quinta-feira, 9 de novembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Trindade (Kallistos Ware) [Parte 3/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade 


Ó Pai, minha esperança:
Ó Filho, meu refúgio:
Ó Espírito Santo, minha proteção:
Santíssima Trindade, glória a ti.
Oração de São João Ioannikios


Ó Trindade, incriada e sem início,
Ó indivisível Unidade, três e uma,
Pai, Filho e Espírito, um só Deus:
Aceite este nosso hino de línguas de barro
Como se fosse de bocas de fogo.  
Do Triodion da Quaresma

Deus como amor mútuo

"Creio um só Deus": assim afirmamos no início do Credo. Mas, em seguida, dizemos muito mais do que isso. Creio, continuamos, em um Deus que é, ao mesmo tempo, três, Pai, Filho e Espírito Santo. Existe em Deus uma verdadeira diversidade bem como uma verdadeira unidade. O Deus cristão não é apenas uma unidade, mas uma união, não apenas unidade, mas comunidade. Existe em Deus algo análogo à "sociedade". Ele não é uma única pessoa, amando a si mesmo, não é uma mônada autônoma ou o "Uno". Ele é a triunidade: três pessoas iguais, cada uma habitando nas outras duas devido a um movimento de amor mútuo. Amo ergo sum, 'Eu amo, logo existo': o título do poema de Kathleen Raine pode ser um lema para o Deus Santíssima Trindade. Aquilo que Shakespeare diz sobre o amor humano entre dois, pode ser aplicado também ao amor divino do eterno Três:

Tanto se amavam que, duas sendo
No amor, só uma eram na essência;
Distintas, mas indivisíveis:
Nelas o amor matava o número.

O fim do Caminho espiritual é que nós, humanos, também façamos parte dessa co-inerência ou perichoresis Trinitária, sendo inteiramente levados para dentro do círculo de amor que existe dentro de Deus. Por isso, Cristo orou a seu Pai na noite anterior a sua Crucificação: "Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim, e eu em ti; que também eles sejam um em nós" (João 17:21).

Por que acreditar que Deus é três? Não é mais fácil acreditar simplesmente na unidade divina, como os judeus e os maometanos fazem? Certamente, é mais fácil. A doutrina da Trindade está diante de nós como um desafio, como uma "cruz" no sentido literal: é, nas palavras de Vladimir Lossky, "uma cruz para modos de pensar humano", e requer de nós um ato radical de metanoia - não apenas um gesto de aprovação formal, mas uma verdadeira mudança de mente e coração.

Por que, então, acreditar em Deus como Trindade? No último capítulo, descobrimos que as duas formas mais úteis de entrada no mistério divino são afirmar que Deus é pessoal e que Deus é amor. Estas duas noções implicam um compartilhamento e reciprocidade. Primeiro, uma "pessoa" não é o mesmo que um "indivíduo". Isolado, auto-dependente, nenhum de nós é uma pessoa autêntica, mas apenas um indivíduo, uma simples unidade tal qual registrada no recenseamento. A egocentricidade é a morte da verdadeira personalidade. Cada um se torna uma pessoa verdadeira apenas ao entrar em relação com outras pessoas, vivendo por elas e nelas. Não pode haver homem, como tem sido dito corretamente, até que haja pelo menos dois homens em comunicação. O mesmo é verdade, em segundo lugar, para o amor. O amor não pode existir isoladamente, mas pressupõe o outro. O amor próprio é a negação do amor. Como Charles Williams mostra de maneira devastadora em seu romance, Descida ao Inferno, o amor próprio é o inferno; pois, levado à sua conclusão final, o amor próprio significa o fim de toda alegria e de todo o sentido. O inferno não é os outros; o inferno é eu mesmo, no egoísmo, separado dos outros.

Deus é muito melhor do que o melhor que conhecemos em nós mesmos. Se o elemento mais precioso em nossa vida é a relação de "Eu e Tu", não podemos deixar de atribuir esse mesmo relacionamento, em certo sentido, ao ser eterno do próprio Deus. E é precisamente isso que significa a doutrina da Santíssima Trindade. No coração da vida divina, desde toda a eternidade Deus se conhece como "Eu e Tu" de uma maneira tripla, e Ele se alegra continuamente nesse conhecimento. Tudo, portanto, que está implícito na nossa compreensão limitada da pessoa humana e do amor humano, afirmamos também em relação ao Deus Trinitário, acrescentando que Nele essas coisas significam infinitamente mais do que podemos imaginar.

