pólos" ou pontos extremos. "Senhor ... Filho de Deus": a Oração fala primeiro sobre a glória de Deus, aclamando Jesus como o Senhor de toda a criação e do Filho eterno. Em seguida, na sua conclusão a oração se volta para a nossa condição de pecadores - pecadores, em virtude da queda, pecadores por nossos atos pessoais de transgressão: ‘... de mim, pecador’. (Em seu significado literal, o texto grego é ainda mais enfático, dizendo "sobre mim o pecador", como se eu fosse o único.)

Assim, a oração começa com adoração e termina com penitência. Quem ou o que vai conciliar estes dois extremos de glória divina e pecaminosidade humana? Há três palavras na Oração que dão a resposta. O primeiro é "Jesus", o nome pessoal conferido a Cristo após o nascimento humano da Virgem Maria. Esse tem o sentido de de Salvador: como o anjo disse ao pai adotivo de Cristo, São José: "Chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados." (Mateus 1:21).

A segunda palavra é o título "Cristo", o equivalente grego do "Messias" hebraico, que significa o Ungido - ungido, isto é, pelo Espírito Santo de Deus. Para o povo judeu da Antiga Aliança, o Messias era o libertador vindouro, o futuro rei, que no poder do Espírito os libertaria de seus inimigos.

A terceira palavra é "piedade", termo que significa amor em ação, amor trabalhando para trazer o perdão, a libertação e a totalidade. Ter misericórdia é absolver o outro da culpa que, por meio de seus próprios esforços, ele não pode se purificar, liberá-lo das dívidas que ele próprio não pode pagar, para torná-lo curado da doença a qual ele sozinho não consegue achar qualquer cura. O termo "piedade" significa, além disso, que tudo isso é conferido como um presente gratuito: aquele que pede piedade não tem reivindicações sobre o outro, nenhum direito sobre o qual ele pode recorrer.

A Oração de Jesus, então, indica o problema do homem e a solução de Deus. Jesus é o Salvador, o rei ungido, aquele que tem piedade. Mas a Oração também nos diz algo sobre a pessoa do próprio Jesus. Ele é tratado como "Senhor" e "Filho de Deus": aqui a Oração fala de sua Divindade, de sua transcendência e eternidade. Mas ele é tratado igualmente como "Jesus", isto é, pelo nome pessoal que sua mãe e seu pai adotivo lhe deram após seu nascimento humano em Belém. Assim, a Oração fala também de sua humanidade, da realidade genuína de seu nascimento como um ser humano.

A Oração de Jesus é, portanto, uma afirmação de fé em Jesus Cristo, como verdadeiramente divino e plenamente humano. Ele é o Theanthropos ou ‘Deus-homem’, que nos salva dos nossos pecados, precisamente porque ele é Deus e homem ao mesmo tempo. O homem não poderia ir até Deus, então Deus veio ao homem - tornando-se homem. Em seu amor transbordante ou 'extático', Deus une-se à sua criação na união mais estreita possível, por si mesmo tornando-se aquilo que ele criou. Deus, como homem, cumpre a tarefa mediadora que o homem rejeitou na queda. Jesus, nosso Salvador preenche o abismo entre Deus e o homem, porque ele é ambos ao mesmo tempo.  Como dizemos em um dos hinos ortodoxos para véspera de Natal, "O céu e a terra estão unidos hoje, porque Cristo nasceu. Hoje Deus desceu à terra, e o homem subiu ao céu."

A Encarnação, então, é ato supremo de libertação vindo de Deus, restaurando-nos à comunhão com ele mesmo. Mas o que teria acontecido se nunca tivesse havido uma queda? Deus teria escolhido se tornar homem, mesmo se caso o homem nunca tivesse pecado? A encarnação deve ser considerada simplesmente como a resposta de Deus à situação do homem caído, ou é de alguma forma parte do propósito eterno de Deus? Devemos olhar para além da queda e ver o ato de Deus de tornar-se homem como o cumprimento do verdadeiro destino do homem?

A esta questão hipotética, não é possível para nós, na nossa situação atual, dar qualquer resposta final. Vivendo, como nós, nas condições da queda, não podemos imaginar claramente qual teria sido a relação de Deus com a humanidade, se a queda nunca tivesse ocorrido. Os escritores cristãos, portanto, na maioria dos casos, limitaram sua discussão sobre a Encarnação ao contexto do estado caído do homem. Mas há alguns que se arriscaram a ter uma visão mais ampla, mais notavelmente São Isaac, o Sírio e São Máximo, o Confessor no Oriente, e Duns Scotus no Ocidente. A Encarnação, diz São Isaac, é a coisa mais abençoada e alegre que poderia ter acontecido com a raça humana. Será correto, então, atribuir como causa desse acontecimento alegre algo que talvez nunca tenha ocorrido, e de fato nunca deveria ter sido feito? Certamente, insiste São Isaque, a assunção de Deus de nossa humanidade deve ser entendida não apenas como um ato de restauração, não apenas como resposta ao pecado do homem, mas também e mais fundamentalmente como um ato de amor, uma expressão da própria natureza de Deus. Mesmo que não houvesse queda, Deus, em seu amor ilimitado e transbordante, ainda teria escolhido identificar-se com sua criação tornando-se homem.