A personalidade e o amor significam vida, movimento, descoberta. Portanto, a doutrina da Trindade significa que devemos pensar em Deus em termos que são dinâmicos e não estáticos. Deus não é apenas quietude, repouso, perfeição imutável. Para as nossas imagens do Deus trinitário, devemos observar o vento, a água corrente, as chamas incessantes do fogo. Uma analogia favorita para a Trindade sempre foi a de três tochas queimando com uma única chama. Nos "Ditos dos Pais do Deserto" conta-se como um irmão veio certa vez falar com Abba José de Panepho. "Abba", disse o visitante, "de acordo com a minha força, observo uma modesta regra de oração e jejum, de leitura e silêncio, e até onde posso me mantenho puro em meus pensamentos. O que mais posso fazer?" Em resposta, Abba José ficou de pé e ergueu as mãos para o céu; e seus dedos tornaram-se como dez tochas ardentes. E o ancião disse ao irmão: "Se você quiser, você pode tornar-se por completo como uma chama". Se essa imagem da chama viva nos ajuda a entender a natureza do homem no seu estado mais elevado, ela não poderia também aplicar-se a Deus? As três pessoas da Trindade são "completamente como uma chama".

Mas, no fim, o ícone menos equívoco encontra-se não no mundo físico que está fora de nós, mas no coração humano. A melhor analogia é aquela com a qual começamos: a nossa experiência de cuidar intensamente de outra pessoa e de saber que nosso amor é respondido.

Três Pessoas em Uma Essência

"Eu e o Pai somos um", afirmou Cristo (João 10:30). O que Ele quis dizer?

A fim de responder, examinamos principalmente os dois primeiros dos sete Concílios Ecumênicos ou Universais: o Concílio de Nicéia (325), o primeiro Concílio de Constantinopla (381) e o Credo que formularam. A afirmação central e decisiva no Credo é que Jesus Cristo é "Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", "um em essência" ou "consubstancial" (homoousios) com Deus Pai. Em outras palavras, Jesus Cristo é igual ao Pai: ele é Deus no mesmo sentido que o Pai é Deus e, no entanto, Eles não são dois Deuses, mas um. Ao desenvolver este ensinamento, os Pais Gregos do final do século IV disseram o mesmo sobre o Espírito Santo: Ele também é Deus de verdade, "um em essência" com o Pai e o Filho. Mas, embora o Pai, o Filho e o Espírito sejam um único Deus, cada um é, desde toda a eternidade, uma pessoa, um centro distinto de personalidade consciente. Deus, a Trindade, deve ser descrito como "três pessoas em uma única essência". Existe eternamente em Deus uma verdadeira unidade, combinada com uma diferenciação genuinamente pessoal: o termo "essência", "substância" ou "ser" (ousia) indica a unidade, e o termo "pessoa" (hipóstase, prosopon) indica a diferenciação. Procuremos entender o significado desta linguagem um tanto desconcertante, pois o dogma da Santíssima Trindade é vital para nossa própria salvação.

Pai, Filho e Espírito são um em essência, não apenas no sentido de que os três são exemplos do mesmo grupo ou classe geral, mas no sentido de que eles formam uma realidade singular, única e específica. Existe, a este respeito, uma diferença importante entre o sentido em que as três pessoas divinas são uma, e o sentido em que três pessoas humanas podem ser chamadas de uma. Três pessoas humanas, Pedro, Tiago e João, pertencem à mesma classe geral 'homem'. No entanto, por mais próximamente que cooperem, cada um retém sua própria vontade e sua própria energia, atuando em virtude de seu próprio poder de iniciativa, separados. Em suma, são três homens e não um homem. Mas no caso das três pessoas da Trindade, este não é o caso. Há distinção, mas nunca separação. Pai, Filho e Espírito - assim os santos afirmam, seguindo o testemunho da Escritura - têm apenas uma vontade e não três, apenas uma energia e não três. Nenhum das três atua separadamente, além das outras duas. Não são três deuses, mas um Deus.

No entanto, embora as três pessoas nunca atuem separadamente uma da outra, há em Deus uma verdadeira diversidade, bem como uma unidade específica. Na nossa experiência de Deus, dentro de nossa própria vida, enquanto achamos que as três estão sempre atuando juntas, ainda sabemos que cada uma está agindo dentro de nós de uma maneira diferente. Nós experimentamos Deus como três-em-um, e acreditamos que essa diferenciação tripla na ação externa de Deus reflete uma diferenciação tripla em sua vida interior. A distinção entre as três pessoas deve ser considerada como uma distinção eterna existente na própria natureza de Deus; não se aplica meramente à sua atividade exterior no mundo. Pai, Filho e Espírito não são apenas "modos" ou "disposições" da Divindade, não apenas máscaras que Deus assume por um tempo em suas relações com a criação e depois deixa de lado. Elas são três pessoas co-iguais e co-eternas. Um pai humano é mais velho do que seu filho, mas quando se fala de Deus como "Pai" e "Filho", não devemos interpretar os termos neste sentido literal. Afirmamos sobre o Filho: "Nunca houve um momento em que Ele não era". E o mesmo é dito sobre o Espírito.


Cada uma das três é plena     e completamente Deus. Nenhuma é mais ou menos Deus do que as outras. Cada uma possui, não um terço da Divindade, mas toda a Divindade em sua totalidade; contudo, cada uma vive e é essa Divindade em sua própria maneira distintiva e pessoal. Enfatizando essa unidade-na-diversidade Trinitária, São Gregório de Nissa escreve:

 Tudo o que o Pai é, vemos revelado no Filho; tudo que é o Filho também é o Pai; pois o Filho todo habita no Pai, e Ele tem todo o Pai habitando em si mesmo ... O Filho que existe sempre no Pai nunca pode ser separado Dele, nem o Espírito pode ser dividido do Filho, que através do Espírito opera todas as coisas. Aquele que recebe o Pai também recebe ao mesmo tempo o Filho e o Espírito. É impossível imaginar qualquer tipo de separação ou disjunção entre eles: não se pode pensar no Filho separado do Pai, nem dividir o Espírito do Filho. Há entre os três um compartilhamento e uma diferenciação que estão além das palavras e da compreensão. A distinção entre as pessoas não diminui a unicidade da natureza, nem a unidade compartilhada da essência leva a uma confusão entre as características distintivas das pessoas. Não se surpreenda de que devamos falar da Divindade como sendo ao mesmo tempo unificada e diferenciada. Usando enigmas, por assim dizer, contemplamos uma estranha e paradoxal diversidade-na-unidade e uma unidade-na-diversidade.

"Usando enigmas...": São Gregório se esforça para enfatizar que a doutrina da Trindade é ‘paradoxal’ e que está "além das palavras e da compreensão". É algo revelado por Deus, não demonstrado por nossa própria razão. Podemos sugerí-la por meio da na linguagem humana, mas não podemos explicá-la completamente. Nossos poderes de raciocínio são um dom de Deus, e devemos usá-los ao máximo; mas devemos reconhecer suas limitações. A Trindade não é uma teoria filosófica, mas o Deus vivo a quem adoramos; e, portanto, chegamos no ponto em nossa abordagem da Trindade em que a argumentação e a análise devem dar lugar a oração sem palavras. "Que toda carne mortal fique em silêncio, com temor e tremor" (Liturgia de São Tiago). 