A encarnação de Cristo, vista dessa maneira, produz mais do que uma inversão da queda, mais que uma restauração do homem em seu estado original no Paraíso. Quando Deus se torna homem, isso marca o início de um estágio essencialmente novo na história do homem, e não apenas um retorno ao passado. A Encarnação eleva o homem a um novo nível; o último estado é maior que o primeiro. Só em Jesus Cristo vemos revelado todas as possibilidades de nossa natureza humana; até ele nascer, as verdadeiras implicações de nossa personalidade ainda estão escondidas de nós. O nascimento de Cristo, como diz São Basílio, é "o natalício de toda a raça humana"; Cristo é o primeiro homem perfeito - perfeito, isto é, não apenas em um sentido potencial, como Adão estava em sua inocência antes da queda, mas no sentido da "semelhança" plenamente realizada. A Encarnação, portanto, não é simplesmente uma maneira de desfazer os efeitos do pecado original, mas é um estágio essencial na jornada do homem, da imagem divina à semelhança divina. A verdadeira imagem e semelhança de Deus é o próprio Cristo; e assim, desde o primeiro momento da criação do homem à imagem, a encarnação de Cristo já estava de alguma forma implícita. A verdadeira razão para a encarnação, então, não reside no pecado do homem, mas na sua natureza não-caída como um ser feito à imagem divina e capaz de união com Deus.

Duplo, porém uno

A fé ortodoxa na Encarnação é resumida no refrão do hino de Natal de São Romanos, o Melodista: "Um filho recém-nascido, Deus antes dos séculos". Contido nesta breve frase há três afirmações:

1. Jesus Cristo é plenamente e completamente Deus.

2. Jesus Cristo é plenamente e completamente homem.

3. Jesus Cristo não é duas pessoas, mas uma.

Isto é explicado em grande detalhe pelos Concílios Ecumênicos. Assim como os dois primeiros entre os sete estiveram preocupados com a doutrina da Trindade, os cinco últimos estiveram preocupados com a doutrina da Encarnação.

O terceiro Concílio (Ephesus, 431) afirmou que a Virgem Maria é a Theotokos, 'Deípara' ou 'Mãe de Deus'. Implícito neste título está uma afirmação, não primariamente sobre a Virgem, mas sobre Cristo: Deus nasceu. A Virgem é Mãe, não de uma pessoa humana unida à pessoa divina do Logos, mas de uma pessoa única e indivisa, que é Deus e homem ao mesmo tempo.

O quarto Concílio (Calcedônia, 451) proclamou que há em Jesus Cristo duas naturezas, uma divina e a outra humana. De acordo com sua natureza divina, Cristo é "um em essência" (homoousios) com Deus Pai; de acordo com sua natureza humana, ele é homoousios com nós, homens. De acordo com sua natureza divina, isto é, ele é plenamente e completamente Deus: ele é a segunda pessoa da Trindade, o único Filho unigênito e eterno do Pai eterno, nascido do Pai antes de todas as épocas. De acordo com sua natureza humana, ele é plenamente e completamente homem: nascido em Belém como um filho humano da Virgem Maria, ele não tem apenas um corpo humano como o nosso, mas uma alma e intelecto humano. No entanto, embora o Cristo encarnado exista "em duas naturezas", ele é uma pessoa, única e indivisa, e não duas pessoas que coexistem no mesmo corpo.

O quinto Concílio (Constantinopla, 553), desenvolvendo o que foi dito pelo terceiro, ensinou que "Um da Trindade sofreu na carne". Assim como é legítimo dizer que Deus nasceu, assim temos o direito de afirmar que Deus morreu. Em cada caso, é claro, especificamos que é Deus-feito-homem, de quem isso é dito. Deus em sua transcendência não está sujeito nem ao nascimento nem à morte, mas o Logos encarnado efetivamente passou por essas coisas.

O sexto Concílio (Constantinopla, 680-1), tomando o que foi dito no quarto, afirmou que, assim como há em Cristo duas naturezas, divinas e humanas, então há em Cristo não só uma vontade divina, mas também uma vontade humana; pois se Cristo não tivesse vontade humana como a nossa, ele não seria verdadeiramente homem como nós. No entanto, essas duas vontades não são contrárias e opostas uma às outra, pois a vontade humana é sempre livremente obediente a divina.

O sétimo Concílio (Nicaea, 787), colocando o selo nos quatro que precederam, proclamou que, uma vez que Cristo se tornou homem verdadeiro, é legítimo representar seu rosto sobre os santos ícones; e, como Cristo é uma pessoa e não duas, esses ícones não nos mostram apenas a humanidade dele em separação de sua divindade, mas nos mostram a pessoa do eterno Logos encarnado.