Características Pessoais

A primeira pessoa da Trindade, Deus Pai, é a "fonte" da Divindade, nascente, causa ou princípio de origem para as outras duas pessoas. Ele é o vínculo da unidade entre os três: há um Deus porque existe um só Pai. "A união é o Pai, de quem e a quem a ordem das pessoas segue seu curso" (São Gregório, o Teólogo). As outras duas pessoas são definidas em termos de sua relação com o Pai: o Filho é "gerado" pelo Pai, o Espírito "procede" do Pai. No ocidente latino, geralmente se considera que o Espírito procede "do Pai e do Filho"; e a palavra filioque ('e do Filho') foi adicionada ao texto latino do Credo. A ortodoxia não só considera o filioque como uma adição não-autorizada - pois foi inserida no Credo sem o consentimento do Oriente cristão - mas também que a doutrina da "dupla procissão", como comumente exposta, é teologicamente inexata e espiritualmente prejudicial. De acordo com os Pais Gregos do século IV, a quem a Igreja Ortodoxa segue até hoje, o Pai é a única fonte e fundamento da unidade na Divindade. Tornar o Filho uma fonte, como o Pai, ou em combinação com ele, é arriscar confundir as características distintivas das pessoas.

A segunda pessoa da Trindade é o Filho de Deus, seu “Verbo” ou Logos. Falar desta maneira de Deus como Filho e Pai é, de imediato, implicar um movimento de amor mútuo, tal como indicamos anteriormente. É implícito que, desde toda a eternidade, o próprio Deus, como Filho, em obediência filial e amor, transmite de volta a Deus Pai o ser que o Pai pela dádiva paterna gera eternamente nele. É no Filho e através Dele que o Pai nos é revelado: "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida: ninguém vem ao Pai, senão por mim" (João 14: 6). Foi Ele quem nasceu na terra como homem, da Virgem Maria na cidade de Belém. Mas, como Verbo ou Logos de Deus, ele também está operando antes da Encarnação. Ele é o princípio da ordem e propósito que permeia todas as coisas, atraindo-as para a unidade em Deus e fazendo do universo um "cosmos", um todo harmonioso e integrado. O Criador-Logos transmitiu a cada coisa criada o seu próprio logos interno ou princípio interior, o que faz com que essa coisa seja distintamente ela mesma e que, ao mesmo tempo, a atraia e direcione para Deus. Nossa tarefa humana como artesãos ou fabricantes é discernir este logos interno em cada coisa e torná-lo manifesto; não buscamos dominar, mas sim cooperar.

A terceira pessoa é o Espírito Santo, o "sopro" ou "hálito" de Deus. Mesmo reconhecendo as limitações de classificações muito rígidas, podemos afirmar que o Espírito é Deus dentro de nós, o Filho é Deus conosco e o Pai Deus acima ou além de nós. Assim como o Filho nos mostra o Pai, o Espírito nos mostra o Filho, fazendo-o presente para nós. No entanto, a relação é mútua. O Espírito nos apresenta o Filho, mas é o Filho que nos envia o Espírito. (Observamos que há uma distinção entre a "processão eterna" do Espírito e sua "missão temporal". O Espírito é enviado ao mundo, no tempo, pelo Filho, mas, no que diz respeito à sua origem na vida eterna da Trindade, o Espírito procede somente do Pai.)

Caracterizando cada uma das três pessoas, Synesius de Cyrene escreve:

Salve Pai, fonte do Filho,

Filho, imagem do Pai;

Pai, o terreno onde o Filho está,

Filho, selo do pai;

Pai, o poder do Filho,

Filho, a beleza do Pai;

Puríssimo Espírito, vínculo entre

o Pai e o Filho.

Envia, ó Cristo, o Espírito,

envia o Pai à minha alma;

Incline meu coração árido neste

orvalho, o melhor de todos os teus dons.


Por que falar de Deus como pai e filho e não como mãe e filha? Em si, a Divindade não possui nem masculinidade nem feminilidade. Embora nossas características sexuais humanas como masculino e feminino reflitam, no que elas têm de mais elevado e verdadeiro, um aspecto da vida divina, ainda assim, em Deus, não algo como a sexualidade. Quando, portanto, falamos de Deus como Pai, não estamos falando literalmente, mas em símbolos. No entanto, por que os símbolos devem ser masculinos e não femininos? Por que chamar Deus 'ele' e não 'ela'? Na verdade, os cristãos às vezes aplicaram uma "linguagem materna" a Deus. Aphrahat, um dos primeiros padres siríacos, fala do amor do fiel por "Deus, seu Pai e o Espírito Santo, sua Mãe", ao passo que no ocidente medieval encontramos Juliana de Norwich afirmando: "Deus se alegra de ser nosso Pai, e Deus se alegra de ser nossa Mãe." Mas estas são exceções. Quase sempre, o simbolismo sobre Deus usado pela Bíblia e no culto da Igreja tem sido o simbolismo masculino.

Não podemos provar por argumentos por que deve ser assim, mas continua sendo um fato de nossa experiência cristã que Deus estampou seu selo sobre certos símbolos e não sobre outros. Os símbolos não são escolhidos por nós, mas revelados e dados. Um símbolo pode ser verificado, vivido, orado - mas não "provado" logicamente. Esses símbolos "dados", no entanto, embora não estejam sujeitos a provas, ainda estão longe de serem arbitrários. Como os símbolos nos mitos, na literatura e na arte, nossos símbolos religiosos descem às profundezas das raízes escondidas do nosso ser e não podem ser alterados sem consequências importantes. Se, por exemplo, começássemos a dizer "Mãe Nossa que está no céu", em vez de "Pai Nosso", não estaríamos apenas ajustando uma imagem acidental, mas substituindo o cristianismo por um novo tipo de religião. A Deusa Mãe não é o Senhor da Igreja Cristã.

Por que Deus deve ser uma comunhão de três pessoas divinas, nem menos nem mais? Aqui novamente não pode haver nenhuma prova lógica. A trindade de Deus é algo dado ou revelado na Escritura, na Tradição Apostólica e na experiência dos santos ao longo dos séculos. Tudo o que podemos fazer é verificar esse dado em nossa própria vida de oração.

Qual é exatamente a diferença entre a "geração" do Filho e a "processão" do Espírito? "O modo da geração e a modo da processão são incompreensíveis", diz São João de Damasco. "Foi-nos dito que há uma diferença entre geração e processão, mas qual é a natureza dessa diferença, não entendemos". Se São João de Damasco confessou-se perplexo, então também podemos. Os termos "geração" e "processão" são sinais convencionais para uma realidade muito além da compreensão do nosso raciocínio. "Nosso raciocínio é fraco, e nossa língua ainda é mais fraca", observa São Basílio, o Grande. "É mais fácil medir todo o mar com um pequeno copo do que compreender a grandeza inefável de Deus com a mente humana". Mas, embora não possam ser explicados completamente, esses sinais podem (como já dissemos) ser verificados. Através do nosso encontro com Deus na oração, sabemos que o Espírito não é o mesmo que o Filho, embora não possamos definir em palavras precisamente a diferença.

As Duas Mãos de Deus

Procuremos ilustrar a doutrina da Trindade, observando os padrões triádicos na história da salvação e em nossa própria vida de oração.

As três pessoas, como vimos, trabalham sempre juntas e possuem apenas uma vontade e energia. Santo Irineu fala do Filho e do Espírito como as "duas mãos" de Deus Pai; e em todo ato criativo e santificador, o Pai está usando essas duas "mãos" ao mesmo tempo. A Escritura e o culto fornecem repetido exemplos disso:

1. Criação. "Pela palavra do Senhor foram feitos os céus, e todo o exército deles pelo espírito da sua boca." (Salmo 33: 6). Deus o Pai cria através de seu Verbo ou Logos (a segunda pessoa) e através de seu "Sopro" ou Espírito (a terceira pessoa). As "duas mãos" do Pai trabalham juntas na formação do universo. Do Logos é dito: "Todas as coisas foram feitas através dele" (João 1: 3: comparar com o Credo, '... através do qual todas as coisas foram feitas'); do Espírito é dito que na criação ele "meditou" ou "moveu-se sobre a face do abismo" (Gênesis 1: 2). Todas as coisas criadas são marcadas com o selo da Trindade.

2. Encarnação. Na Anunciação, o Pai envia o Espírito Santo à Santíssima Virgem Maria, e ela concebe o eterno Filho de Deus (Lucas 1:35). Então, a assunção de Deus de nossa humanidade é uma obra trinitária. O Espírito é enviado do Pai, para efetuar a presença do Filho no ventre da Virgem. A Encarnação, deve-se acrescentar, não é apenas obra da Trindade, mas também obra da livre vontade de Maria ... Deus esperou seu consentimento voluntário, expressado nas palavras: "Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra."(Lucas 1:38); e se esse consentimento tivesse sido negado, Maria não se tornaria a Mãe de Deus. A graça divina não destrói a liberdade humana, mas reafirma-a.