Há, portanto, um contraste na formulação técnica entre a doutrina da Trindade e a da Encarnação. No caso da Trindade, afirmamos uma única essência ou natureza específica em três pessoas; e em virtude da unidade específica de essência, as três pessoas têm apenas uma única vontade ou energia. No caso do Cristo encarnado, por outro lado, existem duas naturezas, uma divina e a outra humana, mas há apenas uma única pessoa, o eterno Logos que se tornou homem. E que as três pessoas divinas da Trindade tem apenas uma única vontade e energia, a única pessoa do Cristo Encarnado tem duas vontades e energias, dependendo respectivamente de suas duas naturezas. No entanto, apesar de existir no Cristo encarnado duas naturezas e duas vontades, isso não destrói a unidade de sua pessoa: tudo no Evangelho que é falado, realizado ou sofrido por Cristo deve ser atribuído a um único e mesmo sujeito pessoal, o eterno Filho de Deus que agora nasceu como homem no espaço e do tempo.

Subjacente às definições conciliares sobre Cristo como Deus e homem, existem dois princípios básicos em relação à nossa salvação. Primeiro, só Deus pode nos salvar. Um profeta ou um mestre de justiça e retidão não podem ser o redentor do mundo. Se, então, Cristo deve ser nosso Salvador, ele deve ser plenamente e completamente Deus. Em segundo lugar, a salvação deve atingir o ponto da necessidade humana. Somente se Cristo é plenamente e completamente um homem como somos, nós podemos compartilhar o que ele fez por nós.

Seria, portanto, fatal para a doutrina da nossa salvação se considerássemos Cristo da maneira que os arianos fizeram, como uma espécie de demi-deus situado numa região sombria intermediária entre a humanidade e a divindade. A doutrina cristã da nossa salvação exige que sejamos maximalistas. Não devemos pensar nele como "metade e metade". Jesus Cristo não é cinquenta por cento Deus e cinquenta por cento homem, mas cem por cento Deus e cem por cento homem. Na frase epigramática de São Leão Magno, ele é totus in suis, totus in nostris, "completo no que é dele, completo no que é nosso".

Complete no que é dele: Jesus Cristo é a nossa janela para o reino divino, mostrando-nos o que Deus é. "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou." (João 1:18).

Complete no que é nosso: Jesus Cristo é o segundo Adão, mostrando-nos o verdadeiro caráter de nossa personalidade humana. Deus apenas é o homem perfeito.

Quem é Deus? Quem sou eu? Para ambas as perguntas, Jesus Cristo nos dá a resposta.

Salvação como Compartilhamento 

A mensagem cristã da salvação pode ser resumida em termos de compartilhamento, solidariedade e identificação. A noção de compartilhamento é uma chave tanto para a doutrina de Deus na Trindade quanto para a doutrina de Deus feito homem. A doutrina da Trindade afirma que, assim como o homem é autenticamente pessoal somente quando ele compartilha com os outros, da mesma forma Deus não é uma pessoa apenas, mas três pessoas que compartilham a vida uns dos outros em perfeito amor. A Encarnação igualmente é uma doutrina de compartilhamento ou participação. Cristo compartilha ao máximo no que somos, e assim ele nos permite compartilhar no que ele é, na sua vida e glória divina. Ele se tornou o que somos, de modo a tornar-nos o que ele é.

São Paulo expressa isso metaforicamente em termos de riqueza e pobreza: "Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos." (2 Coríntios 8 : 9). As riquezas de Cristo são a sua glória eterna; a pobreza de Cristo é sua autoidentificação completa com nossa condição humana caída. Nas palavras de um hino de Natal ortodoxo, ‘Compartilhando totalmente em nossa pobreza, fizeste divina a nossa natureza terrena pela tua união com ela e participação na mesma.’ Cristo compartilha em nossa morte e compartilhamos sua vida; Ele "se esvazia e nós somos exaltados" (Filipenses 2: 5-9). A descida de Deus possibilita a ascensão do homem. São Máximo, o Confessor, escreve: "Inefavelmente o infinito se limita, enquanto o finito se expande para a medida do infinito".

Como Cristo disse na Última Ceia: "E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. 23 Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade" (João 17: 22-23). Cristo nos permite compartilhar a glória divina do Pai. Ele é o vínculo e o ponto de encontro: porque ele é homem, ele é um conosco; porque ele é Deus, ele é um com o Pai. Assim, através dele e nele, somos um com Deus, e a glória do Pai se torna a nossa glória. A Encarnação de Deus abre o caminho para a deificação do homem. Ser deificado é, mais especificamente, ser "cristificado": a semelhança divina que somos chamados a alcançar é a semelhança de Cristo. É através de Jesus, o Deus-homem, que nós, homens, somos "endeusados", "divinizados", feitos "participantes na natureza divina" (2 Pedro 1: 4). Ao assumir a nossa humanidade, Cristo, que é filho de Deus por natureza, nos fez filhos de Deus pela graça. Nele, somos "adotados" por Deus Pai, tornando-nos filhos-no-Filho.

Essa noção de salvação como compartilhamento implica duas coisas em particular sobre a Encarnação. Primeiro, implica que Cristo não tomou apenas um corpo humano como o nosso, mas também um espírito humano, mente e alma como a nossa. O pecado, como vimos, tem sua fonte não de baixo, mas de cima; não é físico em sua origem, mas espiritual. O aspecto do homem, portanto, que exige ser redimido não é primariamente seu corpo, mas sua vontade e seu centro de escolha moral. Se Cristo não tivesse uma mente humana, isso prejudicaria fatalmente o segundo princípio da salvação, que a salvação divina deve atingir ao ponto da necessidade humana.

A importância desse princípio reafirmou-se durante a segunda metade do século IV, quando Apollinarius avançou a teoria - pela qual ele foi rapidamente condenado como herege - que na Encarnação Cristo tomou apenas um corpo humano, mas nenhum intelecto humano ou alma racional. A isto São Gregório, o Teólogo respondeu: "O que não foi assumido não foi curado". Cristo, isto é, nos salva tornando-se o que somos; ele nos cura tomando nossa humanidade fragmentada em si mesmo, "assumindo-a" como sua, entrando em nossa experiência humana e conhecendo-a de dentro, como sendo ele mesmo um de nós. Mas, se o seu compartilhamento de nossa humanidade tivesse sido de alguma forma incompleto, a salvação do homem também seria incompleta. Se acreditarmos que Cristo nos trouxe uma salvação total, segue-se que ele assumiu tudo.

Em segundo lugar, essa noção de salvação como compartilhamento implica - embora muitos tenham relutado em dizer isso abertamente - que Cristo assumiu não só a natureza não-caída, mas a natureza humana caída. Como a Epístola aos Hebreus insiste (e em todo o Novo Testamento não há texto cristológico mais importante do que esse): "Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado."(4:15). Cristo vive sua vida na Terra sob as condições da queda. Ele mesmo não é uma pessoa pecadora, mas em sua solidariedade com o homem caído, ele aceita plenamente as consequências do pecado de Adão. Ele aceita o máximo. não só as conseqüências físicas, como o cansaço, a dor corporal e, eventualmente, a separação do corpo e da alma na morte. Ele aceita também as consequências morais, a solidão, a alienação, o conflito interno. Pode parecer uma coisa ousada atribuir tudo isso ao Deus vivo, mas uma doutrina consistente da Encarnação não exige nada menos. Se Cristo tivesse meramente assumido a natureza humana não-caída, vivendo sua vida terrena na situação de Adão no Paraíso, então ele não teria se compadecido das nossas fraquezas, nem teria sido tentado em tudo exatamente como nós somos. E nesse caso ele não seria nosso Salvador.

São Paulo chega a escrever: "Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado" (2 Coríntios 5:21). Não devemos pensar aqui somente em termos de uma transação jurídica, pela qual Cristo, ele mesmo sem culpa, de alguma forma tem nossa culpa "imputada" a ele de maneira externa.  Muito mais do que isso está envolvido. Cristo nos salva experimentando de dentro, como um de nós, tudo o que sofremos interiormente através da vida em um mundo pecaminoso.

Por que um Nascimento Virginal?

No Novo Testamento é claramente afirmado que a Mãe de Jesus Cristo era virgem (Mateus 1:18, 23, 25). Nosso Senhor tem um Pai eterno nos céus, mas nenhum pai na terra. Ele foi gerado fora do tempo do Pai sem uma mãe, e foi gerado dentro do tempo de sua mãe sem um pai. Essa crença no Nascimento Virginal não prejudica, de maneira alguma, a plenitude da humanidade de Cristo. Embora a Mãe fosse virgem, ainda assim houve um verdadeiro nascimento humano de um bebê genuinamente humano.

Porém, perguntamos, por que seu nascimento como homem teve que tomar essa forma especial? A isto, pode-se responder que a virgindade da Mãe serve como um "sinal" da singularidade do filho.  Isso é feito de três maneiras intimamente conectadas. Primeiro, o fato de Cristo não ter um pai terreno significa que ele aponta sempre além de sua situação no espaço e no tempo, para sua origem celestial e eterna. O filho de Maria é verdadeiramente homem, mas ele não é apenas homem; ele está dentro da história, mas também acima da história. Seu nascimento de uma virgem enfatiza que, enquanto imanente, ele também é transcendente; embora completamente homem, ele também é Deus perfeito.

Em segundo lugar, o fato de que a Mãe de Cristo era virgem indica que seu nascimento deve ser atribuído de maneira única à iniciativa divina. Embora ele seja plenamente humano, seu nascimento não foi o resultado da união sexual entre homem e mulher, mas foi de uma maneira especial o trabalho direto de Deus.

Em terceiro lugar, o nascimento de Cristo de uma virgem acentua que a Encarnação não envolveu o surgimento de uma nova pessoa. Quando uma criança nasce de dois pais humanos de maneira comum, uma nova pessoa começa a existir. Mas a pessoa do Cristo encarnado não é senão a segunda pessoa da Santíssima Trindade. No nascimento de Cristo, portanto, nenhuma pessoa nova surgiu, mas a pessoa preexistente do Filho de Deus agora passa a viver de acordo com um modo de ser humano e divino. Assim, o nascimento virginal reflete a eterna pré-existência de Cristo.