3. O Batismo de Cristo. Na tradição ortodoxa esse é visto como uma revelação da Trindade. A voz do Pai vinda do céu dá testemunho do Filho, dizendo: "Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo"; e, no mesmo momento, o Espírito Santo, na forma de uma pomba, desce do Pai e repousa sobre o Filho (Mateus 3: 16-17). Assim, a Igreja Ortodoxa canta na Epifania (6 de janeiro), a festa do Batismo de Cristo:

Quando Tu, Senhor, foste batizado no rio Jordão,

A adoração da Trindade manifestou-se.

Pois a voz do Pai testemunhou-te,

Chamando-te o Filho amado,

E o Espírito na forma de uma pomba

Confirmou a sua palavra como segura e firme.

4. A Transfiguração de Cristo. Este também é um acontecimento trinitário. A mesma relação prevalece entre as três pessoas como no Batismo. O Pai testemunha do céu: "Este é o meu Filho amado, em quem me agrada muito; ouça-o "(Mateus 17: 5), enquanto que antes o Espírito desce sobre o Filho, desta vez sob a forma de uma nuvem de luz (Lucas 9:34). Como afirmamos em um dos hinos para esta festa (6 de agosto):

Hoje no Tabor na manifestação da Tua luz, ó Senhor,

Tua luz inalterada da luz do Pai não-gerado,

Nós vimos o Pai como luz,

E o Espírito como luz,

Orientando com a luz toda a criação.

5. A Epiclesis Eucarística. O mesmo padrão triádico, como é evidente na Anunciação, no Batismo e na Transfiguração, é aparente também no momento culminante da Eucaristia, a epiclesis ou a invocação do Espírito Santo. Em palavras dirigidas ao Pai, o sacerdote celebrante diz na Liturgia de São João Crisóstomo:

Oferecemos-te ainda este sacrifício espiritual e incruento

E rogamos-te suplicando insistentemente

Envia o Teu Espírito Santo sobre nós e sobre estes dons aqui presentes:

E faze deste pão o corpo precioso do Teu Cristo

E do que contém este cálice, o sangue precioso do Teu Cristo

Mudando-os pelo poder do Teu Espírito Santo.


Assim como na Anunciação, também na extensão da Encarnação de Cristo na Eucaristia, o Pai envia o Espírito Santo para efetuar a presença do Filho nos dons consagrados. Aqui, como sempre, as três pessoas da Trindade estão trabalhando juntas.

Orando a Trindade

Assim como existe uma estrutura triádica na epiclesis eucarística, o mesmo ocorre em quase todas as orações da Igreja. As invocações, usadas pelos ortodoxos em suas orações diárias, todas as manhãs e à noite, têm um espírito incondicionalmente trinitário. Tão familiares são essas orações, tão freqüentemente repetidas, que é fácil esquecer seu verdadeiro caráter como glorificação da Santíssima Trindade. Começamos confessando a Deus três-em-um, enquanto fazemos o sinal da cruz com as palavras:

Assim, no início de cada novo dia, o colocamos sob a proteção da Trindade. Em seguida, dizemos: "Glória a ti, nosso Deus, glória a ti" - o novo dia começa com celebração, alegria, gratidão. Isto é seguido por uma oração ao Espírito Santo, 'Ó Rei Celestial ...' E então repetimos três vezes:

Santo Deus,

Santo Forte,

Santo Imortal,

tem piedade de nós.

O três vezes "santo" lembra o hino "Santo, santo e santo", cantado pelos serafins na visão de Isaías (Isaías 6: 3) e pelos quatro animais apocalípticos na Revelação de São João, o Divino (Apocalipse 4: 8). Neste "santo" repetido três vezes, há uma invocação do Três eterno. Isto é seguido, em nossas orações diárias, pela mais freqüente de todas as frases litúrgicas: "Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo..." Aqui, sobretudo, não devemos permitir que a familiaridade crie menosprezo. Cada vez que esta frase é usada, é vital lembrar seu verdadeiro significado como uma glorificação da Triunidade. O Glória é sucedido por outra oração às três pessoas:

Santíssima Trindade, tem piedade de nós.