Porque a pessoa de Cristo encarnado é a mesma que a pessoa do Logos, a Virgem Maria pode justamente ter o título de Theotokos, 'Deipara'. Ela é mãe, não de um filho humano unido ao Filho divino, mas de um filho humano que é o Filho unigênito de Deus. O filho de Maria é a mesma pessoa que o Filho divino de Deus; e assim, em virtude da encarnação, Maria é, verdadeiramente, a "Mãe de Deus".

A Ortodoxia, embora tenha em alta honra o papel da Santíssima Virgem como Mãe de Cristo, não vê necessidade de qualquer dogma da 'Imaculada Conceição'. Conforme definido pela Igreja Católica Romana em 1854, esta doutrina afirma que Maria, "desde o primeiro momento de sua concepção" por sua mãe, Santa Ana, foi isenta de "toda mancha da culpa original". Deve-se ter dois pontos em mente aqui.  Primeiro, como já observamos, a Ortodoxia não encara a queda nos termos agostinianos, como uma mancha de culpa herdada. Se nós ortodoxos tivéssemos aceitado a visão latina da culpa original, poderíamos ter sentido a necessidade de afirmar uma doutrina da Imaculada Conceição. Tal como é, nossos termos de referência são diferentes; o dogma latino parece-nos não propriamente incorreto, mas supérfluo. Em segundo lugar, para a ortodoxia, a Virgem Maria constitui, juntamente com São João Batista, a coroa e a culminação da santidade do Antigo Testamento. Ela é uma figura "vínculo": o último e maior dos justos homens e mulheres da Antiga Aliança, ela é ao mesmo tempo o coração escondido da Igreja Apostólica (ver Atos 1:14). Mas a doutrina da Imaculada Conceição parece-nos tirar a Virgem Maria da Antiga Aliança e colocá-la, por antecipação, inteiramente na Nova. No ensinamento latino, ela já não mais está em pé de igualdade com os outros santos do Antigo Testamento, e, por isso, seu papel como "vínculo" é enfraquecido.

Embora não aceite a doutrina latina da Imaculada Conceição, a ortodoxia em seu culto litúrgico aborda a Mãe de Deus como "impecável" (achrantos), "toda-santa" (panagia), "completamente sem mácula" (panamomos). Nós, ortodoxos, acreditamos que depois de sua morte, ela foi elevada ao céu, onde agora habita - com seu corpo, bem como a sua alma - na glória eterna com seu Filho. Ela é para nós "a alegria de toda a criação" (Liturgia de São Basílio), "flor da raça humana e portão do céu" (Dogmatikon em Tom Um), "tesouro precioso do mundo inteiro" (São Cirilo de Alexandria). E com São Ephrem, o Sírio, dizemos:

Só tu, ó Jesus, com a tua mãe, é belo em todos os sentidos;

Pois não há mácula em ti, meu Senhor, e nenhuma mácula em tua mãe.

A partir disto, pode-se ver quão elevada é a honra que, nós, ortodoxos atribuímos à Santa Virgem em nossa teologia e oração. Ela é para nós a oferta suprema feita pela raça humana a Deus. Nas palavras de um hino de Natal:

O que vamos oferecer-te, ó Cristo,

Tu, que, por nossa causa, apareceu na terra como homem?

Cada criatura feita por ti ti oferece graças.

Os anjos te oferecem um hino; os céus, uma estrela;

Os magos, presentes; os pastores, a admiração deles;

A terra, a sua caverna; o deserto, uma manjedoura;

E nós oferecemos-lhe - uma Mãe Virgem.

Obediente até à Morte

A Encarnação de Cristo já é um ato de salvação. Ao assumir nossa humanidade caída em si mesmo, Cristo restaura e, nas palavras de outro hino de Natal, "eleva a imagem caída". Mas nesse caso, por que era necessária uma morte na Cruz? Não era suficiente para um da Trindade viver como um homem na Terra, pensar, sentir e ter vontade como um homem, sem ter que morrer também como homem?

Em um mundo não-caído, a Encarnação de Cristo teria sido a expressão perfeita do amor transbordante de Deus. Mas em um mundo caído e pecaminoso, seu amor teve que ir ainda mais longe. Por causa da trágica presença do pecado e do mal, a obra da restauração do homem revelou-se infinitamente onerosa. Era necessário um ato sacrificial de cura, um sacrifício como, por exemplo, apenas um Deus crucificado e que sofre poderia oferecer. 

A Encarnação, dissemos anteriormente, é um ato de identificação e compartilhamento. Deus nos salva identificando-se conosco, conhecendo nossa experiência humana por dentro. A Cruz significa, da maneira mais severa e firme, que este ato de compartilhar é levado aos limites máximos. Deus encarnado entra em toda a nossa experiência. Jesus Cristo, nosso companheiro, compartilha não apenas na plenitude da vida humana, mas também na plenitude da morte humana. 'Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si'  (Isaías 53: 4) - todas nossas enfermidades e dores. "O que não foi assumido, não foi curado.": mas Cristo, nosso curador, assumiu em si mesmo tudo, até a morte.

A morte tem um aspecto físico e espiritual, e dos dois é o espiritual o mais terrível. A morte física é a separação do corpo do homem de sua alma; a morte espiritual, a separação da alma do homem de Deus. Quando dizemos que Cristo tornou-se "obediente até à morte" (Filipenses 2: 8), não devemos limitar essas palavras apenas à morte física. Não devemos pensar apenas nos sofrimentos corporais que Cristo sofreu em sua paixão - a flagelação, o cambalear sob o peso da cruz, os pregos, a sede e o calor, o tormento de estar pendurado, esticado na madeira. O verdadeiro significado da Paixão deve ser encontrado, não só nestes, mas muito mais em seus sofrimentos espirituais - em seu senso de fracasso, isolamento e solidão total, na dor do amor oferecido, mas rejeitado.

Os Evangelhos são compreensivelmente reservados ao falar sobre esse sofrimento interno, mas eles nos fornecem certos vislumbres. Primeiro, há a Agonia de Cristo no jardim de Getsêmani, quando ele está sobrecarregado pelo horror e consternação, quando reza em angústia ao Pai: "Se for possível, afasta de mim este cálice" (Mateus 26:39) , e quando seu suor cai no chão "como grandes gotas de sangue" (Lucas 22:44). Getsêmani, como insistia o Metropolita Antônio de Kiev, fornece a chave para toda a nossa doutrina da Expiação. Cristo é confrontado com uma escolha. Sob nenhuma compulsão para morrer, livremente escolhe fazê-lo; e por este ato de auto-oferta voluntária ele transforma o que teria sido uma violência arbitrária, um assassinato judicial, em um sacrifício redentor. Mas este ato de livre escolha é imensamente difícil. Resolvendo avançar para a prisão e a crucificação, Jesus experimenta, nas palavras de William Law, "os terrores angustiantes de uma alma perdida ... a realidade da morte eterna". O peso total deve ser dado às palavras de Cristo em Getsêmani: "A minha alma está cheia de tristeza até a morte" (Mateus 26:38). Neste momento Jesus entra totalmente na experiência da morte espiritual. Ele está neste momento se identificando com todo o desespero e a dor mental da humanidade; e essa identificação é muito mais importante para nós do que sua participação em nossa dor física.

Um segundo vislumbre nos é dado na Crucificação, quando Cristo clama em voz alta: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?' (Mateus 27:46). Mais uma vez, deve-se dar um peso total a estas palavras. Aqui é o ponto extremo da desolação de Cristo, quando ele se sente abandonado não só pelos homens, mas por Deus. Não podemos começar a explicar como é possível alguém que é ele próprio Deus vivo perder a consciência da presença divina.  Mas isso, pelo menos, é evidente. Na paixão de Cristo não há nenhuma encenação, nada é feito para exibição exterior. Cada palavra vinda da cruz significa o que ela diz. E se o clamor 'Meu Deus, meu Deus...' deve significar alguma coisa, deve significar que, neste momento, Jesus está realmente experimentando a morte espiritual da separação de Deus. Ele não só derramou seu sangue por nós, mas, por nossa causa, ele aceita até a perda de Deus. 

"Desceu ao inferno" (Credo dos Apóstolos). Isso significa meramente que Cristo foi pregar aos espíritos que partiram durante o intervalo entre a noite da sexta-feira e a manhã de Páscoa (ver 1 Pet. 3:19)? Certamente, também tem um sentido mais profundo. O inferno é um ponto não no espaço, mas na alma. É o lugar onde Deus não é. (E, no entanto, Deus está em toda parte!) Se Cristo realmente "desceu ao inferno", isso significa que ele desceu nas profundezas da ausência de Deus. Totalmente, sem reservas, identificou-se com a angústia e a alienação de todos os homens. Ele assumiu-as em si mesmo, e assumindo-as, curou-as.  Não havia outro modo de curá-las, exceto tomando-as para si próprio. 

Tal é a mensagem da Cruz para cada um de nós. Por mais que eu tenha que viajar pelo vale da sombra da morte, nunca estou sozinho. Eu tenho um companheiro. E esse companheiro não é apenas um verdadeiro homem como eu sou, mas também Deus verdadeiro do Deus verdadeiro.  No momento da mais profunda humilhação de Cristo na Cruz, ele é o Deus vivo eterno tanto quanto o é em sua Transfiguração em glória sobre o Monte Tabor. Olhando para Cristo crucificado, vejo não só um homem que sofre, mas um Deus que sofre.