Ó Senhor, purifica-nos de nossos pecados.

Ó Mestre, perdoe nossas iniqüidades.

Ó Santo, visite e cure nossas enfermidades

pelo amor de teu nome.

Então, nossas orações diárias continuam. Em cada passo, de forma implícita ou explícita, existe uma estrutura triádica, uma proclamação de Deus como um-em-três. Pensamos a Trindade, falamos a Trindade, respiramos a Trindade.

Há uma dimensão trinitária também na mais amadas oração ortodoxa, contida em uma única frase, a Oração de Jesus, uma "oração flecha" usada tanto no trabalho quanto em momentos de silêncio. Na sua forma mais comum:

Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tem piedade de mim, pecador.

Esta é, em uma forma exterior, uma oração para a segunda pessoa da Trindade, Senhor Jesus Cristo. Mas as outras duas pessoas também estão presentes, embora não sejam nomeadas. Pois, ao falar de Jesus como "Filho de Deus", apontamos para o Pai; e o Espírito também é incluido em nossa oração, já que "ninguém pode dizer "Senhor Jesus", exceto no Espírito Santo" (1 Coríntios 12: 3). A oração de Jesus não é apenas centrada em Cristo, mas trinitária.

Vivendo a Trindade

"Oração é ação" (Tito Colliander). "O que é uma oração pura? Oração que é breve em palavras, mas abundante em ações. Pois se suas ações não excedem suas petições, então suas orações são meras palavras, e a semente das mãos não está nelas."(Os Ditos dos Padres do Deserto)

Se a oração deve ser transmutada em ação, então essa fé trinitária que informa toda a nossa oração também deve se manifestar em nossa vida diária. Imediatamente antes de recitar o Credo na Liturgia Eucarística, dizemos estas palavras: "Amemo-nos uns aos outros para que em comunhão de espírito confessemos o Pai, o Filho e o Espírito Santo, Trindade Consubstancial e Indivisível.” Observe as palavras "para que". Uma autêntica confissão de fé no Deus Trinitário só pode ser feita por aqueles que, à semelhança da Trindade, demonstram amor uns pelos os outros. Existe uma conexão integral entre nosso amor um pelo outro e nossa fé na Trindade: a primeira é uma condição prévia para a segunda, e, por sua vez, a segunda dá força e significado para a primeira.

Assim, longe de ser empurrada para um canto e tratada como uma peça abstrusa de teologia, que interessa somente a especialistas, a doutrina da Trindade deve ter em nossa vida diária um efeito nada menos do que revolucionário. Feito à imagem do Deus Trinitário, os seres humanos são chamados a reproduzirem na terra o mistério do amor recíproco que a Trindade vive no céu. Na Rússia medieval, São Sergio de Radonezh dedicou o seu recém-fundado mosteiro à Santíssima Trindade, precisamente porque ele pretendia que seus monges mostrassem dia a dia o mesmo amor que ocorre entre as três pessoas divinas. E tal é a vocação não apenas de monges, mas de todos.

Cada unidade social - a família, a escola, a oficina, a paróquia, a Igreja universal - deve ser transformada num ícone, numa imagem, da Triunidade. Porque sabemos que Deus é três em um, cada um de nós tem o compromisso de viver sacrificialmente no outro e pelo outro; cada um tem o compromisso irrevogável a uma vida de serviço prático, de compaixão ativa. Nossa fé na Trindade nos obriga a lutar em todos os níveis, desde o estritamente pessoal ao altamente organizado, contra todas as formas de opressão, injustiça e exploração. Em nosso combate pela justiça social e "direitos humanos", estamos atuando especificamente em nome da Santíssima Trindade.

"A regra mais perfeita do cristianismo, sua definição exata, o seu cume mais alto é: buscar aquilo que é benéfico para todos", afirma São João Crisóstomo.

"... Eu não posso acreditar que é possível que um homem seja salvo se ele não trabalha para a salvação de seu próximo." Tais são as implicações práticas do dogma da Trindade. É isso que significa viver a Trindade.


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