Morte como Vitória

A morte de Cristo na Cruz não é um fracasso que, de alguma forma, foi corrigido em seguida por sua Ressurreição. Em si, a morte na cruz é uma vitória. A vitória do que? Só pode haver uma resposta: a vitória do amor que sofre. "O amor é forte como a morte ... Muitas águas não podem apagar este amor" (Cântico dos cânticos 8: 6-7). A Cruz nos mostra um amor que é forte como a morte, um amor que é ainda mais forte.

São João apresenta seu relato da Última Ceia e da Paixão com estas palavras: "tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim."(13:1). "Até o fim" - o grego diz eis telos, que significa 'até o último', 'até o extremo'. E esta palavra telos é retomada mais tarde na exclamação final proferida por Cristo na Cruz: "Está terminado", tetelestai (João 19:30). Isso deve ser entendido, não como uma exclamação de resignação ou desespero, mas como um grito de vitória: está completo, está realizado, está  cumprido.

O que foi cumprido? Respondemos: a obra do amor que sofre, a vitória do amor sobre o ódio. Cristo, nosso Deus, amou os seus até o extremo. Por causa do amor, ele criou o mundo, por causa do amor, ele nasceu neste mundo como homem, por causa do amor, ele assumiu nossa humanidade fragmentada em si mesmo e e tornou-a sua.  Por causa do amor, ele se identificou com toda a nossa angústia. Por causa do amor, ele se ofereceu como um sacrifício, escolhendo em Getsêmani ir voluntariamente à sua Paixão: "Eu dou a minha vida pelas ovelhas... Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou (João 10:15, 18). Foi um amor voluntário, não uma compulsão exterior, que trouxe Jesus a sua morte. Na sua agonia no jardim e na sua crucificação, as forças das trevas o atacam com toda a sua violência, mas não podem mudar a sua compaixão em ódio; elas não podem impedir que seu amor continue sendo ele mesmo. Seu amor é testado ao máximo, mas não é sobrecarregado. "E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam." (João 1:5) À vitória de Cristo sobre a Cruz, podemos aplicar as palavras ditas por um sacerdote russo em sua libertação da prisão: "O sofrimento destruiu todas as coisas. Só uma coisa ficou firme - o amor ".

A Cruz, entendida como vitória, coloca diante de nós o paradoxo da onipotência do amor. Dostoiévski aproxima-se do verdadeiro significado da vitória de Cristo em algumas declarações que ele coloca na boca do Starets Zosima:

Em alguns pensamentos, o homem fica perplexo, sobretudo à vista do pecado humano, e ele se pergunta se deve combatê-lo pela força ou pelo amor humilde. Sempre decida: "Eu vou combatê-lo pelo amor humilde." Se você resolver isso de uma vez por todas, você pode conquistar o mundo inteiro. O amor humilde é uma força terrível: é a mais forte de todas as coisas, e não há nada como ela. 

O amor humilde é uma força terrível: sempre que abandonamos qualquer coisa ou sofremos alguma coisa, não com um sentimento de amargura, de revolta, mas voluntariamente e por amor, isso não nos torna mais fracos, mas mais fortes. Assim, é, sobretudo o caso de Jesus Cristo. "Sua fraqueza era sua força", diz Santo Agostinho. O poder de Deus é mostrado, não tanto na sua criação do mundo, nem em nenhum dos seus milagres, mas sim pelo fato de que, por amor, Deus se esvaziou (Filipenses 2: 7), se derramou em generosa entrega de si, por sua própria escolha livre, consentiu em sofrer e morrer. E este auto-esvaziamento é um self-fulfilment: kenosis é plerosis. Deus nunca é tão forte como quando ele é mais fraco.


O amor e o ódio não são meramente sentimentos subjetivos, afetando o universo interior daqueles que os experimentam, mas são também forças objetivas, alterando o mundo fora de nós mesmos. Ao amar ou odiar outro, faço com que o outro se torne, em certa medida, o que eu vejo nele. Não somente para mim, mas para as vidas de todos ao meu redor, meu amor é criativo, assim como meu ódio é destrutivo. E se isso é verdade para o meu amor, é uma verdade incomparavelmente maior para o amor de Cristo. A vitória de seu amor sofredor sobre a Cruz não apenas me dá um exemplo, mostrando-me o que eu mesmo alcançarei se, pelos meus esforços, imitar ele. Muito mais do que isso, seu amor sofredor tem um efeito criativo sobre mim, transformando meu próprio coração e vontade, liberando-me da escravidão, fazendo-me todo, tornando possível para mim amar de uma maneira que estaria completamente além dos meus poderes se eu não tivesse sido amado primeiro por Ele. Por amor, ele se identificou comigo, sua vitória é minha vitória. E assim a morte de Cristo na Cruz é verdadeiramente - como a Liturgia de São Basílio descreve - uma "morte vivificante".

O sofrimento e a morte de Cristo têm, então, um valor objetivo: ele fez por nós algo que seríamos completamente incapazes de fazer sem ele. Ao mesmo tempo, não devemos dizer que Cristo sofreu "em vez de nós", mas sim que ele sofreu em nosso favor. O Filho de Deus sofreu "até a morte", não para que sejamos isentos do sofrimento, mas que nosso sofrimento seja como o dele. Cristo nos oferece, não é um caminho que contorna o sofrimento, mas um caminho que o atravessa; não uma substituição, mas uma companhia salvífica. 

Tal é o valor da Cruz de Cristo para nós. Tomada em conjunto com a Encarnação e a Transfiguração que a precedem, e com a Ressurreição que a segue - pois todas estas são partes inseparáveis de uma única ação ou "drama" - a Crucificação deve ser entendida como a suprema e perfeita vitória, sacrifício e exemplo. E, em cada caso, a vitória, o sacrifício e o exemplo são aqueles do amor sofredor. Assim, vemos na Cruz:

a perfeita vitória do amor humilde sobre o ódio e o medo;

o sacrifício perfeito ou entrega de si voluntária de compaixão amorosa;

o exemplo perfeito do poder criativo do amor.

Nas palavras de Juliana de Norwich:

Queres tu aprender o teu significado do Senhor nesta coisa? Aprenda bem: o amor era o seu significado. Quem te mostrou? O amor. O que ele te mostrou? O amor. Pelo que ele te mostrou? Pelo amor. Guarda-o e aprenderás e conhecerás mais no mesmo. Mas tu nunca conhecerás nem aprenderás aí outra coisa sem fim. Então disse o nosso bom Senhor Jesus Cristo: Estás satisfeita por eu ter sofrido por você? Eu disse: sim, bom senhor, agradeço-te; Sim, bom Deus, bendito sejas. Então, disse Jesus, nosso amável Senhor: se tu estás satisfeita, me agrada: é uma alegria, uma felicidade, uma satisfação infinita para mim que sofri a Paixão por ti; e se eu pudesse sofrer mais, eu sofreria mais.

Cristo Ressuscitou 

Porque Cristo nosso Deus é homem verdadeiro, ele morreu uma morte plena e genuína na Cruz. Mas porque ele não é apenas homem verdadeiro, mas Deus verdadeiro, porque ele é a própria vida e fonte de vida, essa morte não foi e nem poderia ser a conclusão final.

A Crucificação é, em si, uma vitória; mas na Sexta-Feira Santa a vitória está escondida, ao passo que na Páscoa ela é manifestada. Cristo ressuscita dos mortos e, por sua ressurreição, ele nos livra da ansiedade e do terror: a vitória da cruz é confirmada, o amor é mostrado abertamente como sendo mais forte do que o ódio, e a vida mais forte do que a morte. O próprio Deus morreu e ressuscitou dentre os mortos, e assim não há mais morte: até a morte está cheia de Deus. Porque Cristo ressuscitou, não precisamos mais ter medo de nenhuma força má ou sombria no universo. Como proclamamos todos os anos no serviço pascal da meia-noite, nas palavras atribuídas a São João Crisóstomo:

Que ninguém tenha medo da morte, pois a morte do Salvador nos libertou.

Cristo ressuscitou e os demônios caíram.

Cristo ressuscitou e os anjos se regozijam.

Aqui, como em outros lugares, a ortodoxia é maximalista. Repetimos com São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé". (1 Coríntios 15:14). Como devemos continuar a ser cristãos, se acreditarmos que o cristianismo seja fundado em uma ilusão? Assim como não é adequado tratar Cristo apenas como profeta ou mestre de justiça e retidão, e não como Deus encarnado; portanto, não é suficiente explicar a Ressurreição dizendo que o "espírito" de Cristo viveu de algum modo entre os seus discípulos. Aquele que não é "Deus verdadeiro do Deus verdadeiro", que não conquistou a morte pela morte e ressuscitou dos mortos, não pode ser nossa salvação e nossa esperança. Nós, ortodoxos, acreditamos que houve uma ressurreição genuína dentre os mortos, no sentido de que o corpo humano de Cristo reuniu-se à sua alma humana e que o túmulo estava vazio. Para nós ortodoxos, quando nos envolvemos em diálogos "ecumênicos", uma das divisões mais significativas entre os cristãos contemporâneos é aquela entre aqueles que acreditam na ressurreição e aqueles que não o fazem.

"Vocês são testemunhas dessas coisas" (Lucas 24:48). O Cristo ressuscitado nos envia ao mundo para compartilhar com os outros a "grande alegria" de sua Ressurreição. Pe. Alexander Schmemann escreve:

Desde o início, o cristianismo foi a proclamação da alegria, da única alegria possível na terra ... Sem a proclamação dessa alegria, o cristianismo é incompreensível. É apenas como alegria que a Igreja foi vitoriosa no mundo e perdeu o mundo quando perdeu a alegria, quando deixou de ser testemunha disso. De todas as acusações contra os cristãos, o mais terrível foi proferida por Nietzsche quando ele disse que os cristãos não tinham alegria ... "Pois eis que te trago notícias de grande alegria" - começa assim o Evangelho e seu fim é: "Então eles o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria... "(Lucas 2: 10; 24: 52). E devemos recuperar o significado dessa grande alegria.